segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Não é só uma questão física

Não é só uma questão física, porque é química e biológica. O cérebro é o filtro de tudo, o que lhe protege de uma enchurrada de memórias e informações, mas também é um limite. A pressão, o prazer, o esforço interrompem e intermiteiam a respiração; aumentam a concentração de dióxido de carbono no sangue, nos pulmões, ineficienciam o cérebro na função de redutor. Muitas pessoas [não] percebem isso com a visão de redemoinhos coloridos ou recordações. Para ela... O CO2 é mais e a leva para visionamentos e alucinações breves, mas verdadeiras e quase livres de risco.
Para ele, é amor.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Passagem

Você sabe, é aquele momento em que você pôs a cabeça em baixo da cascata e sente a água congelante nos cabelos, o corpo inclinado para a frente por um medo qualquer de se molhar, e então você dá um passo para a frente, entrando completamente debaixo d‘água, mas antes... Antes de a água cair no seu peito e gelar suas costas, antes de você ser encharcado e cortado pelo rio que vai, você sente o ar faltar no peito. É uma fração de segundo, o tempo que dura, mas seu coração acelera e você está consciente demais das águas que passam por você. É dessa falta de ar que eu estou falando.

Naquele dia eu dormi na praia e não havia ninguém lá quando o sol me acordou assim como não havia ninguém quando a lua e as estrelas e o fogo estalando me fizeram sonhar com coisas de contos de fadas. Durante a noite Iemanjá vem na forma de onda e me toca os pés e me apaga o fogo, então quando eu acordo já seco eu sei que nada de ruim vai me acontecer.

Eu levanto e sacudo a areia fria e me espreguiço de pé e já saio correndo descalço em direção ao mato, que é lá que ela deve estar. No meio do mato tem o rio. No meio do rio, a cachoeira e no meio da cachoeira, com alguma sorte, a menina que está acampando. Ela é morena e bonita e perfeita e disse que tem dezessete anos e eu disse que eu espero.

Sentado ali na pedra, espero vinte, quarenta minutos. Nesse tempo, pego um pitu de catorze centímetros, mato logo e guardo. Depois fico vendo um peixe nadando parado contra a corrente, mas ele foge assim que eu me inclino um pouco e é bem aí que ela chega. Chega sozinha que nem disse que chegava e diz Meus amigos foram pra praia, eu disse que não estava bem. Que depois ia. Não tem ninguém nas barracas agora.
Eu sorrio igual venho sorrindo nessa última semana, mas um pouco mais porque parece que as coisas agora vão dar certo, finalmente. Sem levantar, chuto água nela e o gritinho-riso é exatamente como você está imaginando, e então eu pulo na água e ela também e nós dançamos. Tenho certeza que ela também sentiu. A falta de ar. Só depois é que corremos de mãos dadas para o acampamento, porque ela gosta de conforto, ou porque não gosta de insetos, e entramos na barraca dela.

Fico por algum tempo me perguntando se fui desprezível ou generoso ao deitar com ela na barraca e abraçá-la e beijá-la toda, e depois ficar sussurrando bem pertinho do ouvido dela enquanto ela expremia os olhos bem fechadinhos, mas agora ela está deitada e não tem mais ninguém aqui então isso não importa mais. Eu saio da barraca para que ela saia atrás e dou de cara com o mar logo ali, debaixo do rochedo, uns três metros pra baixo do acampamento. A água bate nas pedras com força e eu estou pensando nisso quando ela vem e me abraça por trás e me beija a nuca. Nesse momento, eu sinto de novo a falta de ar.
É nessa hora que eu mudo de idéia e decido que se eu pegar o som, os celulares e o dinheiro e sair correndo para o mato, ela nunca vai me alcançar, então não tem porque eu empurrar ela de lá de cima.

Eu faço força pra ela me soltar, mas só o que eu quero é conseguir correr para pegar tudo. Só que é bem nessa hora que uns amigos dela voltam e acham que eu estou fazendo alguma coisa com ela ou sei lá. Eles pulam pra cima de mim e eu grito Merda merda merda, por que não me soltou logo, sua vadia? E ela está chorando, então eu me arrependo de ter dito isso e fico um pouco assustado e acabo me desequilibrando.

Quando eu caio, a última coisa que vejo são as ondas de Iemanjá se atirando pra cima de mim. Pra impedir que qualquer coisa de ruim me aconteça. Eu fecho os olhos e meu coração pára por um segundo, eu fico esperando para ser recebido pela deusa. É dessa falta de ar que eu estou falando.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Feminismo

Quero ser vista como objeto. De estudo. Manuseada, degradada, tudo. Quero um homem, quero dois, quero tantos!, quero entregar-me sem pensar em medo ou em prantos e deixar que façam o que quiserem, e deixar que se refestelem, e que se revezem. Quero vê-los, satisfeitos, darem-me as costas e deixarem-me nua, suja; sua.

Quero ser usada, abusada. Que é uma forma de idolatria.

domingo, 16 de novembro de 2008

A diferença

Sexo é ela perdendo o fôlego e se remexendo e ele todo mãos e língua e tudo. É ele mais que dentro, junto, e é um esforço altruísta mesmo. É ela cravando unhas e engolindo em seco, e finalmente... Masturbação é o que vem depois.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Café

O café é amargo e, saído da máquina, péssimo. Mesmo assim, você toma, você gosta. Eu me pergunto quando vou tomar coragem e levantar e beber as últimas gotas desse café. Direto da sua boca. Às vezes, imagino que já teria feito isso, sim, não teria problema nenhum, medo nenhum. Levantaria daqui do fundo da cantina de onde te vejo, chegaria na sua mesa e não diria nada, como nunca disse. Só beberia o café da sua boca e perderia toda a aula de química tentando colher cada gota. É, e não vai pensando que eu teria medo, não, ou vergonha ou sei lá, pudor. Já teria feito isso tudo há muito é tempo.
Só que o café é amargo e, saído da máquina, péssimo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Nanos

Nano,
Nano, um pedaço de pano
É menos pano (que uma toalha)?
Se for rápida, se indolor,
Morre a morte menos morrida?
Dói o corpo mais que a ferida?
A água de um rio é mais sentida
Que uma lágrima?

domingo, 9 de novembro de 2008

Pela Janela

O trem da linha A é rápido e confortável. Margeando as principais avenidas da cidade, ele leva sempre executivos com suas pastas e maletas e seus celulares sempre nos ouvidos em conversas envolvendo números e nomes. Os vagões têm ar condicionado, música ambiente e mesinhas para os notebooks, e ninguém nunca nunca vai de pé. A linha A não faz conexão com outras linhas, mas deixa cada um deles na frente de suas casas e há, é claro, os canapés durante o percurso.
    Todos os dias, os executivos pegam o trem pela manhã e trabalham silenciosos durante o percurso; depois descem todos em frente aos seus escritórios, ou aos escritórios de seus clientes, e voltam a embarcar sempre no final do expediente, que pode ser às 20h, às 21h ou somente no dia seguinte. De qualquer forma, não perdiam a pose, e em tantos anos, Gustavo nunca havia visto alguém no trem que não vestisse um terno caro; exceto às sextas-feiras.
    Gustavo costumava passar uma hora no trem, contando a ida para o trabalho, a volta para casa e todos os serviços que precisava realizar fora do escritório. Como não podia desperdiçar esse tempo, acostumou-se a sentar-se e logo abrir o laptop, aproveitando-se da internet Wi Fi que o trem disponibilizava aos que pagavam uma pequena tarifa, e valendo-se sempre de uma máquina de cafés providencialmente instalada. Ele havia decidido adotar o hábito de ligar o notebook, iniciar conexão com a internet e pegar o café enquanto tudo se inicializava, para potencializar o tempo, mas logo viu que a idéia não valia: de tão boa, era compartilhada por todos os que entravam na mesma estação, de tal forma que formava-se uma inconveniente fila à frente da máquina de café. O tempo que se perdia era enorme.
    Assim, acostumou-se a pegar o café antes de entrar, ligar o computador e usar o tempo de inicialização para adoçar o café e mesmo tomá-lo. Depois, simplesmente ignorava tudo e todos e seu mundo era um só e seus dedos eram rápidos, e as planilhas e o trem iam e iam.
 
    Nesse dia, em particular -- era quinta, e era novembro --, porém, sentou-se sem pegar o café e cinco minutos já se haviam passado e sequer ligara o notebook. Teria percebido isso de um susto, e levantado atrás do líquido com o Windows já rodando, fosse esse outro dia, mas não era. Não era, e Gustavo apenas virou-se para a esquerda, onde seu ombro se apoiava na parede do vagão.
    Foi assim, por cansaço, que notou o outro, que também não trabalhava. Ele tinha o notebook aberto sobre a mesinha, o Excel ligado, mas encontrava-se absorto em outros pensamentos, porque sequer tocava o teclado. Foi com real espanto que Gustavo notou que ele olhava pela janela.
    Inicialmente, Gustavo sequer havia reparado que havia janelas no vagão. Elas não eram muito grandes e, de qualquer forma, não havia muito para que se olhar do lado de fora. O rapaz, porém, olhava com grande atenção, arregalando os olhos, até. Embora lhe parecesse inadequado, Gustavo não pôde conter-se, e acabou pousando a mão sobre o ombro do homem ao seu lado. Tendo-lhe chamado a atenção, indicou silenciosamente o comportamento do outro. Imediatamente, Gustavo sentiu-se completamente envergonhado e ridículo, importunando assim um completo desconhecido.
    No entanto, o homem não pareceu incomodado, mas sim igualmente surpreso com a conduta do rapaz de olhos vidrados na janela. Ao invés de queixar-se pelo trabalho interrompido e o tempo e concentração perdidos, ele tocou o braço do homem à sua frente e também apontou com a cabeça para o jovem observador. Ali, iniciou-se uma verdadeira comoção, cada um denunciando a atitude estranha para o vizinho de assento. Em meio ao burburinho, Gustavo ouviu traduzidas as palavras que lhe ocorriam na mente:
    --Em todo esse tempo, nunca vi ninguém olhando para a janela! -- Era uma voz contida.
    E, embora todos falassem baixo, o som acabou por chegar aos ouvidos do rapaz que, enfim, desviou os olhos da janela, um tanto atônito, vendo que todos olhavam para ele. Por fim, talvez julgando que merecessem uma explicação, dirigiu-se aos demais passageiros:
    --Por Deus, com que olheiras eu estou!

domingo, 2 de novembro de 2008

Sem nome

Eu cheguei em casa e as luzes estavam apagadas, e no nosso -- no meu quarto, somente as minhas coisas, e foi muito triste eu não ter chorado.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ela me perguntou como se dava a condensação do DNA

E eu quis tapar minha boca e meus olhos e ouvidos e o meu nariz, tanto quanto fosse necessário para fazer o conhecimento parar de vazar.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Um nó é um negócio cruel

Um nó é um negócio cruel. Você gira e passa e dobra e o barbante deve achar que é uma dança, de tão lindo, e de repente um puxão e aquilo tudo é um nó. Se for bem feito, o barbante nunca mais vai se soltar, porque ele mesmo é quem se prende e tentar forçar só piora. 

O bonito da coisa é que, para soltar, é preciso fazer toda a dança, de novo, só que ao contrário.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

domingo, 28 de setembro de 2008

Estilos - III

Ele era rápido ágil e esperto ele não tinha mesmo tempo para pensar ou para descansar enquanto descia a rua correndo e trombando com todo mundo então ele virou em uma esquina se agarrando em um poste para fazer a curva e passou por pessoas um cachorro latas sacos vendedores peixes mortos (uma feira) senhoras e pulou todos os cinco degraus de uma escada se agarrou a um ônibus mas desceu quando ele parou no sinal e continuou correndo correndo correndo quase sem sentir a bolsa em suas mãos mas bem nessa hora uma velhinha entrou na sua frente e ele não queria fazer mais do que empurrá-la de lado. Mas como poderia imaginar que ela cairia e bateria a cabeça.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Garanhão

 Ah, você se acha tão melhor, só porque não tem rédeas, ou sela, ou cela, porque corre solto, porque é o único que consegue aproveitar o sombreado e as goiabas de uma goiabeira e olhar o céu, e é claro que os demais no celeiro parecem animais burros, ignorantes, incultos, querendo dormir, só, ou falar de qualquer futilidade e depois, lá, ardendo no sol. Você olha com desdém e tenta ensiná-los — ensiná-los! — alguma coisa, mas são burros, mesmo, ou não querem aprender. E então você se irrita, cercado de cavalos, jegues e bois, porque você, meu amigo — você tem uma alma!  

    Mas fique você sabendo [tom acusador] que outro dia eu vi uma mulher que acordava mais cedo que as outras e fazia pão e bolo e café e os vendia na saída do trem. E aquilo sim é que era poesia. 

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Reciclagem ou "Cala a boca e beija logo"

Finalmente tomou coragem e disse Cara, eu não agüento esses seus assuntos!, cala a boca!, e acabou descobrindo que o que não servia como amigo dava um ótimo amante.

domingo, 24 de agosto de 2008

A Arte de ser superior

Existem poucas formas de se entreter no trem, e menos ainda que se relacionem à literatura. Uma delas, obviamente, é ler, mas isso pode ser um pouco chato para algumas pessoas, de forma que eu desenvolvi um costume muito mais divertido, e que já é moda entre muita gente: ser superior.
O segredo deste jogo é comparar-se literariamente a cada pessoa do trem e ser superior a todas elas.
Para começar, você pode ou não estar carregando um livro. Se você estiver, é um leitor. Se não estiver, é porque esqueceu ou porque dedicará o tempo a uma análise sociológica ou ainda porque está justamente indo comprar algum livro. Seja como for, você já está acima de todos os outros que não carregam um livro, porque são todos uns ignorantes incultos. Assim, foi feita uma filtragem que eliminou a maioria dos passageiros do vagão. Agora, é hora de escolher alvos individuais.
Haverá, então, de haver alguém que leia quadrinhos. Entenda: se você não os lê, é porque não há neles a maturidade e profundidade que você exige. Se os lê, é porque não se prende a uma visão restrita da arte, é despojado e consegue perceber o valor dessa forma de expressão. Já os outros, lêem porque não conseguem encarar um livro de verdade, e, por isso, sequer merecem entrar na competição.
Com certeza, nesse momento, você encontrará alguém lendo a bíblia ou algum livro religioso. Se o seu livro não for desse tema, você não é uma ovelha que segue um livro qualquer. Se for, você tem um lado espiritual apurado, ou a mente aberta, ou está encarando o texto com visão científica. O outro, porém, lê isso porque é ignorante e não lê mais nada; lê somente para fugir do pecado. Mais um vencido.
O próximo alvo deve estar lendo algum best-seller. Se o seu livro for um best-seller, você está atualizado e não tem preconceitos. Se não for, é porque você reconhece os clássicos. Já o outro, é um ignorante que só segue modas. Vencê-lo foi fácil e você pode se voltar para aquele que lê um livro técnico, ou de auto-ajuda. Se o seu livro for dessa sorte, você é estudioso, um bom profissional, atualizado e quer melhorar como pessoa. Se não for, você sabe reconhecer a Verdadeira Literatura, ao contrário do outro, que não pensa por si só e busca dicas prontas em livretos. Próximo.
Ao chegar essa fase, as coisas começam a parecer complicadas, mas nada tema! Agora, enfrentamos aquele com livro cuja leitura é incontestável, cujo bom gosto foi reafirmado por séculos de crítica literária, cujos méritos são unanimemente aplaudidos. Se for isso o que você lê, você é bom e não é preciso dizer mais nada. Se não for, é porque você já leu aquele livro, ou você está variando um pouco, ou, ainda melhor, você não se rende à crítica obtusa nem aos séculos ultrapassados. Você é novo e moderno e ele — o outro — sequer entende o que lê, passa pelas letras, somente, ignorante que é. Sequer há de acabar o livro e não crescerá com o que ler.
A essa altura, você deve ter eliminado todos os outros no trem. Parabéns! Você se provou superior!

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Carnaval

Ah, não, é que eu nem esquento, porque as pessoas reclamam, e falam que é baixaria, mas no fundo, todo mundo quer mesmo curtir um pouco, sabe? E é verdade que talvez isso ofusque toda a arte e o esforço e o valor cultural que eu represento ou deveria representar, e também é verdade que eu poderia me esforçar um pouquinho, um pouquinho só, pra mudar essa imagem, mas é que eu sou, sabe?, popular. Popular. Pó pular.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Quadrinha dupla

Alargou o nó do dia
Apertou o nó da vida
Num salto último
Partiu sem despedida

Chegou em casa cedo
Riu da sua sorte
Alargou o nó do dia
Apertou o nó da morte

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Estilos - II

Pôs uma perna para fora do trem e percorreu toda a estação com os olhos, antes de sair por completo. Depois, abaixou o chapéu para que lhe cobrisse o rosto e seguiu em passos firmes pela noite deserta. Sentia o calor dos bolsos da casaca de couro bege e ouvia somente o som quase imperceptível das pisadas das botas pretas, pontudas e ágeis que os pés vestiam.
Dobrou uma esquina, espantando um gato e se lamentando em pensamento quando o bichano derrubou uma tampa de lata de lixo, rompendo o silêncio até então absoluto. Sentiu o vento frio no rosto e seguiu adiante.
Depois de alguns minutos de caminhada rápida, mas não apressada, chegou à ampla praça que faz frente ao casarão. Não havia nenhuma iluminação artificial, e a lua dava um tom pálido ao gramado deserto, em que balanços rangiam em suas correntes, movidos pelo vento ou por algum espírito qualquer.
Ele encarou longamente o portão enferrujado, que jazia entreaberto e depois o escancarou com um empurrão. O rangido se estendeu pela noite, mas o barulho já não o importava, conforme enfiava mais profundamente a mão no bolso e sentia o toque frio do metal.
Avançou pela trilha de pedras que levava até a porta da mansão e tocou a campainha. Sem nenhuma ansiedade, observou enquanto a única luz acesa, no quarto mais alto da casa, apagou-se e foi seguindo de janela em janela até descer as escadas e chegar ao salão principal.
Quando a porta se abriu, revelando o morador do edifício -- um velhinho franzino e recurvado, que vestia um robe de seda e chinelas --, ele inclinou-se em cumprimento educado e pediu a gentileza de entrar. O velhinho concedeu e é improvável que tenha notado a sequência de ações que se seguiu, quando uma mão ágil saiu do bolso do visitante carregando a navalha e sangrando-lhe o pescoço. O dono da casa caiu já morto, mas o assassino não procurou por jóias ou dinheiro nos móveis indefesos.
Durante as horas seguintes, limitou-se a fitar a lareira, enquanto esperava por quem lhe pagaria pelo serviço.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

terça-feira, 8 de julho de 2008

Q, w, e, r, t...

As letras tremiam. Q, w, e, r, t. A, s, d, f, g. Mas tremendo e tremendo, porque ele olhava para o teclado e os olhos tremiam porque ele tremia. Era a perna que tremia e levava o corpo todo junto e as letras acabavam tremendo na medida em que elas eram o que ele via. Eram um problema, e ele tinha que escrever, mas não sabia como começar e por isso tremia, e por tremer não escrevia. Prazos, esses é que eram o problema.

Prazos e mais prazos e contas e trabalhos e encontros e datas e agora aqueles formulários cheios de números que pareciam não ter fim nem meio, mas tinham prazo e era curto.

Só conseguia olhar para o teclado e balançar balançar balançar as pernas, balançar balançar e o prazo cada vez mais curto e as pernas cada vez mais rápidas e as letras que tremiam e dançavam e então ele parou.

Levantou, disse que ia tomar um café e nunca mais voltou.

sábado, 5 de julho de 2008

Divisões inexatas

Nadar às vezes é cansativo, às vezes é entediante. Aí eu costumo pensar em metas. Nadar 800 metros pode ser demais, mas que mal há em nadar cinquenta?, e depois mais cinquenta e mais cinquenta... A melhor forma de não parar é justamente essa, a de dividir as grandes metas e ir fazendo só mais uma, só mais uma, ad eternum ou ad nauseam.

Nas outras coisas da vida, é igualzinho. Só que eu nunca sei quantos metros faltam.

domingo, 29 de junho de 2008

Estilos - I

Marco veio de trem, e era noite, porque quando você não tem estilo, você não tem nada. Ele respirou fundo e viu o vapor que siu de sua boca. Estava frio, também. Mas isso não era questão de estilo.

Era má-sorte.

Ele sabia o que estava fazendo, mas isso não significava que não tocava os bolsos de tempos em tempos. Para se certificar de que elas ainda estavam lá.

Entrar na casa foi fácil. Sempre era. Esperar é que era inconveniente, mas dessa vez quase não demorou. O outro chegou cedo.

Toni era grande e forte e, acima de tudo, esperto. Os anos no serviço tinham-lhe ensinado muito e ele percebeu logo que alguma coisa estava errada. Mas quando viu as armas brilharem no escuro, era tarde. Duas balas o atingiram como coices. O impacto foi tamanho que Toni foi atirado para fora da janela, junto com os estilhaços.

O trabalho tinha sido perfeito. Mas ainda estava frio, e Marco ainda tinha que voltar de trem.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Recicle! — Uma proposta.

A arte é expressar, e embora Fernando Pessoa dissesse que o que se expressa não é importante, ninguém haverá de negar que duas coisas que expressam mensagens diferentes só podem ser — se forem — duas formas diferentes de arte. Explico: se houver duas obras e em ambas for reconhecido o valor artístico, e se ambas expressarem mensagens que divergem, elas só poderão ser obras de arte distintas, desde que se tenha — e tenho — como inegável que o importante da arte é expressar.

Também só pode ser verdade que ninguém no mundo, ou pelo menos ninguém que reflita o suficiente sobre isso, diria que a obra do artista dadaísta Marcel Duchamp é exatamente a mesma coisa que uma privada que alguém colocou em uma exposição, ou que todas as fábricas de privadas produzem arte da mesma sorte que a dele. Ninguém pode dizer isso porque ainda que a obra de Duchamp seja uma privada exatamente igual à que é feita nas fábricas, ela expressa algo que nenhuma privada jamais expressou. Indo além, eu poderia dizer que a autoria da obra só pode ser de Marcel, ainda que ele não tenha efetivamente criado a privada, porque foi ele quem fez com que aquela privada expressasse um protesto anti-racionalista, quiçá desconstrutivista: retirado de seu âmbito cotidiano, o penico bem poderia ser uma fonte.

Note que, uma vez tendo ele obtido acesso à privada, nenhuma fábrica do mundo ousaria cobrar de Duchamp pelo direito de expô-la ou de transformá-la em arte ou de dar a ela o significado que fosse. Da mesma forma, nenhum vendedor de tinta ou de tela cobrará porcentagens das vendas de um Monet ainda que a tela tenha tido importância para que Monet pudesse expressar sua arte.

Que ninguém afirme, agora, que esse tipo de mudança do significado das coisas está preso às coisas tangíveis. A mudança de uma palavra ou mesmo uma vírgula pode alterar todo o significado de um livro, e ninguém haverá de negar isso, bem como ninguém haverá de negar que a entonação que se dá ao que se diz pode alterar todo o significado de um discurso e um contexto diferente pode transformar uma frase e assim por diante. Em verdade, eu diria que o mesmo conteúdo, se proferido pelo radical de esquerda ou pelo militante de direita, pode pular do mais entusiasta para o mais jocoso dos sentidos, ainda que não se mude em absoluto qualquer palavra ou tom ou o que quer que seja: a mudança do artista bastaria, então, para que mudasse a arte.

É ridículo que se pretenda limitar a criação de uma pessoa porque ela usa como base parte de obra já feita, desde que essa pessoa saiba dar ao que já era um significado que jamais fora. Não há prejuízo quando se cria o novo; só há prejuízo quando se impede o novo de ser criado. Que Duchamp pague pelo seu penico, vá lá, que ninguém aqui quer defender o roubo de nada; mas inibir a exposição d’A Fonte ou cobrar por ela qualquer coisa além da privada em si é ultrajante.

Peguemos as obras, brinquemos com elas e elas serão nossas! John Locke, ao mesmo tempo em que fundamentava as bases teóricas da propriedade privada, já não dizia que é propriedade do homem tudo o que é alvo e resultado do seu trabalho? Tudo o que o homem transforma através de seus esforços? Ah, não se acanhe! Pegue e não tenha vergonha de dizer que pegou; mude e transforme.

Recicle!

domingo, 22 de junho de 2008

Citação

"O trabalho priva o homem de três grandes coisas: o ócio, o vício e a beleza."

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Outra metamorfose

Nos últimos doze anos, Bruno não dormiu mais do que cinco ou seis horas por noite, mas na última semana é que as coisas ficaram feias de verdade. Passara toda a noite de segunda no escritório, e não dormira mais do que três horas na terça. Na quarta, a mesma coisa e, na quinta, enquanto arrumava a gravata às quatro da madrugada, ainda mole e dormitando, ainda com os olhos ardendo e pesando e com o cabelo todo arrepiado do banho que não valeu (porque todo mundo sabe que banho de manhã tem função mais de despertar que de limpar), para ir novamente trabalhar, ele reparou com desgosto nas olheiras fundas.
Além disso, não se lembrava de jamais ter sido tão magro quanto àquele ponto. Pudera, não tendo mais tempo para comer direito e se limitando a qualquer porcaria uma vez por dia. Por fim, conforme já saía do banheiro e da casa, agora acordado, e entrava no carro correndo e correndo batia a porta e acelerava sem nem ter posto o cinto ainda e saía no escuro, pensou em quanto estava pálido, ficando de noite a noite trancafiado, vendo o sol pela janela, quando muito.
Mas a vida é assim, e a empresa estava crescendo e tudo mudaria em breve, e ele até poderia tirar férias. Talvez.
No entanto, à tarde sua barriga doía, e quando ele se levantou para tomar um café, sentiu uma tontura que quase o desequilibrou, e bambeou bambeou, e se apoiou na própria mesa. Porém, acabou derrubando os lápis e livros e coisas, e a mão escorregou e ele quase tomba, mas se segura. Pálido, pálido, os olhos afundados e a barriga vazia, levantou de novo e foi meio escorado em direção ao banheiro, mas no caminho havia a janela, e quando tropeçou bambeou, tombou e só sentiu o vidro cedendo ao empurrão e a janela abrindo e o vento vento vento ven...
E foi então que Bruno virou um morcego e voou dali.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Metalinguagem

Mal do século, até mesmo para a China - por Alexandre Cruz Gabriel Mourão Soares

A pirataria é o mal do nosso tempo, pois alimenta uma economia informal monstruosa. Por Alexandre Cruz Gabriel Mourão Soares

No ano passado a Interpol assustou o mundo ao anunciar que o volume transacionado pela pirataria, termo aqui entendido como contrafação, descaminho, subfaturamento e outros delitos correlatos, atingia a alarmante cifra de U$ 516 bilhões, ultrapassando até mesmo o tráfico de drogas, que movimentou U$ 322 bilhões em 2006.

O recado deve ser bem compreendido por governos e indústria: a pirataria é o maior desafio do comércio internacional no século XXI. A razão é simples, mas não está explicada somente pelos de postos de trabalho que deixam de ser criados, pela evasão de divisas, pela redução da arrecadação de impostos ou pelos severos e muitas vezes fatais malefícios às empresas que deixam de faturar.

Tampouco a razão de a pirataria ser o mal do século está unicamente explicada pela monstruosa economia informal que alimenta, fomentando um crime organizado internacional e gerando imensas bolsas de massa de mão-de-obra que, a despeito de não recolher impostos, utilizam-se dos serviços públicos (como o SUS no caso do Brasil) e ainda aposentam-se sem ter contribuído para o sistema, pressionando os gastos dos governos de todo o mundo.

A pirataria literalmente faz lixo de toda a evolução e luta histórica da sociedade por décadas a fio para estabelecer o consagrado direito do consumidor, especialmente quando assistimos, pasmos, os dados da OECD (Organization for Economic Development and Cooperation) recém-divulgados no Terceiro Congresso Mundial de Combate à Pirataria e à Falsificação em Genebra no dia 31 de Janeiro deste ano: 30% dos remédios transacionados em todo o mundo são falsificados.

Somam-se ainda os sem-número de brinquedos falsificados fabricados à base de restos de material hospitalar; óculos escuros falsificados que ao fazerem dilatar a pupila e não apresentarem proteção aos raios ultravioletas do sol, criam legiões de jovens com problemas precoces de visão, além de produtos de limpeza altamente nocivos no seu manuseio, entre tantos outros.

A pirataria é o maior desafio do século porque, não obstante todos os assustadores malefícios acima listados, ainda apresentam uma característica fatal ao crescimento sustentado na economia mundial: inibe a inovação.

Desde as obras de Schumpeter sabemos que o crescimento sustentado, do ponto de vista estritamente econômico, se faz com aumento da produtividade. Em outras palavras, fazer mais, com menos e melhor. A raça humana depende da inovação para viver cada vez mais, e em melhores condições de bem-estar. Razão esta que explica as proteções legais da propriedade intelectual recebe em quase todo o mundo.

A pirataria torna inviável o investimento em inovação. Torna inviável, quando não impossível, os recursos aportados na criatividade humana, na obra intelectual e na invenção. Com isso deixam de surgir novas tecnologias, novos produtos, novos artistas, novos remédios, novas vacinas e até mesmo novos livros.

A própria China, que tem inundado o mundo com produtos de todos os tipos cuja autenticidade, não-raro, é severamente questionada por diversos países, vai beber do próprio veneno. Explica-se: para manter-se como o maior fornecedor de mercadorias do mundo, a China foi o terceiro maior país em investimentos em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), cerca de U$ 1,3 bilhão em 2006, segundo a OECD. Logo, a falta de um arcabouço jurídico e de um aparato estatal para a proteção da propriedade intelectual vai também brecar o motor da economia chinesa.

No Brasil, muito avançamos nos últimos três anos, especialmente com a articulação e integração da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Receita Federal no âmbito do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, criado em 2004 e vinculado ao Ministério da Justiça. Entretanto o Brasil figura na 5º colocação no Ranking de Pirataria da OECD. Nestes avanços podemos incluir o controle da situação da fronteira de Foz do Iguaçu – região historicamente emblemática para a entrada de produtos piratas no Brasil.

Nada obstante, em quase todas as grandes cidades brasileiras temos um centro de vendas de produtos piratas a céu aberto, aceitando todos os meios de pagamento existentes, e contando muitas vezes com investimento do próprio Estado na forma de serviços públicos e até mesmo com financiamentos públicos – como no caso da chamada “Feira dos Importados” em Brasília, que apresenta uma convidativa placa do BNDES em sua entrada, de onde é possível avistar o Congresso Nacional.

Para reverter este quadro é necessário ao Brasil realizar a mais importante de todas as reformas – a qual independe do governo ou do Congresso -, a reforma de valores. Isto porque jamais o preço de um produto pirateado vai ser superior ao produto original, pois enquanto este investe na inovação, em marketing, em pessoas e ainda arca com a imensa carga tributária atual, aquele a isso tudo se furta.


Alexandre Cruz é economista e presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (www.forumcontrapirataria.org)


Publicado no jornal Valor Econômico, pág. A12 - Opinião. Em 27 de março de 2007

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Ele morreu

Um dos problemas da linguagem escrita, acho, é mesmo que as palavras sejam todas tão democraticamente, irritantemente iguais. Os verbos são, apenas, e não param para pensar que entre eles há aqueles que são banais, corriqueiros, e aqueles que importam mais do que tudo. Aí você pode ter um texto que diz que estava o casal, e ela viveu, penou, cansou, odiou, chorou, cozinhou, pensou e pensou e pensou, decidiu, misturou, serviu; e ele amou, viveu, perdeu (o encanto?), acostumou, traiu, chegou, sentou, comeu, morreu.

Ele morreu e talvez nem se percebesse; ali, no meio de tantos outros verbos, talvez um leitor cansado, sonolento, desatento, ou sei lá que outro fator poderia fazer com que ele morresse e ninguém notasse. E na página seguinte estariam todos no enterro e só então o leitor acordaria e afastaria o livro, fazendo uma cara espantada e diria Putaqueopariu, ele morreu!, e depois voltaria as páginas correndo, pra achar exatamente aonde foi que isso tudo aconteceu.

Não podia ser assim.


Podia ser assim?:

Estava o casal, e ela viveu, penou, cansou, odiou, chorou, cozinhou, pensou e pensou e pensou, decidiu, misturou, serviu; e ele amou, viveu, perdeu (a partida?), acostumou, traiu, chegou, sentou, comeu, morreu.


Ou o contexto conta mais?

Estava o casal, e ela viveu, penou, cansou, odiou, chorou, cozinhou, pensou e pensou e pensou, decidiu, misturou, serviu; e ele amou, viveu, perdeu (tudo?), acostumou, traiu, chegou, sentou, comeu, morreu.



Ou será que, diante da efemeridade da vida, e das coisas, e de tudo, os verbos fazem bem de serem assim, todos iguais? Morreu e pronto, como bem podia não ter morrido. Ou será que melhor seria dar a ênfase através desse jogo de tudo que é a literatura?

Ou será que melhor seria o leitor ficar atento?

domingo, 23 de março de 2008

Sobre as borboletas

Eleanor era uma borboleta cor-de-rosa e laranja e de todas as cores, e ela voava e voava, mas ninguém a podia ver, exceto por Carolina. Carolina era uma borboleta, também, mas não como Eleanor, porque não voava, apenas balançava a cabeça para frente e para trás enquanto seguia Eleanor com os olhos fechados, ou abertos, porque tanto fazia.

Eleanor falou um dia para Carolina que não se preocupasse, porque um dia ambas voariam juntas e era só uma questão de tempo, mesmo. Carolina riu e disse É claro, tolinha, é claro que voaremos pra longe daqui!, e sorriu o sorriso mais lindo que se pode sorrir.

E como, sem querer, sua fala e seu sorriso escaparam do campo por onde Eleanor voava e chegaram até as enfermeiras, Carolina foi levada para o jardim. Uma das mulheres que a levava disse que era bom que ela ficasse sonhando, mesmo, que era melhor. Aí Carolina sorriu de novo, porque entendia tudo e o que ninguém sabia (só Eleanor) era que não demoraria muito até ela sair do seu casulo.

Uma semana depois, cuspiu, escondida, as pílulas da noite e, no dia seguinte, as enfermeiras não a encontraram sobre a cama: tinha voado para longe.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Triste fim ou Exercício de Consciência

Estava apático, abatido, dominado pelo medo ou pelo cansaço ou pelo choque ou talvez fosse mesmo o sono de ter acordado tão poucas horas depois de ir dormir, e tamborilava os dedos na mesa enquanto girava o copo plástico vazio em dúvida quanto a enchê-lo ou não, pela terceira vez naquela hora, com café. Não obstante, olhava firme nos olhos do outro e assentia, e esperava, já um pouco impaciente, pela frase que, ainda que tardasse, não falharia.

Conforme ouvia os números das finanças da empresa, que dançavam entre seus pensamentos vadios, girava e girava o copo nas mãos e pensava se devia ter ficado meia hora a mais naquela sexta feira, para terminar aquele relatório, ou se era melhor assim, mesmo, e que se danasse. Perguntou-se se a dança numérica e o que ela certamente significava ou significaria era algo ruim ou bom, e perguntou-se se isso fazia alguma diferença, mas surpreendeu-se ao ver que não, porque no final das contas, a vida é sempre a mesma, sempre a mesma.

Por fim, ciente de que não tinha nada a perder, deitou o copo em gesto dramático sobre a mesa, ergueu-se sem se importar em arrumar o terno e dirigiu-se ao chefe, ou ex-chefe, ou futuro ex-chefe e disse Certo, então eu estou demitido, não é mesmo?, e estava, e era.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Paulista

Ele veio andando pela avenida, todo chique e elegante, jeitoso, mesmo, mas dava para perceber que estava completamente embriagado. Só que não era por causa da bebida, não, porque ele estava tomando uma limonada e eu posso jurar por Deus que não tinha uma gota de álcool lá, porque, Jesus, eu saberia. Mas o jeito que ele olhava para tudo, e veio e se sentou no chão ao meu lado — e eu não vou mentir, não: estou já é bem velha e acabada e nos meus trapos e ele, naquelas roupas finas, sentando do meu lado! —, era claro que ele estava bêbado.

Primeiro, ele ficou quieto, mas eu percebia que ele me olhava de canto de olho. A gente, mulher, percebe, sabe? Ele olhava, assim, mas disfarçava. E eu já estava me incomodando, porque quem ele pensava que era para sentar ali, no meu canto e ficar, só, sem fazer nada, me olhando de canto de olho?

Mas aí passou o negão, e ele costumava esmolar por aqueles cantos, também, porque eu já tinha visto ele por ali várias vezes. Passou e olhou pro patrão do meu lado e pediu qualquer coisa, mas o patrão não deu nada, só levantou a mão assim, como por instinto. Depois, quando o negão já tinha ido embora, ele murmurou algo como puto miserável, sujo de merda e no começo eu me confundi, porque pensei que ele estava falando do negão.

Mas aí, meio que pra compensar, mas também um pouco para provar que eu tava errada, ele virou pra mim e estava rindo assim, bem esquisito. Aí ele apontou para os prédios e falou nossa nossa nossa, e não parecia que era ele, o patrão fino de roupa chique que tava falando. Porque eu esperaria que ele falasse assim:

—Nossa, nossa, nossa!

...mas ele falou nossa nossa nossa, mesmo. Aí ele estava falando comigo, então eu fiquei olhando enquanto ele apontava para os prédios e falava você tá na maior avenida da maior cidade do maior país da América Latina, cada prédio desses é uma peça de um motor de um carro que é um continente, e aqui estão os teatros e cinemas e cada banca dessas que tem mais livros bons do que muita biblioteca, e falou mais um monte de coisa sobre poesia e sobre a vida noturna, ou seja lá o que for.

E como ele falava sem parar, eu ficava olhando assim, e rindo porque no fundo ele tava falando muita coisa boa, mas não boa pra mim. Bom mesmo foi que ele levantou e me deu cinco reais e até agora eu não entendi nada do que aconteceu, mas guardei o dinheiro bem, no bolso, enquanto ele saía andando, rindo e ainda mais bêbado.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Parte IV – Traição

Durante todo o percurso, Heitor não se perguntara porque havia ido de metrô. Antes, ele achara que pensaria nisso, e mesmo agora enquanto saía da estação camuflado pela multidão, o assunto vinha à sua mente, mas durante o percurso, somente pensava no calafrio que lhe subia pela espinha.

Talvez por pensar nisso, talvez por não estar acostumado à região, saiu andando para a direção errada. Imediatamente, percebeu o erro, mas por alguma razão, não quis reconhecê-lo diante dos outros, em uma vergonha que talvez não existiria em outro dia qualquer. Sabendo que estava naquela estação por um motivo obscuro, não quis admitir outra falha — esta em sua orientação, aquela em seu caráter — diante de todos.

Assim, andou ainda alguns passos na direção contrária à pretendida, xingando-se a cada passo, sabendo que cada metro andado apenas tornaria mais longo seu caminho na volta. Por alguma razão, os xingamentos a tal atitude lhe vieram à cabeça de forma um tanto erudita, em contradição a seus pensamentos normalmente chulos.

—Que figura idiota, andando para o lado errado, andando na contra-mão de seus interesses! Que pessoa estúpida, ridícula, embaraçosa; que criatura desprezível e vil; que ser repugnante, que anda na contra-mão da moralidade, e ainda o faz de maneira tão impensada! Que cede aos impulsos, que se deixa levar pelos instintos! Sujo, sujo, sujo!
E ainda outra voz lhe sussurrava no ouvido, em tom ainda mais antiquado:
—És tu, és tu.

O conjunto de seus pensamentos era, porém, tão ridículo que ele ignorou o momento de autodepreciação, atravessou a rua, contornou um quarteirão e pôs-se, sem que ninguém o notasse, de volta ao caminho correto — ao menos no que dizia respeito aos seus interesses, senão no da moralidade. Logo, podia enxergar o bar em que o encontro fora marcado, ainda distante algumas quadras.


Fora mais fácil do que ele imaginava, marcar o encontro. A lembrança das conversas eternizadas no papel teve um efeito surpreendente sobre Laura, que não escondeu por muito tempo o desejo de reviver momentos como aqueles. Dois dias depois, marcaram a data e o local em que se veriam após tantos anos. Depois, foi necessário apenas inventar uma desculpa para a esposa.

A esposa. Pensar nela agora, enquanto apenas algumas quadras o separavam do local em que, pela primeira vez desde o começo do namoro, encontrar-se-ia com outra mulher, era particularmente doloroso. Pensar no fato de que aquela era sua primeira escorregada desde o começo do namoro doeu ainda mais e a dor fez Heitor duvidar.

Duvidar era um problema. Porque suas pernas tremiam e ele xingou a esposa em pensamento, por não conseguir se controlar. A esposa fora particularmente amorosa no café da manhã, e aquilo era muito irritante. Por que ela não entendia? Por que não enxergava? E se enxergava — deveria enxergar, não é possível que fosse tão cega —, por que agia daquele modo, por que se esforçava tanto para que tudo desse certo?
Era o tipo de atitude que ela costumava tomar. Exatamente a postura burra e irracional pela qual Heitor se apaixonara.

Ele parou.

Não era hora para isso, mas ele não pôde continuar. Faltava tão pouco, agora, ele sabia, mas não conseguia seguir em frente. Suava, chorava, sua garganta doía, suas mãos comprimiam-se contra o rosto, suas pernas estavam inseguras.

Sentou-se no chão, pensou mil coisas em um segundo e depois levantou-se e voltou para casa.


Não era exatamente remorso. O que ele sentia pela esposa não havia mudado — ele apenas havia sido assolado pela lembrança dos sentimentos que já possuía. Isso equivalia a uma equiparação da esposa com Laura, já que, ele percebia, seus sentimentos em relação à antiga colega derivavam, também, dessa saudade deturpada, que omite tudo o que há de cotidiano, e nos faz pensar no passado como algo essencialmente extraordinário.

Heitor não estava, de fato, apaixonado por Laura, conforme agora parecia óbvio. Ele apenas se agarrava a ela como uma forma de retomar tempos que não poderiam voltar de outra forma; a idade lhe atingira de forma dolorosa, a memória dos tempos universitários despertara um sentimento até então desconhecido, e a possibilidade de reviver esses tempos por meio de sua antiga paixão lhe parecera tentadora.

A idéia, que lhe parecera tão boa quando analisada no ímpeto de seus instintos, não poderia sobreviver a uma análise racional como a que ora fazia. Abdicar do amor em troca da paixão não fazia nenhum sentido quando o assunto era avaliado de forma mais cautelosa, porque o amor é um fim inevitável a que todo ser humano chega e seria impossível sobreviver sem ele. A rotina, que outrora lhe parecera tão insuportável, agora se apresentava como uma forma de proteção sem a qual ele jamais poderia enfrentar o mundo, devido à própria natureza dos sentimentos impulsivos: eles ardem com uma intensidade tamanha que são capazes de ofuscar todo o resto e, no entanto, consomem-se rapidamente, extinguindo-se antes que se possa tirar deles todo o proveito que se gostaria.
E era por isso que, agora, andava de volta para o metrô e ocupava novamente uma cadeira em que poderia se manter o mais afastado possível das demais pessoas. Exausto, deixou a cabeça tombar sobre o encosto — demasiado baixo, demasiado incômodo — da cadeira do trem, enquanto observava, quase sem perceber, as paredes do túnel passando alucinadas pelas janelas do vagão.

Voltava para casa.


Quando chegou, estava em frangalhos. Seria justo que a esposa, surpreendida pela volta precoce do marido, estivesse com outro homem no momento. Seria o mais correto, e cada lágrima que o marido derramasse então escorreria com merecimento.

No entanto, a esposa estava sozinha, lendo um livro. Recebeu o marido com um abraço e não insistiu quando ele não conseguiu explicar o que houve. Ali, Heitor teve certeza de que tomara a decisão correta ao desistir do encontro. Viram televisão juntos, como há tempos não faziam, jantaram fora, foram um casal novamente.

A vida podia, mesmo, ser maravilhosa. E ainda assim, como que para justificar o título do texto, no bar acertado, na hora combinada, ninguém esteve a esperar por Heitor.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Parte III – Amor real, paixão virtual

Naquele dia, apesar da ansiedade, não teve pressa em sair do trabalho. Voltou para casa tarde, fingiu-se de cansado, falou pouco durante o jantar. Escondeu a pasta do trabalho logo que terminou a refeição, sentindo um medo irracional de que sua mulher pudesse revistá-la, encontrando o caderno com as conversas; depois, sentou-se para ver TV e esperar o tempo passar.

Talvez percebendo alguma mudança no relacionamento, porém, a esposa apresentou-se convidativa, sensual. Sentou-se próxima a ele vestindo uma camisola que ele apreciava, e que em outros tempos teria chamado sua atenção imediatamente. Nesse dia, ele não parecia muito interessado, mas acabou cedendo. Levou-a para o quarto e a possuiu pensando na outra, esperou que ela chegasse ao clímax, mas, quando foi sua vez, sentiu-se abatido e culpado.

Por fim, quando ela beijou-lhe a face e perguntou-lhe como havia sido, ele quis chorar. No entanto, apenas respondeu que Foi bom, e pra você?, mas não prestou atenção na resposta. Fechou os olhos e viu o rosto de Laura a condenar-lhe. Depois, odiou-se e culpou a esposa por seu ódio. Culpava-a por amá-lo em uma situação como aquela, por ser incapaz de ver que as coisas não poderiam estar certas. Que seja, pensou, em breve estarei no computador a dedicar-me a uma paixão que valha a pena.


Mais tarde, após terem se banhado separadamente, a esposa deitou-se e chamou Heitor para acompanhá-la. Ele disse que não, que havia algo que precisava fazer, mas que em breve haveria de deitar-se. Foi, então, para o computador, conforme vinha fazendo desde aquele dia — o dia do show.

Naquela ocasião, duas semanas antes, ele criou um perfil novo em um site de relacionamento (porque, obviamente, não queria que suas conversas com Laura se misturassem com as com a esposa), encontrara o perfil da antiga amiga no mesmo site, descobrira seu e-mail atual e outros dados úteis, como o fato de estar solteira. Mandou a ela uma mensagem através do tal site, na qual dizia que sentia saudades, que encontrara fotos antigas, que era uma pena terem perdido contato.

Achou que seria só isso por aquela noite, mas surpreendentemente, a moça estava online e respondeu quase imediatamente. Não foi uma resposta calorosa, mas a conversa logo encaminhou-se, cheia de seus Por onde anda?, Que tem feito? e similares. Por fim, surgiu o convite pelo qual Heitor esperava, e ele ficou feliz ao perceber que não fora ele quem fez a proposta. Foi, de fato, a moça quem sugeriu que eles se utilizassem de um programa de bate-papo — um Messenger — para poderem falar-se melhor.

Durante todo o tempo, um calafrio percorria a sua espinha, conforme mentia descaradamente para a amiga. Disse que era solteiro, que estava na Internet porque uns amigos cancelaram — de última hora — uma partida de futebol, que seu perfil no site de relacionamento estava vazio porque acabara de ser criado (o que não é de todo falso, pensou). O calafrio, porém, não vinha de suas mentiras a Laura, mas da grande mentira à esposa. Era um calafrio delicioso.

Os dias se passaram e a sensação foi se tornando cada vez mais fraca — visto que o medo diminuía —, mas não menos prazerosa. As conversas se tornavam mais interessantes conforme a intimidade ia crescendo, e Heitor cuidava para que os sentimentos outrora partilhados pelos dois — sentimentos de paixão, não de amor — viessem à tona recorrentemente. O segredo era não parecer insistente demais, mas ao mesmo tempo não deixar o assunto morrer.

Por fim, conforme o fim da segunda semana ia se aproximando, como ele teve o prazer de perceber, Laura também já contava as horas para os encontros noturnos, em que diálogos cada vez mais acalorados eram travados. Só seria preciso mais um empurrãozinho para que um encontro fosse marcado.

E agora Heitor tinha no caderno com as conversas uma arma secreta.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Parte II – Do Amor e da Paixão

Novamente, estava fuçando em seu armário de velharias. Não sabia exatamente por que tinha guardado tudo aquilo, mas agora agradecia por ter resistido à tentação de esvaziá-lo anos atrás. Era horário de almoço, e ele havia voltado para casa somente para procurar aquilo, enquanto sua mulher não estava. E, quando achou, percebeu que havia uma quantidade absurda de poeira.

Pensou em chamar a empregada para limpar, não apenas porque era por isso que ele a pagava, mas também porque era tremendamente alérgico. No último momento, porém, desistiu. Não sabia exatamente por que desistira, mas sentia que o caderno — era isso o que procurava — era algo muito particular para ser manuseado por outra pessoa. Então, virando a cara de lado com um certo receio, espanou com um pano as anotações.
Só então, começou a lê-las, com muito mais emoção do que jamais sentira. Muito mais do que quando as havia lido nos idos tempos do primeiro ano da faculdade, quando usava o caderno para eternizar conversas silenciosas com a então amiga. Conforme passavam-se as páginas, apimentavam-se as discussões, até que o verbo “amar” surgiu em meio a tantos outros. Inicialmente, tímido, um amor que não sabe se é, que não sabe se ama, mesmo. Depois, foi se tornando mais recorrente, até que todas as conversas passaram a girar em torno dele.

Mas era um verbo, apenas, porque à época não havia amor real. Havia paixão, talvez; desejo, certamente. Amor? Não. O amor não poderia existir naqueles tempos, eram jovens demais. O amor vem com os anos, o amor é um tipo confortável de cansaço, de preguiça. O amor conforma-se com o que é, ao contrário do sentimento ambicioso que outrora nutriam. À época, desejavam-se de forma ardente, incontida.

Não era como com sua esposa atual. Com ela, havia a comodidade de saber-se que alguém estará sempre lá. Não mais do que isso. Era meio triste chegar a essa conclusão, porque no começo, desejavam-se, também, de forma louca, irracional. O tempo é, pensou, um carrasco. Porque transforma em amor as paixões. Ao Diabo com o amor!
E era por isso que, agora, lia com tanto gosto suas conversas mudas com Laura. Porque sobre elas o tempo jamais poderia agir. Entre ele e Laura, o tempo não ousaria interferir.
No entanto, o tempo ousou passar e ele precisou voltar correndo para o escritório, escondendo o caderno em sua pasta de trabalho. Durante o resto do dia, quase não produziu. Só pensava naquela hora — a única do dia — de que dispunha só para si.

Volta ao Mundo em Oitenta Dias

Em suas viagens, andou de trens e elefantes, comeu gato por lebre, salvou uma dama que seria sacrificada, cruzou oceanos e se valeu do fuso horário para ganhar uma aposta. Mas apenas 80 dias de tratamento e abstinência foram suficientes para ele ser liberado da clínica de reabilitação.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Manhã Seguinte

Quando acordou, sua cabeça latejava. Estava, ainda, um pouco tonto, e não se lembrava de absolutamente nada da noite anterior. Virou-se na cama para pegar o que sobrara de água em um copo deixado providencialmente no criado mudo, e acabou se deparando com Lívia.

A esposa dormia e parecia tranquila. Haveriam feito amor? Tentou se lembrar, mas nada lhe veio. A ultima coisa de que se recordava era a conversa animada após a segunda garrafa de vinho. Falavam de comemorações. Ou talvez de viagens; era possível.

Ele passou os dedos no cabelo dela com o objetivo confesso de acordá-la, conhecedor que era de seu sono leve. Mas ela nem se moveu. Devia estar mais cansada que de costume, pensou ele. A noite fora mesmo boa.

No entanto, conforme a observava dormir, a preocupação começou a crescer, porque ninguém pode ter a consciência tão tranqüila quando se bebe ou quando se vive um relacionamento amoroso — e ele se enquadrava em ambas as situações. Não seria possível que o cansaço justificasse um sono tão mais pesado que o costume. Era impossível que ela não tivesse acordado. E a respiração da moça? Estaria mesmo regular? E seus olhos, será que não haviam se movido um pouco? Prestou atenção por algum tempo, e embora não tivesse visto nada de significativo, ficou certo de que ela não estava dormindo, também porque o casamento dá ao cônjuge essa prerrogativa de inferir certezas a cerca do parceiro com base em suas próprias idéias e temores.

Assim, ele tinha certeza de que ela fingia, mas precisava descobrir por quê. Será que a conversa entusiasmada sobre uma segunda lua de mel — sim, com certeza era esse o tema da conversa — não havia evoluído para uma noite de prazeres, mas para uma briga? Será que, embriagado, ele havia feito algum comentário que desagradara a parceira? Haveria ele provocado a ira da companheira logo agora, que iam tão bem?

Ou pior: será que a conversa teria de fato evoluído para o sexo, mas este fora tão ruim, tão completamente desagradável para ela, que ela já não quereria sequer imaginar uma segunda lua de mel? Não quereria sequer deixar que ele soubesse que estava acordada?

Mas seria uma injustiça, pensou ele, julgá-lo por uma única noite, após tantas! E ainda mais sendo uma noite em que estivera bêbado!

Típico dela, levar em conta sempre somente suas falhas, ignorando quaisquer virtudes. Sempre fora assim, e, em verdade, era claro que o relacionamento só sobrevivera graças aos esforços dele, porque ela só se importava com o próprio nariz. Que, por sinal, nem era tão bonito assim, observou ele, já sentindo uma onda de raiva. Por que ela continuava fingindo? Por que ela estava brigada com ele, quando ele era claramente a vítima?

Por Deus, estava a ponto de bradar, mas então viu que ela sorria e que, ao lado do copo que ele terminara de beber, estava a embalagem das pílulas para dormir que ela costumava tomar sempre que bebia.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Crime

Ela estava morta em seus braços, mas ele ainda a apertava com tanta força que até os legistas se comoveram. Claro que isso foi antes de descobrirem a causa mortis: esganamento.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Parte I - A Hora do Show

I

“A man can be happy with any woman as long as he does not love her.“

(Oscar Wilde)

Parte I - A Hora do Show

Antes de fechar a janela, deu uma última espiada na cidade, quase toda adormecida. Uma névoa fraca cobria as ruas escuras e tornava pálidas as janelas dos carros, mas aqui e ali, ainda eram visíveis, através das janelas, luzes acesas. Notívagos como ele.

No quarto ao lado, a esposa dormia. Aquela era a única hora do dia de que dispunha para si próprio, e ele sabia muito bem como a aproveitaria. Vinha pensando naquilo havia algum tempo, e decidira que não poderia mais postergar. A excitação já tomava conta de si. Estava no escritório, um quartinho pequeno. Havia iluminação forte, mas as lâmpadas estavam todas apagadas, com exceção da do abajur sobre a escrivaninha.

Respirou fundo, deu uma última espiada na esposa adormecida. Não havia nenhuma sombra de ternura em seu olhar; estava apenas checando. Fechou a porta e a trancou, virou-se, sentou-se na cadeira rotatória e ligou o computador. Era hora do show.

Tudo começou cerca de três semanas antes, quando ele estava revirando o armário procurando algo que já não se lembra o que era. Na ocasião, interrompeu sua busca por encontrar um álbum de fotos, dos tempos de faculdade. Sentou-se no chão e começou a lembrar-se, a procurar o rosto dos amigos. Alguns ele não via havia anos, e começou a imaginar o que eles faziam agora. Outros haviam mantido o contato, e ele ficou pensando o quanto eles haviam mudado nesses cinco anos.

As roupas desleixadas haviam sido substituídas por ternos, o cabelo longo fora trocado por cortes comportados, os bolsos, outrora vazios agora abrigavam carteiras recheadas. Havia fotos de algumas festas, de alguns eventos. E então, as fotos de uma viagem que fizera com alguns deles. Todos rindo, ao lado da churrasqueira (precisaria marcar um “churras” para matar a saudade), todos pulando na piscina.

E então, a foto que mudara tudo.

Lá estava ele, mas nem parecia. Na época, não tinha a barriguinha que hoje cultivava, e o peito — visível, já que estava apenas de bermuda de banho — recebia os cuidados de exercícios diários. Ao seu lado, de biquini e portando um sorriso maravilhoso, Laura. E ela era linda, e Heitor sabia disso, porque tivera um caso com ela, naquela época. Durou pouco, trocaram alguns beijos, apenas, e foi só; e foi tudo.

E agora, lá estava ela, novamente. Heitor perguntou-se como ela estaria hoje, mas, mais do que isso, perguntou-se como seria sua vida com ela. Amava sua mulher, ou pelo menos achava que a amava, mas o casamento vinha se tornando tedioso, e o tempo conseguiu enfraquecer a paixão e destacar aquelas pequenas desavenças.

Ele nunca havia cogitado trair sua esposa, mas o que pretendia fazer não seria traição. Seria? Não, achava que não, e se achava que não a estava traindo, então certamente não estava, certo? Bem, claro que havia aquela sensação de proibido, mas era aí que estava a graça. Na primeira semana, fantasiou com uma vida diferente, na qual teria dado uma chance à paixão do primeiro ano de faculdade, dez anos atrás. Na segunda, começou a criar em sua mente problemas que nunca antes havia visto em seu casamento. E na terceira planejara o que faria a seguir.

Por isso, naquele dia, ligou o computador. Porque era hora do show.

Abandono

"Eu te dou carona para onde quiseres, amor. É o mínimo que posso fazer em retribuição à benção de ser deixado sozinho."

Reconciliação

"Eu não tenho culpa se você não consegue ter um mínimo de racionalidade. Se não sabe discutir, e sempre acaba ficando nervosa, manipulando as palavras e ignorando meus argumentos. Não tenho culpa se você é estúpida demais para saber que uma discussão não tem necessariamente um vencedor.
E também não tenho paciência, mais, para suas birras infantis, sua cara zangada sem motivos, seu silêncio irritante. Chega!"

Foi o que eu queria ter dito. Mas ao invés disso, disse:
-- Desculpe.

Ela sorriu e me deu um beijinho. Agora, está tudo bem.

Um dia

Um dia, pode apostar
Que eu vou desligar o celular
E não vou mais te ouvir chamar
Nem vou te ouvir clamar
Ah, eu vou te abandonar!

Um dia, correrei
Pelas ruas onde, sei,
Serei visto com um rei
E farei a minha lei
Ah, eu te esquecerei!

Às mulheres, à bebida
Dedicarei a minha vida
Chega de quem me obriga
Me domina, me castiga
Ah, nem haverá despedida!

Será tamanha alegria
Você nem entenderia
Com certeza choraria
E eu tanto riria
Não hoje, mas um dia!