terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Parte II – Do Amor e da Paixão

Novamente, estava fuçando em seu armário de velharias. Não sabia exatamente por que tinha guardado tudo aquilo, mas agora agradecia por ter resistido à tentação de esvaziá-lo anos atrás. Era horário de almoço, e ele havia voltado para casa somente para procurar aquilo, enquanto sua mulher não estava. E, quando achou, percebeu que havia uma quantidade absurda de poeira.

Pensou em chamar a empregada para limpar, não apenas porque era por isso que ele a pagava, mas também porque era tremendamente alérgico. No último momento, porém, desistiu. Não sabia exatamente por que desistira, mas sentia que o caderno — era isso o que procurava — era algo muito particular para ser manuseado por outra pessoa. Então, virando a cara de lado com um certo receio, espanou com um pano as anotações.
Só então, começou a lê-las, com muito mais emoção do que jamais sentira. Muito mais do que quando as havia lido nos idos tempos do primeiro ano da faculdade, quando usava o caderno para eternizar conversas silenciosas com a então amiga. Conforme passavam-se as páginas, apimentavam-se as discussões, até que o verbo “amar” surgiu em meio a tantos outros. Inicialmente, tímido, um amor que não sabe se é, que não sabe se ama, mesmo. Depois, foi se tornando mais recorrente, até que todas as conversas passaram a girar em torno dele.

Mas era um verbo, apenas, porque à época não havia amor real. Havia paixão, talvez; desejo, certamente. Amor? Não. O amor não poderia existir naqueles tempos, eram jovens demais. O amor vem com os anos, o amor é um tipo confortável de cansaço, de preguiça. O amor conforma-se com o que é, ao contrário do sentimento ambicioso que outrora nutriam. À época, desejavam-se de forma ardente, incontida.

Não era como com sua esposa atual. Com ela, havia a comodidade de saber-se que alguém estará sempre lá. Não mais do que isso. Era meio triste chegar a essa conclusão, porque no começo, desejavam-se, também, de forma louca, irracional. O tempo é, pensou, um carrasco. Porque transforma em amor as paixões. Ao Diabo com o amor!
E era por isso que, agora, lia com tanto gosto suas conversas mudas com Laura. Porque sobre elas o tempo jamais poderia agir. Entre ele e Laura, o tempo não ousaria interferir.
No entanto, o tempo ousou passar e ele precisou voltar correndo para o escritório, escondendo o caderno em sua pasta de trabalho. Durante o resto do dia, quase não produziu. Só pensava naquela hora — a única do dia — de que dispunha só para si.

Volta ao Mundo em Oitenta Dias

Em suas viagens, andou de trens e elefantes, comeu gato por lebre, salvou uma dama que seria sacrificada, cruzou oceanos e se valeu do fuso horário para ganhar uma aposta. Mas apenas 80 dias de tratamento e abstinência foram suficientes para ele ser liberado da clínica de reabilitação.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Manhã Seguinte

Quando acordou, sua cabeça latejava. Estava, ainda, um pouco tonto, e não se lembrava de absolutamente nada da noite anterior. Virou-se na cama para pegar o que sobrara de água em um copo deixado providencialmente no criado mudo, e acabou se deparando com Lívia.

A esposa dormia e parecia tranquila. Haveriam feito amor? Tentou se lembrar, mas nada lhe veio. A ultima coisa de que se recordava era a conversa animada após a segunda garrafa de vinho. Falavam de comemorações. Ou talvez de viagens; era possível.

Ele passou os dedos no cabelo dela com o objetivo confesso de acordá-la, conhecedor que era de seu sono leve. Mas ela nem se moveu. Devia estar mais cansada que de costume, pensou ele. A noite fora mesmo boa.

No entanto, conforme a observava dormir, a preocupação começou a crescer, porque ninguém pode ter a consciência tão tranqüila quando se bebe ou quando se vive um relacionamento amoroso — e ele se enquadrava em ambas as situações. Não seria possível que o cansaço justificasse um sono tão mais pesado que o costume. Era impossível que ela não tivesse acordado. E a respiração da moça? Estaria mesmo regular? E seus olhos, será que não haviam se movido um pouco? Prestou atenção por algum tempo, e embora não tivesse visto nada de significativo, ficou certo de que ela não estava dormindo, também porque o casamento dá ao cônjuge essa prerrogativa de inferir certezas a cerca do parceiro com base em suas próprias idéias e temores.

Assim, ele tinha certeza de que ela fingia, mas precisava descobrir por quê. Será que a conversa entusiasmada sobre uma segunda lua de mel — sim, com certeza era esse o tema da conversa — não havia evoluído para uma noite de prazeres, mas para uma briga? Será que, embriagado, ele havia feito algum comentário que desagradara a parceira? Haveria ele provocado a ira da companheira logo agora, que iam tão bem?

Ou pior: será que a conversa teria de fato evoluído para o sexo, mas este fora tão ruim, tão completamente desagradável para ela, que ela já não quereria sequer imaginar uma segunda lua de mel? Não quereria sequer deixar que ele soubesse que estava acordada?

Mas seria uma injustiça, pensou ele, julgá-lo por uma única noite, após tantas! E ainda mais sendo uma noite em que estivera bêbado!

Típico dela, levar em conta sempre somente suas falhas, ignorando quaisquer virtudes. Sempre fora assim, e, em verdade, era claro que o relacionamento só sobrevivera graças aos esforços dele, porque ela só se importava com o próprio nariz. Que, por sinal, nem era tão bonito assim, observou ele, já sentindo uma onda de raiva. Por que ela continuava fingindo? Por que ela estava brigada com ele, quando ele era claramente a vítima?

Por Deus, estava a ponto de bradar, mas então viu que ela sorria e que, ao lado do copo que ele terminara de beber, estava a embalagem das pílulas para dormir que ela costumava tomar sempre que bebia.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Crime

Ela estava morta em seus braços, mas ele ainda a apertava com tanta força que até os legistas se comoveram. Claro que isso foi antes de descobrirem a causa mortis: esganamento.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Parte I - A Hora do Show

I

“A man can be happy with any woman as long as he does not love her.“

(Oscar Wilde)

Parte I - A Hora do Show

Antes de fechar a janela, deu uma última espiada na cidade, quase toda adormecida. Uma névoa fraca cobria as ruas escuras e tornava pálidas as janelas dos carros, mas aqui e ali, ainda eram visíveis, através das janelas, luzes acesas. Notívagos como ele.

No quarto ao lado, a esposa dormia. Aquela era a única hora do dia de que dispunha para si próprio, e ele sabia muito bem como a aproveitaria. Vinha pensando naquilo havia algum tempo, e decidira que não poderia mais postergar. A excitação já tomava conta de si. Estava no escritório, um quartinho pequeno. Havia iluminação forte, mas as lâmpadas estavam todas apagadas, com exceção da do abajur sobre a escrivaninha.

Respirou fundo, deu uma última espiada na esposa adormecida. Não havia nenhuma sombra de ternura em seu olhar; estava apenas checando. Fechou a porta e a trancou, virou-se, sentou-se na cadeira rotatória e ligou o computador. Era hora do show.

Tudo começou cerca de três semanas antes, quando ele estava revirando o armário procurando algo que já não se lembra o que era. Na ocasião, interrompeu sua busca por encontrar um álbum de fotos, dos tempos de faculdade. Sentou-se no chão e começou a lembrar-se, a procurar o rosto dos amigos. Alguns ele não via havia anos, e começou a imaginar o que eles faziam agora. Outros haviam mantido o contato, e ele ficou pensando o quanto eles haviam mudado nesses cinco anos.

As roupas desleixadas haviam sido substituídas por ternos, o cabelo longo fora trocado por cortes comportados, os bolsos, outrora vazios agora abrigavam carteiras recheadas. Havia fotos de algumas festas, de alguns eventos. E então, as fotos de uma viagem que fizera com alguns deles. Todos rindo, ao lado da churrasqueira (precisaria marcar um “churras” para matar a saudade), todos pulando na piscina.

E então, a foto que mudara tudo.

Lá estava ele, mas nem parecia. Na época, não tinha a barriguinha que hoje cultivava, e o peito — visível, já que estava apenas de bermuda de banho — recebia os cuidados de exercícios diários. Ao seu lado, de biquini e portando um sorriso maravilhoso, Laura. E ela era linda, e Heitor sabia disso, porque tivera um caso com ela, naquela época. Durou pouco, trocaram alguns beijos, apenas, e foi só; e foi tudo.

E agora, lá estava ela, novamente. Heitor perguntou-se como ela estaria hoje, mas, mais do que isso, perguntou-se como seria sua vida com ela. Amava sua mulher, ou pelo menos achava que a amava, mas o casamento vinha se tornando tedioso, e o tempo conseguiu enfraquecer a paixão e destacar aquelas pequenas desavenças.

Ele nunca havia cogitado trair sua esposa, mas o que pretendia fazer não seria traição. Seria? Não, achava que não, e se achava que não a estava traindo, então certamente não estava, certo? Bem, claro que havia aquela sensação de proibido, mas era aí que estava a graça. Na primeira semana, fantasiou com uma vida diferente, na qual teria dado uma chance à paixão do primeiro ano de faculdade, dez anos atrás. Na segunda, começou a criar em sua mente problemas que nunca antes havia visto em seu casamento. E na terceira planejara o que faria a seguir.

Por isso, naquele dia, ligou o computador. Porque era hora do show.

Abandono

"Eu te dou carona para onde quiseres, amor. É o mínimo que posso fazer em retribuição à benção de ser deixado sozinho."

Reconciliação

"Eu não tenho culpa se você não consegue ter um mínimo de racionalidade. Se não sabe discutir, e sempre acaba ficando nervosa, manipulando as palavras e ignorando meus argumentos. Não tenho culpa se você é estúpida demais para saber que uma discussão não tem necessariamente um vencedor.
E também não tenho paciência, mais, para suas birras infantis, sua cara zangada sem motivos, seu silêncio irritante. Chega!"

Foi o que eu queria ter dito. Mas ao invés disso, disse:
-- Desculpe.

Ela sorriu e me deu um beijinho. Agora, está tudo bem.

Um dia

Um dia, pode apostar
Que eu vou desligar o celular
E não vou mais te ouvir chamar
Nem vou te ouvir clamar
Ah, eu vou te abandonar!

Um dia, correrei
Pelas ruas onde, sei,
Serei visto com um rei
E farei a minha lei
Ah, eu te esquecerei!

Às mulheres, à bebida
Dedicarei a minha vida
Chega de quem me obriga
Me domina, me castiga
Ah, nem haverá despedida!

Será tamanha alegria
Você nem entenderia
Com certeza choraria
E eu tanto riria
Não hoje, mas um dia!