sexta-feira, 23 de julho de 2010

Você está bêbado.

Não.
Está sim, olha o cheiro de cachaça.
Não dá pra olhar o cheiro, mas não, não, não é isso. Eu não estou bêbado, ou estar bêbado, também, que importa?
Você vem aqui, derruba as coisas...
Você não queria abrir a porta, não atendeu à campainha. Nem quando eu bati muito e fiquei gritando e a dona Inês falou que ia chamar a polícia e que eu era um vagabundo, mesmo assim, você não abriu.
Não precisava derrubar o vaso.
Fui eu que te dei a margarida.
Sim.
Do vaso.
Sim.
Aí eu tive que sair porque senão ela ia mesmo chamar a polícia então eu fui para o Flor e o Bruno estava lá e ele pediu uma garrafa de Seleta e eu chorei na frente dele aí eu voltei e pus o vaso no lugar então você não tem do que reclamar porque eu consertei tudo e porque a margarida fui eu que te dei e de qualquer forma ela já estava murcha mesmo e o cachorro tinha mijado em tudo mas agora está tudo limpo e tudo bem então abra a porta por favor ou eu vou ter que gritar e a dona Inês pode chamar a polícia ou talvez ela não chame mas não faz diferença porque eu preciso mesmo mesmo mesmo entrar em casa ah obrigado obrigado eu te amo tanto obrigado agora eu também não saio mais juro nem nos dias de jogo nem quando todo mundo for no Flor e eu quiser muito ir eu não vou eu vou ficar aqui.
Eu disse.
O quê?
Que você estava bêbado.

terça-feira, 20 de julho de 2010

eu sou agora

Eu sou agora (eu agora sou ou agora eu sou)
ou é só ver ali quem é a
criança naquela fotografia, certamente
não sou eu — eu sou agora.
As pessoas dizem, mas
não sou eu.

E eu não posso
comer esse doce
tragar esse fumo
sentar assim (desse jeito)
forçar meu joelho
por causa de um velho e
Eu quase odeio esse velho
porque eu quero sentar assim, de preferência apoiado no ombro e
[torcendo as costas e tomando cerveja e comendo torresmo
Mas eu não posso

Hoje alguém perguntou
O que você tem nessa mão
e eu disse que foi por causa de uma criança e que eu tenho fotos
[dela se alguém não acreditar
mas eu gosto dela
e acho que ela não gostava muito de mim
e eu não culpo ela por nada
e nem gosto do velho.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Naquela cidadezinha,

naquela vila do fim do mundo (lembra? ninguém era maior que a gente), eu nunca te imaginei de costas, tão maior do que eu. Eu te falei pra ir, um passe e um trem, que tinha tanta coisa lá fora, mas aqui tinha eu e você não quis, e eu fiquei, só eu, só eu, só eu e essa cidadezinha essa vila no fim do mundo.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Ela não é um personagem (12/03/09)

Ela acorda cedo, mas não é tão cedo assim. É cedo. Ela trabalha como caixa em um supermercado e é um trabalho bem chato, mas pelo menos ela não precisa pensar. Ganha mal e é mal tratada o dia todo. Também ri. Depois, sai correndo, perde o primeiro ônibus e a primeira aula na faculdade de turismo. Vai ouvindo música no celular, de pé e apertada — às vezes onde não gosta. Se é assim, ela briga mesmo e não tem vergonha de barraco. No intervalo da aula, vai à seção de alunos e explica que ainda não vai conseguir quitar a mensalidade do mês anterior, e depois aceita uma cerveja que amigos lhe pagam. Perde as duas aulas seguintes com eles e também a última, porque não saem ônibus depois das 22h30. Muda para um trem depois de cinqüenta minutos e só chega em casa depois da meia noite, quando os filhos já estão dormindo e o marido ainda está vendo TV. Ao contrário do que o discursinho ensaiado sugere, não se ressente, que é ele quem paga a faculdade. Nesse dia, que são todos, ela não janta. E dorme como um bebê.