quarta-feira, 24 de julho de 2013

Em outra realidade, seria assim


Eu estava com tanto sono que, sem me dar conta, desliguei o despertador e dormi de novo. Acordei às dez pras oito, irremediavelmente atrasado. Podia me trocar correndo (tomara banho logo antes de dormir, graças a Deus, então podia economizar esse tempo) e comer qualquer coisa enquanto andava até o ponto de ônibus, mas, se bem me conhecia, nunca chegaria ao banco antes das nove. Merda.
Saí de casa de roupa social e tênis, comendo uma banana meio madura demais. Quando cheguei à avenida, vi o meu ônibus saindo do ponto, do outro lado da rua. Depois, ainda teve um pouco de trânsito na subida até o metrô. Cheguei na estação do trabalho às nove e vinte.
Um pouco antes de entrar no prédio, quando já achava que tinha conseguido me safar, vi o flash. O repórter devia trabalhar pra algum tabloide, então veio com as perguntas de sempre: "De tênis, Gabriel? A essa hora?  E essas olheiras? Ontem teve balada?"
Não tive tempo de responder, porque os seguranças, sempre tempestivos, afastaram o sujeito. "A coletiva é às onze", falou um deles. "Você pode perguntar lá."

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Na homepage da UOL, uma manchete anunciava a provável saída de uma das nossas advogadas para o Santander. A matéria dizia que os detalhes estavam todos acertados, mas que o contrato só seria assinado depois do término de uma operação complexa em que estávamos trabalhando, a torcida podia ficar tranqüila quanto a isto. Um comentário xingava todos os advogados, indiscriminadamente, de mercenários e dizia que duvidava que fossem repor a perda à altura. Outro comentarista dizia que era assim mesmo, que a janela do meio do ano era terrível e que devíamos agradecer por a diretoria ter mantido a maior parte do elenco.
Enquanto isso, na minha frente, a tal advogada jurava de pé junto que não tinha nada resolvido quanto à sua saída, e nosso superintendente insistia para que trabalhássemos normalmente. "Esse Neto só fala bobagem, gente!", dizia, tranqüilizador. "Todo dia ele anuncia três ou quatro transferências..."
Para garantir um pouco mais de foco, minha gerente decidiu fazer uma reunião secreta, isto é: sem a presença da imprensa. Para os repórteres frustrados, repetiu o discurso dos seguranças: "Mais tarde tem coletiva. Vocês ficam sabendo dos detalhes lá."

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Eu odiava coletivas.
A conversa sobre a venda do passe da minha colega durou para sempre. Discussões sobre cifras, datas, detalhes do contrato de trabalho. Me parecia incrível que os telespectadores pudessem se interessar por qualquer coisa parecida. "Eu não decidi nada", a menina dizia, em vão. "Meu empresário recebeu algumas propostas, mas estou feliz aqui. Tenho que pensar na minha carreira." Os repórteres a ignoravam solenemente e seguiam perguntando sobre o acerto com os espanhóis.
Finalmente esgotado o assunto, um repórter perguntou se estávamos prontos para o clássico daquela tarde: um contrato de cessão fiduciária de direitos creditórios. Tomei o microfone e falei que faríamos como minha gerente ("a professô", no jargão jurídico) tinha orientado, que havíamos treinado cláusulas de excussão extrajudicial a semana toda e que eu estava confiante. Diplomático, emendei: "Mas clássico é clássico e vice e versa."

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Almoçamos no bandeijão para evitar os tietes na rua. Pés de frango, ricos em colágeno, mantém as articulações dos dedos firmes, propiciando a digitação perfeita; uma massa leve garante a energia para aturar horas de reunião sem o inconveniente do peso no estômago que uma carne traria; a limonada ou o suco de acerola garantem a vitamina C que previne resfriados que podem atrapalhar nosso desempenho; de sobremesa, delícia de abacaxi, porque, apesar do nome suspeito, é muito bom.

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O contrato de cessão teve transmissão ao vivo para todo o Brasil. Uma câmera filmava a tela do computador, outra flagrava cada movimento dos meus dedos. Uma terceira câmera, fixa em meu rosto, era equipada com sensores especiais que calculavam quantas vezes eu desviava os olhos para a janela. "Alt+tab de novo", reclamou um comentarista quando eu quis checar a tirinha nova do xkcd.
"O Gabriel não está se encontrando no jogo, hoje", concordou o narrador, antes de seguir elencando estatísticas de acesso à internet, velocidade de digitação e piadinhas inoportunas.
Decidi levantar, tomar um café e passar no banheiro, o que me fez deixar a mesa por alguns minutos. Durante esse tempo, a câmera transmitiu incessantemente meu desktop inativo, substituindo meu fundo de tela (uma imagem promocional do programa de incentivo ao ciclismo do banco) por animações tridimensionais envolvendo a marca dos patrocinadores do canal de tv. 
O narrador se empolgou quando eu voltei e, antes de começar a digitar, estralei teatralmente os dedos.

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No fim da tarde, estava encerrando umas ultimas pendências quando piscou na minha tela uma janela do programa de chat corporativo. Aproveitei que as câmeras estavam focadas em outro lugar (um advogado estava fazendo uma extensa busca de jurisprudência havia horas) para ler a mensagem, que presumia pessoal.
"Sabe essa história dos espanhóis?" perguntava a advogada objeto dos boatos.
"Sei, um saco, né?"
"É", ela confirmou, inserindo um emoticom pensativo. "Só que eu vou pra lá, mesmo..."
Manifestei minha incredulidade através de uma carinha composta por duas letras o separadas por diversos "sublinhados".
"Eu sei que não faz muito sentido, que é um retrocesso... Mas desde pequenininha eu sonhava em ir pra lá!", justificou. "Eu cresci vendo aquele time do Santander dos anos 90 jogando..."
Realmente, havia sido um grande time. Entendi que não adiantaria contrargumentar, então optei por perguntar se haveria algum evento de despedida ou coisa do tipo. Disse que sentiria a falta dela, o que provavelmente era verdade.
Pelo menos eu poderia chegar tarde, por uns dias, pois os tabloides teriam mais com que se preocupar.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Carona


1.

No dia 18 de maio, então no terceiro dia das minhas férias, postei no Facebook a informação de que estávamos a 80km do Itaú mais próximo. Na ocasião, estávamos em Cumuruxatiba e a agência em questão era a de Teixeira de Freitas.
Cinco pessoas “curtiram” a atualização de status, certamente interpretando-a corretamente como uma referência à distância que me separava de qualquer lembrança do meu trabalho. Num campo menos metafórico, porém, estar a 80km do Itaú significava não poder sacar dinheiro sem viajar 160km, em uma região em que praticamente nenhum estabelecimento aceitava cartão. A situação se agravou quando fomos para Corumbau (mais 60km, em estrada de terra) e, posteriormente, a Caraíva (mais uma meia hora de bugue e uma travessia de canoa).
Nosso plano era queimar um dia pegando um ônibus para Arraial d'Ajuda (saindo às 06:20, isso mesmo, às 06:20) para sacar dinheiro (e comer um picolé), mas felizmente compartilhamos essa ideia ingrata com a dona da pousada em que estávamos (a Pousada Lagoa --- aliás recomendadíssima) e ela propôs algo melhor: ela iria para Porto Seguro na sexta e voltaria no sábado; poderíamos depositar o valor que quiséssemos na conta dela e ela traria em dinheiro de lá. Parecia pouco usual, mas resolvia nosso problema, então fizemos.
Só que no domingo, quando íamos embora, a internet havia caído e a máquina do cartão de crédito não funcionava. A dona da pousada sabia que tínhamos dinheiro o bastante para pagar o que devíamos, visto que ela havia pessoalmente providenciado o saque, e sabia também que se o déssemos em pagamento, ficaríamos sem nada para os dias seguintes, voltando ao dilema anterior. Então, ela propôs que fôssemos embora sem pagar e depositássemos o valor depois, quando tivéssemos internet. “Mas a gente só vai voltar para São Paulo no fim da próxima semana”, protestamos, advogando contra nossa causa. “Não temos como garantir que teremos internet antes disso!” Ela disse que tudo bem, que pagássemos quando desse. E fomos.
O mesmo se repetiu na pousada em que dormimos na noite seguinte, em Corumbau, visto que a queda da internet aparentemente afetou a região toda. No entanto, pularei o relato para uns três dias depois, em Itaúnas, quando eu entrei em uma sorveteria (a sorveteria do Saulo, aquela com o sorvete gigante na frente --- aliás, recomendadíssima) disposto a pagar com uma nota de R$100 por um picolé de milho verde que custava R$1. Insurpreendentemente, o próprio Saulo disse que não teria como trocar o dinheiro. Quando eu fiz menção de sair, porém, ele me impediu: “Aqui, ninguém passa vontade. Leva o picolé e paga depois.”
Em comparação com todo o nosso consumo na pousada em Caraíva e com o pernoite em Corumbau, o fiado de um picolé de R$1 provavelmente parece pouco impressionante, mas as três histórias me alegraram em igual intensidade, e a confiança imotivada que todo mundo demonstrou por mim ao longo da viagem certamente ficará entre os pontos que mais me agradaram nessas férias.


2.

De Itaúnas, partimos para Belo Horizonte. Passamos o dia inteiro na estrada, demos dinheiro para dois grupos de colegiais que faziam pedágio no meio da BR (provando que Vanessão estava errada) e nos desculpamos com os dois grupos seguintes, por termos esgotado nossos trocados. Em um determinado momento, acho que uns duzentos quilometros Minas adentro, certamente a mais de 80km de qualquer coisa, Itaú ou não, topamos com uma mulher pedindo carona.
Era uma cena um pouco inusitada, a moça cheia de malas em uma divisão da estrada, longe de qualquer coisa. Como ela estava num ponto em que a estrada se dividia em três divisões possíveis, parada bem ali no meio, dava a impressão de que iria para qualquer lado que fosse.
Não parei.
Existem muitos motivos, normalmente ligados à segurança, para não dar carona a alguém na estrada. De algum modo, porém, eu não acho que eu tenha me sentido realmente ameaçado por uma mulher cheia de malas em um rincão perdido entre Minas e o Espírito Santo.
(Poucos metros depois, um outro sujeito fez menção de pedir carona, mas esse parecia não ter decidido se queria mesmo ir para algum lugar ou se estava bem, ali. Fiquemos na mulher.)
Apesar de tudo, ainda é possível racionalizar. Ela poderia ter uma arma com ela. Com aquele tanto de bagagem, ela poderia ter um arsenal --- se bobear, ela podia até ter algum capanga escondido na mala maior. Talvez (e a gente vive lendo histórias assim) ela fosse parte de uma quadrilha que, escondida ali perto, confiava na aparência inocente de uma mulher cheia de malas para assaltar os motoristas desavisados (ainda que essa estratégia pareça fraca, considerando quão poucos carros devem passar por aquela encruzilhada). Diacho, ela estava numa encruzilhada: vai que era o próprio coisa-ruim, em carne, osso e malvadeza?
Tudo isso é perfeitamente possível, provável, até. (Não.)
Mas, sei lá: nem a crença (digamos) nisso impede que eu me aborreça por não ter parado. Na verdade, acho que eu sempre preferi acreditar que, caso a falência das boas ações seja mesmo inevitável, eu seria a vítima bem intencionada antes de ser o cético que, por inação, minaria também a fé alheia.
Agora, eu sei.