Eu já nem sei quanto tempo faz que eu percebi que sou diferente. Que eu não vejo as coisas e as pessoas do mesmo jeito que meus amigos, ou do jeito que a maioria das pessoas parece achar que eu deveria ver. Um dia eu devo ter acordado e entendido que eu tinha que fazer alguma coisa.
Desde então, eu caço fantasmas.
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Não é tão ruim assim. Tecnicamente, eles não podem fazer nada contra você, já que não têm um corpo físico, não têm massa, não têm armas. Grosso modo, eles não podem te machucar.
Mesmo assim, eles estão sempre lá. Às vezes, no meio de um jantar em um restaurante, eu os vejo num canto, olhando sem saber se eu sei o que eles são. Às vezes eles fingem que não me viram, fingem que eu não tenho nada com eles, quando eu cruzo com eles em um parque. Nessas horas, eu preciso pedir licença para a pessoa que está comigo, deixar os talheres sobre o guardanapo ou no canto do prato, tomar mais um gole de uísque e caminhar até eles para golpeá-los com toda a boa vontade de que eu disponha.
Eu tenho algumas armas, também, claro. Álcool, em geral, mas também um cigarro fumado devagar, minha música favorita etc. Coisas assim. Eles detestam essas armas e é só usá-las direito para vê-los desmanchando e virando fumaça até sumir. Até que, é claro, um dia estarei em um restaurante ou parque ou teatro e eles virão de novo, se juntando em algum canto, se movendo como as sombras que são e esperando a hora certa pra nos apunhalar.
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Eu comecei a levar o negócio a sério um dia, voltando pra casa. Eu saía do trabalho às 18h e voltava a pé; era um percurso de vinte e poucos minutos no máximo. Nesse dia, quando eu passei por um trecho mais escuro, eu vi uma menina vindo e uns três ou quatro fantasmas atrás dela. Eram vultos enormes, horríveis. Na hora, eu sabia exatamente o que tinha que fazer e fiz: apertei o passo e voltei logo pra casa, o coração acelerado, o suor correndo frio.
Então eu deitei na minha cama, esperei minha respiração voltar ao normal e percebi que eu queria voltar lá. Eu levantei, lavei o rosto, respirei fundo e fui.
Quando eu cheguei, não encontrei ninguém. A rua estava ainda mais escura porque alguma nuvem devia ter coberto a lua, ou porque algum vizinho devia ter apagado a luz que brilhava pela janela, mas fosse qual fosse a razão, eu não conseguia enxergar qualquer coisa a mais de quatro ou cinco metros de distância e aquilo me apavorou. Eu me arrependi de ter ido, olha só, me arrependi de verdade de ter feito algo de que eu queria me orgulhar muito.
Então eles surgiram. Milhares deles, acho. Eu nunca havia visto tantos. Eles pularam em cima de mim, esconderam toda a luz, me encheram de um medo absurdo. Eu não sei direito o que achei que fosse me acontecer, porque era um medo meio irracional, era como o medo de uma montanha-russa que sabemos ser segura ou como, sei lá, como se apaixonar.
Eu fechei os olhos, me encolhi, gritei com todo o meu fôlego e então ela veio, a mesma menina de antes. Do meio dos fantasmas, do meio do escuro do meu mundo ela veio e me puxou e a gente correu pra sempre, pra longe dali, pra um lugar qualquer com luz e que pra mim foi o lugar mais lindo do mundo.
Foi nesse dia que eu a conheci e que eu decidi que aquilo era o que eu ia fazer pra sempre: andar do lado dela fosse como fosse, caçando fantasmas.
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A reação inicial não foi das melhores. As pessoas não aceitaram bem, no começo. Pensando bem, não aceitaram bem até agora. Meus pais, minha família próxima, os amigos mais chegados, esses não tiveram muito o que fazer além dos esperneios que lhes são habituais e, seja por boa vontade ou cansaço, acabaram entendendo.
Depois de um primeiro momento é até possível que tenham achado bom que eu tenha me encontrado, assim. Mas os outros, esses que são mais distantes e que menos deveriam se intrometer na minha vida, bem, são esses os que mais se chocam, os que me olham como se a alguma aberração da natureza ou como se eu portasse alguma insanidade incurável.
E eu até entendo, um pouco. Não gosto, mas entendo. Não deve ser fácil, afinal, para uma pessoa qualquer na farmácia ou em um órgão do governo me passar um formulário qualquer para preencher e ver lá, entre meus dados, a declaração escrita e inegável do completo absurdo, do impossível, do imoral: atividade profissional: caça de fantasmas. Paciência. É quem eu sou. É o que eu sou.
Também é óbvio que não faltaram as conversas pretensamente sérias, as orientações supostamente visantes ao meu bem. Não é uma vida fácil, eles diziam e era óbvio, você vai ter que lidar com a rejeição dos outros, com as dificuldades extras, com o preconceito.
Diziam e diziam por bem, claro; diziam com intenções boas, mas isso lá é coisa que se diga? Como se caçar fantasmas fosse algo assim que se possa abandonar a gosto, como se eu fosse chegar pra ela, a companheira que eu escolhi e fosse dizer é só você, agora, eu não gosto mais dessa coisa, desse negócio de caçar fantasmas. Não ia, claro.
Ou podia ser ainda pior e talvez eu dissesse, talvez eu abandonasse mesmo minha arte escolhida (melhor dizendo: minha arte e minha escolhida) e aí me parece que tudo seria ainda pior, que o ressentimento seria infinito, a culpa mútua e o constrangimento, também. Então, não disse nada, apenas sorri aos avisos todos, disse que agradecia as dicas, mas que agora precisava pegar minhas armas, meu maço de cigarros, minhas citações favoritas do Neruda e sair para a noite, que é onde os fantasmas vivem melhor.
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Na nossa primeira noite fora, resolvemos começar nosso trabalho em um bar que ela conhecia. Era um lugar com fama de ser supostamente apreciado por outros como nós, mas isso não pesou demais na decisão, tendo contado mais que os coquetéis fossem bons e os preços razoáveis.
Logo depois de nos encontrarmos à porta e já enquanto nos apertávamos entre todas as outras pessoas dali, à procura de algum lugar onde sentar, eu percebi que havia uma quantidade imensa, absurda, impossível de fantasmas espalhados entre as mesas, sobre o balcão. Mais, certamente mais do que os que eu vira naquela outra noite, no escuro, e de algum jeito, eu sabia que era porque eu estava ali, porque eu estava ali com ela.
Pedimos margaritas, canapés, tudo que podíamos pra espantá-los, mas eles se juntavam de novo, se faziam lembrar. É curioso, porque quando eu explico para as pessoas, elas costumam fazer associações erradas sobre tudo isso.
Talvez seja por causa das menções ao álcool, às músicas, não sei; sei que tem gente com a tendência a achar que os fantasmas aparecem quando estamos tristes ou com medo ou sozinhos ou vulneráveis. Que fogem da alegria acéfala, da entorpecência, da irresponsabilidade ou da ausência de compromisso. Existe mesmo quem acredite que os da nossa estirpe, porque lutam contra fantasmas, sejam mais promíscuos, menos virtuosos, até, por louco que pareça, instáveis emocionalmente.
Não é, óbvio, o que acontece, como espero que esse episódio demonstre.
Estávamos, disse, num bar e nos divertíamos e eu ria com sinceridade, pois me encontrava então tão feliz quanto jamais estive. Eu havia acabado de tomar uma das decisões mais importantes e mais fáceis da minha vida, que era fazer aquilo que era meu desejo óbvio.
Não havia medo, indecisão, solidão ou vulnerabilidade que pudesse justificar aquela concentração desconcertante de fantasmas. Pelo contrário, eu poderia facilmente entregar minha vida em prol daquilo tudo que eu havia escolhido e não me custaria fazê-lo. E por certo, não havia infelicidade alguma, também.
E se assim era, por que vinham?
Vinham pelo mesmo motivo por que vêm os predadores todos: vinham porque percebiam em mim uma fraqueza que me fazia de presa.
A gente enfraquece, às vezes, ainda que estejamos felizes, ainda que saibamos estar no caminho certo. Talvez, mas isso é só uma tese, seja até mais fácil enfraquecer nesses momentos, pois são neles que temos mais a perder. E os fantasmas sabem disso. Por isso é que se juntavam no bar à nossa volta, ligando pouco para as outras pessoas (incluindo outros tantos caçadores que certamente os viam, também) ali presentes, cercando-nos, chegando cada vez mais perto. Uma hora, não restava outra coisa que pudéssemos fazer e portanto atacamos.
A luta durou, não sei, meses. Em alguns momentos, parecia que tínhamos tudo sob controle, recorríamos com facilidade a alguma máxima piegas dessas que nos chegam por e-mail ou a alguma nova comédia romântica que estreasse em nossos cinemas. Em outros, nossos recursos pareciam escassos, nossos inimigos numerosos demais, nossa resolução infundada.
Por fim, quando finalmente tivemos decretada a vitória (e era uma vitória temporária, é claro, como bem sabíamos), havíamos perdido peso, o sono, saúde. Mas era difícil se importar com isso ou com qualquer outra coisa — com os que olhavam, com os que faziam questão de não olhar, com tudo o que falavam e todos os preconceitos do mundo foram sumindo com os fantasmas enquanto estávamos ali e o mundo girava ou era ela ou eu ou nós e já não importava mais quando finalmente nos beijamos.
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E a gente saía todas as noites. Íamos pelas ruas cantando, bebendo, nos tocando e fingindo que era sem querer. Pode-se dizer que era uma vida dura a nossa, tendo que conciliar nossas manhãs escuras com nossas madrugadas em claro, mas a verdade mesmo é que não queríamos nada que não fosse aquilo.
Nos dias – nos anos – que se seguiram, nós arriscamos nossas vidas incontáveis vezes, quando os vultos negríssimos dos fantasmas de nossa cidade nos rodeavam. Talvez uma afirmação dessas soe incoerente com meu comentário anterior de que os fantasmas, por não terem existência corpórea, não poderiam nos machucar. Não podem, mesmo, fisicamente. No entanto, eles podem destruir nossas certezas; se deixássemos, podiam destruir uma vida inteira.
Por isso que a gente caça.
Não é só pelo fato de termos a habilidade de vê-los. Se fosse, podíamos simplesmente evitá-los, com mais facilidade, inclusive, do que os evitam as demais pessoas. Caçar é uma coisa totalmente diferente, porque define-se justamente pela busca, pela perseguição, pela postura ativa de aproximação. Caçar é sair conscientemente da nossa relativa tranqüilidade, é procurar problema. É admitir que dói e não querer que pare.
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A maioria das pessoas é igualmente atormentada por esses espíritos ruins, mas a facilidade da rotina, das atividades cotidianas, esses analgésicos todos da contemporaneidade parecem fazer com que ignorem ou finjam ignorar os episódios desses encontros. Mas existem outros como nós, que, por escolha ou falta dela, assumem suas visões e não têm vergonha de valerem-se das armas que tiverem à mão (os filmes mais chulos, as memórias mais distantes, os pássaros mais coloridos) e de usarem-nas para espantar como podem os fantasmas que virem pelo caminho.
Como nós, eles devem saber que às vezes é difícil cantar no escuro. Se assim for, então nessas horas eles provavelmente também questionam suas decisões e pensam infinitamente que teria sido muito mais fácil, muito mais incrivelmente inteligente se tivessem simplesmente seguido em suas vidas caminhos menos inversos às marés e às correntezas. Teria, talvez, sido muito mais racional.
E seria tão simples, reconhecido o engano, voltar atrás! As portas das casas estariam abertas, é claro. Mas eles não voltam, como nós não voltávamos de nossas excursões noturnas pelas ruas escuras do centro de São Paulo.
Não importava quantas vezes eu ou ela caíssemos de surpresa no escuro sem fim de ataques inimigos, sempre voltávamos sob maior influência da euforia do resgate do que do horror das horas sem luz. E o resgate vinha sempre.
Nenhuma vez que ela tenha sido pega por fantasmas eu deixei de estender a mão, sempre levando alguma inspiração qualquer que a tirasse dali. Mesmo quando meus meios eram falhos (ela não fumava, afinal, não gostava exatamente das mesmas bandas e das mesmas citações do Bandeira que eu), algo sempre dava certo, de um jeito ou de outro. E nenhuma vez que eu tenha caído e chorado e querido morrer ela deixou de se oferecer, também, trazendo tudo o que tinha e que era tudo.
No fim, caçar fantasmas era nosso próprio analgésico, acho. Nosso próprio entorpecente. Quanto mais improvável parecesse ser a fuga de uma emboscada, mais críamos que alguma coisa nos tiraria de lá. Que alguém nos tiraria de lá.
No fundo, se nem todo mundo percebe, é porque nem todo mundo se prontifica à caça de assombrações. Porque no final das contas, o que importava não era nem o álcool, nem o fumo, nem os decibéis, mas a gente, ali. Podiam vir as dores que viéssem, nós não nos abalaríamos; cem vezes nos fosse dada a opção de fugir, cem vezes resistiríamos. Essa é a coisa mais importante na vida, não é? A vontade de se machucar por alguém. Que mais importa além disso?
E não, também, sermos homens ou sermos mulheres. Somos humanos e é por isso e é só isso.