sexta-feira, 17 de maio de 2019

O velho se abaixou, pegou num ramo alto do mato e arrancou. Pensou um pouco se punha ele na boca pra mascar, mas não, só jogou fora por cima do ombro, um mato inútil que se não fosse arrancado tomaria todo o rancho. Olhou para a filha e suspirou.
— Esse frio faz mal pra você, pai. Aqui parece que é sempre úmido demais, sempre frio demais.
— Você não se incomodava antes.
— Eu era criança antes. Não conhecia mais nada além desse fim de mundo.
— Você foi pra cidade e ficou frouxa.
Ele se arrependeu de ter jogado fora aquele mato, queria alguma coisa na boca. Tirou um pouco de fumo do bolso e começou a enrolar um cigarro. Antes de acabar, levantou a cabeça e respirou fundo. A plantação não ia mal, mas por quanto tempo ele ainda daria conta de cuidar da terra?
Desde o dia em que a filha anunciou sua ida a Curitiba para fazer faculdade, ele soube que ela não ia voltar, mas sempre mantivera alguma esperança de que as dores da cidade pudessem fazê-la mudar de ideia. Talvez até arrumasse um marido interessado no cultivo de trigo. Mas a faculdade passou, veio um mestrado e nem ela mudou de ideia sobre morar no campo, nem muito menos se casou. Dois anos antes, apareceu na casa do pai com uma amiga. Sentaram à mesa e a filha olhou para o pai em silêncio por muitos minutos, a todo instante respirando como se fosse dizer alguma coisa, até que se despediu e voltou para Curitiba sem ter dito nada nem terminado o café.
O velho só ligava para o trigo. Queria que a filha fosse feliz do jeito dela, mas por que o jeito dela não podia ser ficar por ali e cuidar da plantação? Terminou de enrolar o cigarro, colocou na boca e lembrou que não tinha fogo. Também não importava, só queria mesmo era algo selando os lábios.
— Eu me preocupo com você, pai. Eu tenho um apartamento grande, você podia morar comigo. Se não quiser, pode morar em outro lugar, também, eu consigo te manter lá. Não vai ser problema nenhum, pelo contrário, vou gostar de te ter por perto. — O pai não deu sinal de que tivesse ouvido. — Eu te faço broa, papai, juro.
Ele sorriu. Afinal, fizeram um bom trabalho com a menina. E ela virou uma mulher boa.
— Essa terra sempre cuidou de mim. Nunca me deixou faltar nada. Não vai ser agora que vai faltar. — Olhou ao redor. — Pra você fazer broa, alguém tem que plantar o trigo.
A filha se deixou ficar alguns passos para trás, mas não disse mais nada. O velho era por demais teimoso, não adiantava falar. Havia enfiado na cabeça que tinha que morrer naquele mato e nada o convenceria do contrário. Mas por quê aquele lugar precisava ser tão úmido?
— Você volta para a cidade. Você é nova demais, tem pressa demais. Talvez aqui não seja mesmo lugar pra você. Mas é o único lugar pra mim.
A filha abraçou o pai com muita força, mas não entendeu bem por que sentia vontade de fazer aquilo. Disse que voltaria logo e que traria broa. E então voltou para a casa, onde a mala esperava pronta, sem sequer ter sido desarrumada.
O velho apertou o cigarro entre os lábios, andou sem pressa nenhuma morro acima. Quando chegou no topo, olhou a árvore retorcida e o balanço. Sentou na grama, diante da velha cruz de madeira que ele mesmo colocou ali tantos anos antes. — A gente fez um trabalho realmente muito bom com a menina.

domingo, 24 de julho de 2016

Subiu José aos céus e se prostrou na grande sala oval em que não havia lugar nenhum para sentar. Depois entrou Jesus, pediu desculpas pelo atraso, ofereceu que José se sentasse em uma cadeira que até então não estava ali.
José se sentou e repassou mentalmente o discurso que tinha preparado. Achava que funcionaria; era coerente e, afinal, ele se sentia orgulhoso do resultado final.
No dia da cirurgia, ele começou a falar, mas Jesus o interrompeu.
Eu sei o que aconteceu.
Só queria esclarecer que no dia da cirurgia eu estava... Você sabe. Eu estava muito, estava muito nervoso com ele. Quer dizer... Se eu tivesse descoberto antes... Acho que se eu tivesse descoberto antes ainda nem teria tanto problema, acho que eu conseguiria lidar com isso, mas foi no mesmo dia! Eu tinha acabado, acabado de descobrir o caso dos dois quando ele sofreu o acidente. Se eu fosse religioso (sem ofensa), teria achado que era alguma obra da Providência ou sei lá o quê. Que era uma forma de punição.
 Você acha que porque ele transou com a sua esposa eu causaria um acidente de carro com três vitimas fatais e deixaria justamente ele vivo, disse Jesus. Não era uma pergunta.
Se eu fosse religioso. José deu de ombros. Sem ofensa. De qualquer jeito, a operação começou normal, mas ele estava realmente muito mal. Não foi culpa minha que as coisas desandaram.
Se você diz.
Digo. E aí, você sabe, eu estava ali, e ele estava com a barriga aberta e tinha uma placa de alumínio ainda enfiada no peito. Ninguém poderia achar estranho se ele morresse.
Se você diz, repetiu.
Digo, digo. Na verdade, tudo o que eu precisava fazer era... E eu estava muito nervoso! Eu estava puto! E tudo o que eu precisava fazer era...
Nada.
Isso. Eu só precisava não salvar ele. Eu até podia tentar. Muita gente tentaria e ainda assim ele morreria. Eu podia tentar, ou fingir que tentei, e ele morreria e eu teria minha vingança e ninguém nunca me culparia por isso.
Mas não foi isso o que você fez.
Não foi.
Você se desdobrou e conseguiu estabilizar os sangramentos e tirar a placa do peito dele.
Foi.
E então ele se salvou e saiu do hospital sem imaginar que você sabia do caso  com a sua esposa.
E até hoje não sabe.
E no entanto você veio até aqui e achou relevante me contar essa história hoje.
É só porque eu achei que... Você sabe. Por causa da triagem.
Você salvou a vida dele, mesmo querendo não salvar. Você sabia que pouco importava para o mundo e os cosmos ou o que quer que seja em que você acredita, mas para você era importante que ele vivesse. Para você poder ter essa conversa hoje, por exemplo (se você fosse religioso), ou para você poder continuar olhando para a sua esposa com a mesma certeza de que ela pecou, ela foi injusta com você de alguma forma, mas você não tinha nada de que se desculpar.
Eu fiz o que era certo.
Fez. Por outro lado, você não quis fazer. Se você tivesse um pouco mais de coragem... Na verdade, se essa situação se repetisse cinqüenta vezes, acho que em metade delas você deixaria ele morrer. Talvez em sessenta ou setenta por cento das vezes.
Você não tem como saber.
Na verdade, eu tenho. Posso fazer com que você passe por essa mesma situação cinqüenta, cem, infinitas vezes.
Bom, mas isso, isso não importa. O que importa é o que realmente aconteceu, quero dizer, o resultado final das minhas ações. 
Aí é que você se engana. Estamos separando pecadores de não pecadores. Qualquer abstração tem que ficar fora dessa conversa, mas a questão também não é tão simples assim. Eu não quero saber o que você fez, mas o que você é. Se você quer saber, você acertou em uma coisa. Para os cosmos, não importa. Um homem sobreviveu naquela noite e ele poderia ter morrido e o mundo não seria diferente. Você sabe disso, é claro. Se essas situações importam, não é pelo seu impacto efetivo,mas pelo que elas dizem de você, dele, das pessoas envolvidas.
Certo.
Eu preciso separar os pecadores dos não pecadores. Então o que eu faço? Eu vejo as pessoas que vêm até aqui. Vejo mesmo. Por dentro, sabe? Eu olho para o fundo da alma delas e vejo se existe pecado lá.
Parece um trabalho fácil. Quer dizer, pra você e tal.
É um trabalho fácil, pra mim, e é mais fácil ainda pras pessoas que vêm aqui. Vamos lá: eu olho pra você e o que eu vejo? O homicídio está dentro de você? Matar um homem, ou deixar ele morre (pra mim tanto faz) mas matar um homem é algo que faz parte de você? Ou foi alguma incompatibilidade profunda, algo intrínseco ao que você é, que te fez ser tão diligente na cirurgia? Lembre-se de que esse é um julgamento moral. Para alguém que não se importa com o resultado prático dos seus atos no mundo, você já tinha pecado muito antes de decidir se ia ou não deixar ele morrer?
José não falou nada. Jesus andou até uma das extremidades da sala, e parou entre duas portas. José sabia que a da esquerda era a porta do céu e que atrás dela estavam todas as delícias reservadas às pessoas puras, e que a da direita era a porta do inferno, que levava às agruras destinadas aos pecadores e às pessoas ruins. Fora isso, elas eram exatamente iguais.
Jesus não abriu nenhuma das duas. Ele não precisava. José se levantou e andou até Jesus e pensou em dizer alguma coisa ou em abraçá-lo ou qualquer outra coisa, mas no último minuto mudou de ideia, baixou os olhos, seguiu reto.
Pela grande, pesada e inexorável porta pela qual lhe cabia passar.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Olho distraído, distraído porque faço outras coisas, coloco os pratos na máquina, rego meu pé de sálvia, cuido da minha vida, enfim, olho e meu olhar se depara com a janela que dá para a rua e eu instintivamente procuro o imenso tanque de aço maciço que deveria avançar em direção à Vergueiro, rodeado por milicianos deste ou daquele lado, todos muito festivos com suas bandeirolas dessa ou daquela cor e cantando hinos e incitando as pessoas das casas a se juntarem a elas, supondo que já tenham terminado com a louça ou a sálvia. Na Vergueiro estariam já outros tantos tanques, e porque moro perto eu penso que deveria ser capaz de ouvir os tiros dos canhões, as dinamites, o grito assustado das pessoas correndo rua abaixo e se deparando com o tanque e os milicianos em festa.
Mais abaixo, na praça, ocupando a quadra onde em outros tempos alguém jogaria futebol ou soltaria o cachorro para correr um pouco, imagino os outros jovens, talvez com porte menos atlético e ar mais intelectual, lendo textos muito antigos ou muito novos em voz alta para as pessoas ao redor, chamando-as para a ação. Mesmo as pessoas que estejam na praça apenas porque queriam soltar seus cachorros certamente se comovem, talvez não pelo texto, que afinal é um pouco antigo, mas sim pelo fato de estarem os tanques nas ruas e por todo o resto, as certezas todas se desmantelando sob os aviões bombardeiros e os tiros de metralhadora.
A essa altura, tenho certeza de que uma menina vai vir correndo da praça, subir a rua a despeito de os tanques serem todos inimigos (no fim, todos os tanques são inimigos, porque ela é uma pacifista convicta), vai gritar em resposta para os milicianos que naturalmente não teriam como ouvir nada e então ela vai olhar para cima na esperança de encontrar ajuda e seus olhos encontrarão nada mais nada menos que os meus próprios, um pouco distraídos com a louça, mas ainda assim capturados pela cena e pela rua e pela janela. Eu também não ouviria nada do que ela diria, mas saberia que era importante, ciente dos tanques e dos tiros e dos aviões.
No fim, não havia nada de inocente no meu ato de estar distraído e me deparar de repente com a janela, era tudo absolutamente programado para eu testemunhar um ato qualquer de coragem que me tirasse da janela, talvez não sem antes regar também a pitangueira e o coentro, e descer para a rua para combater também os milicianos com suas dinamites, na esperança de conservar um mínimo de normalidade no mundo, evitar que aquelas pessoas todas a destruíssem a tiros.
Mas não tem tanque nenhum subindo a Machado de Assis. Se alguém está atirando na Vergueiro, daqui eu não ouço nada.
Talvez eu tenha entendido tudo errado.
Talvez seja justamente a normalidade que eu deveria sacudir das pessoas na rua, trazer eu mesmo os tanques, lançar minhas próprias dinamites.
Nem que fosse só pra deixar o mundo um pouquinho mais coerente.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Passado

Meus amigos são todos ricos. Ou então são pobres por opção, quiseram fazer o que lhes desse na telha, foram lá, fizeram. Têm hoje, eles todos, a profissão que terão pelo resto da vida: não lhes preocupa a perspectiva de uma promoção, um aumento, não lhes interessa fazer um mestrado (mas fazem!), porque já são ricos ou escolheram ser pobres, não dividem seu tempo em um milhão de atividades desconexas, incompatíveis, impossíveis, não sentam-se à noite cansados e se perguntam se vão dedicar as horas livres (que têm) a isso ou àquilo, porque são coerentes, não se perguntam às vezes o que diabo estão fazendo com suas vidas, não fazem planos de começar qualquer coisa em um ou dois anos, porque já começaram tudo, é claro, estão agora em vias de realizar, cumprir, às vezes até terminar, e não sentem que metade das suas atividades é um atraso injustificável à outra metade, sem no entanto saber em qual metade deveriam estar avançando e qual metade os está segurando para trás, não desperdiçam ainda mais tempo escrevendo devaneios, muito menos se culpam quando não os escrevem. Meus amigos todos venceram na vida.
Um dia, eu já fui destinado também à vitória. Um dia eu estive fadado a ter tudo aquilo que o Universo tinha em reserva, e não era pouco, porque eu unia as oportunidades à competência, digamos assim, como quem une o útil ao agradável, a fome à vontade de comer, as asas com o saber voar, inclusive era da comunidade do Orkut, Já Tive um Futuro Promissor, ou algo assim, e também da Provo Teses Com Comunidades, que aliás vem a calhar, mas divago, acontece que um dia aconteceu alguma coisa, já nem sei, deve ter acontecido, porque de repente (não mais que de repente) eu já não tinha mais coisa nenhuma, não era nada daquilo que meus amigos são, era uma criatura dividida em mil outras, nenhuma se dando com as demais, nenhuma sabendo o que fazer com as demais, sem nenhum plano de metas, nenhum compromisso com futuro nenhum nem apetite, ou talvez fosse o contrário, um apetite grande demais, que não cabia na minha fome, nas minhas asas, no meu Orkut. Eu também um dia fui destinado a vencer na vida.
Hoje estou destinado a muito mais.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Futuro


Não se preocupem, queridos, que eu tenho tudo planejado. O que acontece, na verdade, é que o futuro se anuncia tão possível que não posso deixar de me perguntar se o Mundo é mesmo grande assim, se a gente pode mesmo tanto.
Sempre achei que não podia nada. Não era um juízo da minha competência, mas da competência da vida: as coisas sempre me pareceram possíveis somente sob a bénção e a vigília de outra pessoa.
Eu me lembro, me lembro muito bem, de, pequeno, ter visto alpinistas. Na TV, claro, alpinistas subindo uma montanha impossível, virgem. Me lembro tão bem que, agora, penso ter inventado tudo. Mas, inventados ou não, os alpinistas subiam sem amparo nenhum, os equipamentos inúteis diante da falta de alguém que tivesse subido antes, amarrado os ganchos, prendido os cabos. Aquilo me deu um nó em algumas ideias então já bem definidas -- de que não se poderia subir uma montanha sem ganchos e cabos --, e minha mente de criança tratou de reinventar o mundo, refazer a regra, eliminar a idiossincrasia do episódio e adequá-lo ao que eu sabia da vida: aqueles eram profissionais dotados de uma espécie de autoridade que lhes permitia fazer algo que a outros humanos não seria facultado. Subiam, portanto, prendiam os ganchos, estiravam os cabos e tornavam lícito que outros fossem atrás e mimetizassem o feito.
Experiências do mesmo tipo me aconteceram tantas vezes depois que é impossível pretender relatá-las todas. Acho que por isso mesmo nunca fiz um curso de mergulho (o mar me aceitaria?), nunca me dispus a falar sobre alguns assuntos e, até hoje, ainda sinto algum grau de culpa toda vez que durmo fora de casa.
Não foi, também, que tenha sofrido restrições em excesso, que tenha vivido sob regras muito rígidas. Muito pelo contrário, aliás, tudo sempre me foi permitido. Também nunca fui propriamente vigiado. Não tenho a quem ou por quê culpar.
Falei em vigília, porém, e não menti: sempre tive alguém que olhasse por mim; sempre estive protegido. É desnecessário dizer que sempre contei com pessoas que fizessem as coisas por mim, que se desdobrassem para que eu não precisasse me desdobrar, mas não é só isso, também, o que eu quero dizer. Este é o desabafo de uma criança mimada, é claro, mas espero que seja um pouco mais do que isso. O fato é que eu nunca precisei correr riscos e, por isso, acreditei que ninguém mais o fizesse. Acreditei que se alguém escala uma montanha pela primeira vez, colocando pela primeira vez os grampos que segurarão alpinistas futuros, então essa pessoa certamente o faz com a proteção que lhes concede o título: “Alpinista”. O que nunca me ocorreu é que, para alguém se tornar alpinista, ela vai obrigatoriamente ter que escalar suas montanhas. O que nunca me ocorreu é que ninguém nunca veio a essas pessoas e concedeu-lhes o alvará: vamos!, suba!, a partir de agora, você é um alpinista. Acho que, até hoje, eu vinha esperando que alguém viesse com esse alvará.
Não é de se espantar, então, que o futuro me pareça tão impossível, ainda mais agora que está chegando. E, no entanto, tenho tudo, tudo planejado.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Presente

Hoje em dia, eu voltei a ter medo do escuro. Medo do que há debaixo da minha cama. Medo do que há escondido no corredor.
E com o medo deveria vir a vergonha do medo, porque adultos podem ser paranóicos, se quiserem, podem instalar antivírus, trocar a senha do cartão, comprar um segundo celular, tudo dentro de um grande contexto de adultês ou adultério, conforme o caso, mas de todo modo tudo isso lícito, mas não podem ter medo do escuro, não podem de jeito nenhum pular para o mais longe que puderem da cama, de modo a fugirem do que quer que se esconda ali. Mas eu sinto medo que nem uma criança e muito francamente não sinto vergonha nenhuma, escrevo aqui, inclusive, o que não me impede de me perguntar de vez em quando por que eu fui voltar a ter medo do escuro - justo agora, eu quero dizer.
Tem outra coisa, aliás, outra coisa que resolveu me assolar agora, mas essa eu sei bem de onde vem, uma espécie de culpa ou raiva ou ambas, culpa que vira raiva que vira: efeito colateral grave mas delicioso de enfim me tornar eu mesmo, enfim falar e fazer alguma coisa, tudo errado e tudo certo, lendo tanto, também, lendo o tempo todo, e lendo também as coisas erradas ou lendo errado as coisas certas. E tão infinitamente feliz!, como nunca, talvez, antes!, tão cheio de mim e do mundo que eu às vezes quero filmar tudo o que eu vejo e mostrar pra vocês!, escrever tudo o que penso e mostrar pra vocês!, egocêntrico, talvez, mas não, mais altruísta que egocêntrico: um mundo tão lindo quanto o que eu vejo todo dia!, vocês mereciam ver também!: as flores no chão da ciclofaixa da Pedroso!, os grafites da José Queiroz Aranha!, aquele descascadinho no móvel que às vezes me lembra a cabeça de um lobo!.Tudo vai bem portanto.
Já era hora, afinal, de sentir medo de alguma coisa.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Futebol é só futebol. No fim, é isso. Escrevo logo depois de o Brasil tomar 7 da Alemanha, uma derrota inédita na história da Seleção e na minha, o país ainda humilhado e atordoado, e afirmo sem medo de errar que é futebol, só, e nada mais.

Me disseram isso antes da Copa: me falaram sobre a ilusão de um povo, sobre as mentiras dos poderosos, sobre o nacionalismo errado, mentiroso, hipócrita. Me disseram que fazer ou tomar 7, numa semi-final de Copa do Mundo ou na quadra do prédio --- me disseram que isso era nada.
Em outro assunto: eu gosto de Literatura. Eu estudo, leio, às vezes até faço, acho, Literatura. E se você gosta de Literatura, você é meio que obrigado a aceitar que o futebol, como tudo o mais no mundo, seja um pouco mais que aquilo que é. Um pouco mais que, bem, futebol. 
Pra você gostar de Literatura, você tem que admitir que um mundo de fatos aleatórios e sem sentido não é suficiente. Você tem que entender que as pessoas atribuem significado às coisas não porque sejam fracas e carentes de algum tipo de conforto espiritual (não só por isso, pelo menos), mas porque a vida é triste se não for transcedental, porque a gente foi arremessado em um mundo hostil e nos foi imposto, a partir dele, construir significados.
A gente tem perdido a capacidade de fazer isso. Acho que Weber falou sobre como o mundo fazia sentido para os homens de antigamente e sobre como, conforme nosso entendimento do universo foi aumentando, as coisas fugiram da nossa capacidade de compreensão. Que ele falou sobre como as religiões se esforçavam para explicar todos os elementos da natureza e para integrá-los em um sistema uno, e sobre como isso não acontece nas grandes religiões monoteístas. Walter Benjamin, falando sobre a morte da narrativa, diz algo muito parecido. Segundo ele, a partir da Primeira Guerra Mundial, o mundo se tornou grande demais para ser compreendido de forma coerente por um único indivíduo. Tratando da substituição da tradição da narrativa pela do romance, Benjamin conclui: "Com efeito, numa narrativa a pergunta - e o que aconteceu depois? - é plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida."
Mesmo assim, a gente tende a achar que as coisas são... mais do que coisas. As pessoas dizem que a organização e a civilidade alemã prevaleceram sobre a malandragem brasileira. Comparam Wagner e o Lepo Lepo, Merkel e Dilma. As pessoas falam como se o mundo amanhecerá amanhã diferente de hoje; diferente porque o Brasil foi derrotado, humilhado, massacrado em casa. Um professor uma vez sugeriu que, se a derrota em 1950 levou o Brasil a se consolidar como potência futebolística nas décadas seguintes, uma possível vitória em 2014 poderia afastar de vez nossa estigma de país do futebol. Talvez ele tenha alguma teoria para os efeitos do jogo de hoje.
Mas, no fim, é só futebol. O fato de torcermos para as colônias contra os colonizadores não vai vingá-las; torcermos a favor ou contra o Brasil não vai nos aumentar como Nação. O torcedor vitorioso não vai acordar livre dos seus problemas no dia seguinte.
É possível, evidentemente, viver sem esse tipo de... distração. Como é possível, claro, viver sem Música, sem Cinema, sem Literatura. Independentemente das teorias que criemos, a chuva cai lá  fora, a entendamos ou não. Um dia, vai saber, a ciência vai explicar todos os fenômenos do mundo. Nesse dia, não precisaremos aprender nada com essa derrota.
Até lá, é preciso viver.