segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Chuva e sol

Samuel Matias era um sujeito de não muito mais que um metro e meio e com o peso aproximado de um cachorro de médio porte, mas quando ele carregava dezenas de toneladas de chumbo incandescente por sobre pequenos vilarejos do sudeste asiático, despejando-os eventualmente sobre um ou outro povoado, ninguém o diria. Ele sentia algum prazer, é claro, em ver as famílias correndo desesperada e inultilmente para fora do trajeto de seu boing preto, divertindo-se em atingir sempre aqueles que mais lhe chamavam a atenção na multidão, mas não se deixe enganar: havia muito pouco de lúdico em seu trabalho e, na verdade, tratava-se de serviço oficial e aparentemente de suma importância, embora ele nunca houvesse entendido quais os motivos exatos que levaram o governo norte-coreano a contratar um brasileiro para atirar metal quente sobre vilarejos aleatórios (pois ele tinha total discricionariedade em escolher aqueles que mais lhe aprazessem) do referido sudeste asiático. A ignorância é uma bênção, ele costumava dizer, em meio a seus rasantes flamejantes.

Em 1997, o sultão Hassanal Bolkiah, de Brunei, foi eleito o homem mais rico do mundo, superando o americano Bill Gates em patrimônio e em cuidado com o cavanhaque — que era podado meticulosamente por, presume-se, um grupo de funcionárias especificamente contratadas para este fim. A despeito das muitas críticas às suas prioridades, vindas de gente que argumentava que Gates nem sequer possuía um cavanhaque, o sultão seguia bem com sua coleção de automóveis, aviões e descaso para com a situação dos habitantes de seu sultanato.
Nessa época, vivia naquelas terras a jovem Najibah, que compensava as feições modestas com a dedicação dobrada no trabalho (dedicava-se ao cultivo de variados grãos) e no cuidado com a família. Najibah tinha poucos motivos para crer, mas jamais questionara sua fé na fortuna trazida pelos céus, ao menos até o dia em que deles vieram as gotas ferventes de metal derretido, despejadas sem aviso por um distante avião negro. Enquanto sua perna esquerda era consumida pelo calor vulcânico, Najibah pensou ter ouvido um riso ao longe. Ela, que nunca havia questionado a razão de suas mazelas e dificuldades, diante de tão deliberado ato de crueldade, jurou encontrar uma justificativa. 
E, mais importante, vingança.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Reabilitação

Queria ir porque sabia que ela lhe fazia mais mal do que bem, sabia que mesmo os melhores momentos eram só entorpescência e que os momentos ruins qualquer dia lhe fariam enfiar o carro em um poste, talvez matar alguém. Ele não queria matar ninguém, no máximo sentia impulsos semirresistíveis de machucar, mas tinha certeza de que eventualmente aconteceria, de que era uma possibilidade real quando se encontrava com a percepção, os reflexos, a coordenação -- por vezes até a visão -- debilitados.
Mesmo agora, quando buscava com todos os recursos uma desculpa para não ir, para não largá-la, para se afundar ainda mais, continuava achando difícil se convencer de que havia qualquer motivo que o impedisse. No entanto, e de novo, interrompeu-se antes de chegar à porta, suspirou, desistiu. Talvez porque fosse fraco, é claro. Talvez porque fosse forte demais.