sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Tempo Perdido


Ocorre que, na vida, algumas coisas são simplesmente imperdoáveis. Assim, fazer um trabalho ruim é muitas vezes mais fácil do que fazer um trabalho bem feito, em que se atentou aos detalhes e em que se tentou prever as mais variantes variáveis etc. No entanto, fazer um café ruim dá o mesmo trabalho que fazer um café bom.
Por isso é que sempre fiz questão de eu mesmo cuidar da moagem dos grãos, da torra, da passagem da água, ciente e cioso de que não haveria desculpas para que o resultado final fosse demasiado aguado, demasiado amargo. Lembro-me de um comentário que me fizeram certa vez, retificando a tradição popular de que a vida seria curta demais para café ruim: a vida é, na verdade, extremamente longa, a coisa mais longa que existe, aliás, e é por isso mesmo que não devemos tolerá-la sem um bom café.

No tempo que se segue, enquanto espero o gotejar desapressado do líquido que passa pelo filtro e posteriormente enquanto dou goles pequenos e medrosos (porque tenho medo do calor, mas também porque tenho medo do fracasso) na bebida recém preparada, me passam pela cabeça os pensamentos mais variados e eu não me ocupo tanto em controlá-los quanto em formular as relações que os trouxeram. A lembrança de meus primos naquele dia, na piscina, talvez tenha derivado de uma associação entre a temperatura do líquido e o calor tranquilo do sol que nos embalava despercebido enquanto corríamos, todos crianças, pela grama. Esquentávamo-nos subindo nas jabuticabeiras e nos perseguindo, para depois jogarmo-nos na água --- e a última coisa que eu via, ainda no ar, eram meus primos gritando de alegria, e então era o frio anestesiando todos os meus poros, abafando todos os meus sentidos, e então só me sobra o gosto desse primeiro gole de café.
Quando abro os olhos, nada mais está lá: apenas a mesa da cozinha, a luz que entra pela janela. Puxo uma cadeira e só então me sento. A xícara exala um cheiro que me lembra da terra e das tardes com minha avó. Entrávamos ainda molhados pela porta grande da sala, ainda gritando e correndo, às vezes caindo, e minha avó estava na cozinha com sua xícara e não ligava para a molhaceira que fazíamos, não ligava para como a ignorávamos quando ela pedia que tomássemos cuidado para não escorregar, e então ela esquentava leite na panela e fazia com toddy pra gente, e às vezes tinha coscorão, também. Então, sentávamos pingando água nas cadeiras de madeira da cozinha, as almofadas levantadas para não molhar, e ficávamos vendo os insetos nas redes da janela enquanto minha avó tomava o café que para mim simbolizava a idade adulta, o amargo contrastando com o leite doce de chocolate que bebíamos.
Quando o sol começava a descer, nuvens infinitas de siriris voavam como que brotando do chão e seguiam algum instinto absurdo, atrás de novos lugares para infestar. A gente começava a andar com mais cuidado, porque no escuro era mais fácil pisar nas mangas caídas do chão e completamente tomadas pelas abelhas, as vespas e os marimbondos. E então o sol mergulhava no horizonte com a vermelhidão de um tiê e enchia o céu de tons de laranja como em um quadro expressionista e depois vinha o preto.
Giro o fundo do café na xícara e de repente me sinto completamente sozinho. Pela janela, vejo alguns prédios indistintos e o céu cinzento de São Paulo, que me traz uma última memória das estrelas da noite no sítio. Termino o café num último gole, levanto, deixo a xícara na pia e me deixo sentir por mais algum tempo o gosto bom que sobrevive na minha boca.