domingo, 29 de junho de 2008

Estilos - I

Marco veio de trem, e era noite, porque quando você não tem estilo, você não tem nada. Ele respirou fundo e viu o vapor que siu de sua boca. Estava frio, também. Mas isso não era questão de estilo.

Era má-sorte.

Ele sabia o que estava fazendo, mas isso não significava que não tocava os bolsos de tempos em tempos. Para se certificar de que elas ainda estavam lá.

Entrar na casa foi fácil. Sempre era. Esperar é que era inconveniente, mas dessa vez quase não demorou. O outro chegou cedo.

Toni era grande e forte e, acima de tudo, esperto. Os anos no serviço tinham-lhe ensinado muito e ele percebeu logo que alguma coisa estava errada. Mas quando viu as armas brilharem no escuro, era tarde. Duas balas o atingiram como coices. O impacto foi tamanho que Toni foi atirado para fora da janela, junto com os estilhaços.

O trabalho tinha sido perfeito. Mas ainda estava frio, e Marco ainda tinha que voltar de trem.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Recicle! — Uma proposta.

A arte é expressar, e embora Fernando Pessoa dissesse que o que se expressa não é importante, ninguém haverá de negar que duas coisas que expressam mensagens diferentes só podem ser — se forem — duas formas diferentes de arte. Explico: se houver duas obras e em ambas for reconhecido o valor artístico, e se ambas expressarem mensagens que divergem, elas só poderão ser obras de arte distintas, desde que se tenha — e tenho — como inegável que o importante da arte é expressar.

Também só pode ser verdade que ninguém no mundo, ou pelo menos ninguém que reflita o suficiente sobre isso, diria que a obra do artista dadaísta Marcel Duchamp é exatamente a mesma coisa que uma privada que alguém colocou em uma exposição, ou que todas as fábricas de privadas produzem arte da mesma sorte que a dele. Ninguém pode dizer isso porque ainda que a obra de Duchamp seja uma privada exatamente igual à que é feita nas fábricas, ela expressa algo que nenhuma privada jamais expressou. Indo além, eu poderia dizer que a autoria da obra só pode ser de Marcel, ainda que ele não tenha efetivamente criado a privada, porque foi ele quem fez com que aquela privada expressasse um protesto anti-racionalista, quiçá desconstrutivista: retirado de seu âmbito cotidiano, o penico bem poderia ser uma fonte.

Note que, uma vez tendo ele obtido acesso à privada, nenhuma fábrica do mundo ousaria cobrar de Duchamp pelo direito de expô-la ou de transformá-la em arte ou de dar a ela o significado que fosse. Da mesma forma, nenhum vendedor de tinta ou de tela cobrará porcentagens das vendas de um Monet ainda que a tela tenha tido importância para que Monet pudesse expressar sua arte.

Que ninguém afirme, agora, que esse tipo de mudança do significado das coisas está preso às coisas tangíveis. A mudança de uma palavra ou mesmo uma vírgula pode alterar todo o significado de um livro, e ninguém haverá de negar isso, bem como ninguém haverá de negar que a entonação que se dá ao que se diz pode alterar todo o significado de um discurso e um contexto diferente pode transformar uma frase e assim por diante. Em verdade, eu diria que o mesmo conteúdo, se proferido pelo radical de esquerda ou pelo militante de direita, pode pular do mais entusiasta para o mais jocoso dos sentidos, ainda que não se mude em absoluto qualquer palavra ou tom ou o que quer que seja: a mudança do artista bastaria, então, para que mudasse a arte.

É ridículo que se pretenda limitar a criação de uma pessoa porque ela usa como base parte de obra já feita, desde que essa pessoa saiba dar ao que já era um significado que jamais fora. Não há prejuízo quando se cria o novo; só há prejuízo quando se impede o novo de ser criado. Que Duchamp pague pelo seu penico, vá lá, que ninguém aqui quer defender o roubo de nada; mas inibir a exposição d’A Fonte ou cobrar por ela qualquer coisa além da privada em si é ultrajante.

Peguemos as obras, brinquemos com elas e elas serão nossas! John Locke, ao mesmo tempo em que fundamentava as bases teóricas da propriedade privada, já não dizia que é propriedade do homem tudo o que é alvo e resultado do seu trabalho? Tudo o que o homem transforma através de seus esforços? Ah, não se acanhe! Pegue e não tenha vergonha de dizer que pegou; mude e transforme.

Recicle!

domingo, 22 de junho de 2008

Citação

"O trabalho priva o homem de três grandes coisas: o ócio, o vício e a beleza."

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Outra metamorfose

Nos últimos doze anos, Bruno não dormiu mais do que cinco ou seis horas por noite, mas na última semana é que as coisas ficaram feias de verdade. Passara toda a noite de segunda no escritório, e não dormira mais do que três horas na terça. Na quarta, a mesma coisa e, na quinta, enquanto arrumava a gravata às quatro da madrugada, ainda mole e dormitando, ainda com os olhos ardendo e pesando e com o cabelo todo arrepiado do banho que não valeu (porque todo mundo sabe que banho de manhã tem função mais de despertar que de limpar), para ir novamente trabalhar, ele reparou com desgosto nas olheiras fundas.
Além disso, não se lembrava de jamais ter sido tão magro quanto àquele ponto. Pudera, não tendo mais tempo para comer direito e se limitando a qualquer porcaria uma vez por dia. Por fim, conforme já saía do banheiro e da casa, agora acordado, e entrava no carro correndo e correndo batia a porta e acelerava sem nem ter posto o cinto ainda e saía no escuro, pensou em quanto estava pálido, ficando de noite a noite trancafiado, vendo o sol pela janela, quando muito.
Mas a vida é assim, e a empresa estava crescendo e tudo mudaria em breve, e ele até poderia tirar férias. Talvez.
No entanto, à tarde sua barriga doía, e quando ele se levantou para tomar um café, sentiu uma tontura que quase o desequilibrou, e bambeou bambeou, e se apoiou na própria mesa. Porém, acabou derrubando os lápis e livros e coisas, e a mão escorregou e ele quase tomba, mas se segura. Pálido, pálido, os olhos afundados e a barriga vazia, levantou de novo e foi meio escorado em direção ao banheiro, mas no caminho havia a janela, e quando tropeçou bambeou, tombou e só sentiu o vidro cedendo ao empurrão e a janela abrindo e o vento vento vento ven...
E foi então que Bruno virou um morcego e voou dali.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Metalinguagem

Mal do século, até mesmo para a China - por Alexandre Cruz Gabriel Mourão Soares

A pirataria é o mal do nosso tempo, pois alimenta uma economia informal monstruosa. Por Alexandre Cruz Gabriel Mourão Soares

No ano passado a Interpol assustou o mundo ao anunciar que o volume transacionado pela pirataria, termo aqui entendido como contrafação, descaminho, subfaturamento e outros delitos correlatos, atingia a alarmante cifra de U$ 516 bilhões, ultrapassando até mesmo o tráfico de drogas, que movimentou U$ 322 bilhões em 2006.

O recado deve ser bem compreendido por governos e indústria: a pirataria é o maior desafio do comércio internacional no século XXI. A razão é simples, mas não está explicada somente pelos de postos de trabalho que deixam de ser criados, pela evasão de divisas, pela redução da arrecadação de impostos ou pelos severos e muitas vezes fatais malefícios às empresas que deixam de faturar.

Tampouco a razão de a pirataria ser o mal do século está unicamente explicada pela monstruosa economia informal que alimenta, fomentando um crime organizado internacional e gerando imensas bolsas de massa de mão-de-obra que, a despeito de não recolher impostos, utilizam-se dos serviços públicos (como o SUS no caso do Brasil) e ainda aposentam-se sem ter contribuído para o sistema, pressionando os gastos dos governos de todo o mundo.

A pirataria literalmente faz lixo de toda a evolução e luta histórica da sociedade por décadas a fio para estabelecer o consagrado direito do consumidor, especialmente quando assistimos, pasmos, os dados da OECD (Organization for Economic Development and Cooperation) recém-divulgados no Terceiro Congresso Mundial de Combate à Pirataria e à Falsificação em Genebra no dia 31 de Janeiro deste ano: 30% dos remédios transacionados em todo o mundo são falsificados.

Somam-se ainda os sem-número de brinquedos falsificados fabricados à base de restos de material hospitalar; óculos escuros falsificados que ao fazerem dilatar a pupila e não apresentarem proteção aos raios ultravioletas do sol, criam legiões de jovens com problemas precoces de visão, além de produtos de limpeza altamente nocivos no seu manuseio, entre tantos outros.

A pirataria é o maior desafio do século porque, não obstante todos os assustadores malefícios acima listados, ainda apresentam uma característica fatal ao crescimento sustentado na economia mundial: inibe a inovação.

Desde as obras de Schumpeter sabemos que o crescimento sustentado, do ponto de vista estritamente econômico, se faz com aumento da produtividade. Em outras palavras, fazer mais, com menos e melhor. A raça humana depende da inovação para viver cada vez mais, e em melhores condições de bem-estar. Razão esta que explica as proteções legais da propriedade intelectual recebe em quase todo o mundo.

A pirataria torna inviável o investimento em inovação. Torna inviável, quando não impossível, os recursos aportados na criatividade humana, na obra intelectual e na invenção. Com isso deixam de surgir novas tecnologias, novos produtos, novos artistas, novos remédios, novas vacinas e até mesmo novos livros.

A própria China, que tem inundado o mundo com produtos de todos os tipos cuja autenticidade, não-raro, é severamente questionada por diversos países, vai beber do próprio veneno. Explica-se: para manter-se como o maior fornecedor de mercadorias do mundo, a China foi o terceiro maior país em investimentos em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), cerca de U$ 1,3 bilhão em 2006, segundo a OECD. Logo, a falta de um arcabouço jurídico e de um aparato estatal para a proteção da propriedade intelectual vai também brecar o motor da economia chinesa.

No Brasil, muito avançamos nos últimos três anos, especialmente com a articulação e integração da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Receita Federal no âmbito do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, criado em 2004 e vinculado ao Ministério da Justiça. Entretanto o Brasil figura na 5º colocação no Ranking de Pirataria da OECD. Nestes avanços podemos incluir o controle da situação da fronteira de Foz do Iguaçu – região historicamente emblemática para a entrada de produtos piratas no Brasil.

Nada obstante, em quase todas as grandes cidades brasileiras temos um centro de vendas de produtos piratas a céu aberto, aceitando todos os meios de pagamento existentes, e contando muitas vezes com investimento do próprio Estado na forma de serviços públicos e até mesmo com financiamentos públicos – como no caso da chamada “Feira dos Importados” em Brasília, que apresenta uma convidativa placa do BNDES em sua entrada, de onde é possível avistar o Congresso Nacional.

Para reverter este quadro é necessário ao Brasil realizar a mais importante de todas as reformas – a qual independe do governo ou do Congresso -, a reforma de valores. Isto porque jamais o preço de um produto pirateado vai ser superior ao produto original, pois enquanto este investe na inovação, em marketing, em pessoas e ainda arca com a imensa carga tributária atual, aquele a isso tudo se furta.


Alexandre Cruz é economista e presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (www.forumcontrapirataria.org)


Publicado no jornal Valor Econômico, pág. A12 - Opinião. Em 27 de março de 2007