quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Passado

Meus amigos são todos ricos. Ou então são pobres por opção, quiseram fazer o que lhes desse na telha, foram lá, fizeram. Têm hoje, eles todos, a profissão que terão pelo resto da vida: não lhes preocupa a perspectiva de uma promoção, um aumento, não lhes interessa fazer um mestrado (mas fazem!), porque já são ricos ou escolheram ser pobres, não dividem seu tempo em um milhão de atividades desconexas, incompatíveis, impossíveis, não sentam-se à noite cansados e se perguntam se vão dedicar as horas livres (que têm) a isso ou àquilo, porque são coerentes, não se perguntam às vezes o que diabo estão fazendo com suas vidas, não fazem planos de começar qualquer coisa em um ou dois anos, porque já começaram tudo, é claro, estão agora em vias de realizar, cumprir, às vezes até terminar, e não sentem que metade das suas atividades é um atraso injustificável à outra metade, sem no entanto saber em qual metade deveriam estar avançando e qual metade os está segurando para trás, não desperdiçam ainda mais tempo escrevendo devaneios, muito menos se culpam quando não os escrevem. Meus amigos todos venceram na vida.
Um dia, eu já fui destinado também à vitória. Um dia eu estive fadado a ter tudo aquilo que o Universo tinha em reserva, e não era pouco, porque eu unia as oportunidades à competência, digamos assim, como quem une o útil ao agradável, a fome à vontade de comer, as asas com o saber voar, inclusive era da comunidade do Orkut, Já Tive um Futuro Promissor, ou algo assim, e também da Provo Teses Com Comunidades, que aliás vem a calhar, mas divago, acontece que um dia aconteceu alguma coisa, já nem sei, deve ter acontecido, porque de repente (não mais que de repente) eu já não tinha mais coisa nenhuma, não era nada daquilo que meus amigos são, era uma criatura dividida em mil outras, nenhuma se dando com as demais, nenhuma sabendo o que fazer com as demais, sem nenhum plano de metas, nenhum compromisso com futuro nenhum nem apetite, ou talvez fosse o contrário, um apetite grande demais, que não cabia na minha fome, nas minhas asas, no meu Orkut. Eu também um dia fui destinado a vencer na vida.
Hoje estou destinado a muito mais.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Futuro


Não se preocupem, queridos, que eu tenho tudo planejado. O que acontece, na verdade, é que o futuro se anuncia tão possível que não posso deixar de me perguntar se o Mundo é mesmo grande assim, se a gente pode mesmo tanto.
Sempre achei que não podia nada. Não era um juízo da minha competência, mas da competência da vida: as coisas sempre me pareceram possíveis somente sob a bénção e a vigília de outra pessoa.
Eu me lembro, me lembro muito bem, de, pequeno, ter visto alpinistas. Na TV, claro, alpinistas subindo uma montanha impossível, virgem. Me lembro tão bem que, agora, penso ter inventado tudo. Mas, inventados ou não, os alpinistas subiam sem amparo nenhum, os equipamentos inúteis diante da falta de alguém que tivesse subido antes, amarrado os ganchos, prendido os cabos. Aquilo me deu um nó em algumas ideias então já bem definidas -- de que não se poderia subir uma montanha sem ganchos e cabos --, e minha mente de criança tratou de reinventar o mundo, refazer a regra, eliminar a idiossincrasia do episódio e adequá-lo ao que eu sabia da vida: aqueles eram profissionais dotados de uma espécie de autoridade que lhes permitia fazer algo que a outros humanos não seria facultado. Subiam, portanto, prendiam os ganchos, estiravam os cabos e tornavam lícito que outros fossem atrás e mimetizassem o feito.
Experiências do mesmo tipo me aconteceram tantas vezes depois que é impossível pretender relatá-las todas. Acho que por isso mesmo nunca fiz um curso de mergulho (o mar me aceitaria?), nunca me dispus a falar sobre alguns assuntos e, até hoje, ainda sinto algum grau de culpa toda vez que durmo fora de casa.
Não foi, também, que tenha sofrido restrições em excesso, que tenha vivido sob regras muito rígidas. Muito pelo contrário, aliás, tudo sempre me foi permitido. Também nunca fui propriamente vigiado. Não tenho a quem ou por quê culpar.
Falei em vigília, porém, e não menti: sempre tive alguém que olhasse por mim; sempre estive protegido. É desnecessário dizer que sempre contei com pessoas que fizessem as coisas por mim, que se desdobrassem para que eu não precisasse me desdobrar, mas não é só isso, também, o que eu quero dizer. Este é o desabafo de uma criança mimada, é claro, mas espero que seja um pouco mais do que isso. O fato é que eu nunca precisei correr riscos e, por isso, acreditei que ninguém mais o fizesse. Acreditei que se alguém escala uma montanha pela primeira vez, colocando pela primeira vez os grampos que segurarão alpinistas futuros, então essa pessoa certamente o faz com a proteção que lhes concede o título: “Alpinista”. O que nunca me ocorreu é que, para alguém se tornar alpinista, ela vai obrigatoriamente ter que escalar suas montanhas. O que nunca me ocorreu é que ninguém nunca veio a essas pessoas e concedeu-lhes o alvará: vamos!, suba!, a partir de agora, você é um alpinista. Acho que, até hoje, eu vinha esperando que alguém viesse com esse alvará.
Não é de se espantar, então, que o futuro me pareça tão impossível, ainda mais agora que está chegando. E, no entanto, tenho tudo, tudo planejado.