quarta-feira, 14 de março de 2012

Dedos, 6


Na manhã do Confrontamento, nem fiz caso do envelope sobre meu teclado. Empurrei-o de lado, liguei o computador e iniciei uma partida de Paciência Spider, enquanto esperava que minha colega chegasse.
Olhava o relógio compulsivamente. Nove horas, ela não havia chegado. Dez horas e nada. Onze. Ao meio dia, fiquei em dúvida se saía para o almoço ou não. Esperei mais um pouco, mas, aparentemente, a questão dos indicadores não bastava para me tirar o apetite. Bloqueei o computador, desci o elevador, saí o prédio. Não havia dado três passos do lado de fora e ela se chegou a mim: a senti antes de a ver, vinda de trás, me puxando o colarinho e sussurrando ao meu ouvido: “Por aqui.”
Fui com ela, algo no seu senso de urgência me impedindo de puxá-la, pará-la, questioná-la. Por algum motivo, preferi ficar quieto. Ela virou à esquerda uma, duas vezes, depois à direita, e eu a seguindo até que entramos em um prédio. Ela chamou o elevador e eu não disse nada. Subimos.
O prédio era residencial. Quatro apartamentos por andar e ela me levou para um específico. Acho que era o apartamento dela. Havia três crianças, lá dentro, uma vendo televisão, as outras duas discutindo para ver qual delas teria o direito de brincar com um boneco qualquer. Num canto da sala, havia um computador e dava para ver a janelinha do MSN piscando, piscando, sem resposta.
De repente, levei um susto, corri para perto das crianças e peguei-lhes as mãos. Não faltava nenhum dedo, ufa. Minha colega soltou um risinho, mas não havia muita alegria nele. Era um riso cansado.
“Achei que eu pudesse te ajudar”, ela disse.
“Me ajudar?”
“Com os dedos.”
Eu não queria ajuda nenhuma, muito menos se essa ajuda assumisse a forma de indicadores humanos cortados fora e colocados sobre minha mesa em envelopes pardos. Já não entendia o que eu esperava ao acompanhá-la até lá. Que tipo de respostas eu achava que encontraria. Era só um apartamento, uma família, alguém impaciente no MSN. Senti raiva dela, de mim, das crianças. Lembrei que estava com fome. Fui embora.

***

No dia seguinte, cheguei tarde e ela não estava no escritório. “Tanto melhor”, pensei. Sobre a minha mesa, havia um envelope, que eu abri com descaso. Era um contrato de um cliente.

terça-feira, 13 de março de 2012

Dedos, 5 - Apêndice

Eu estava em um mercado, ou talvez fosse uma loja de CDs --- provavelmente um mercado, porque eu não compro mais música. Em minha mão esquerda, eu segurava uma sacola (com legumes, talvez?) enquanto esperava na fila do caixa. Uma senhora impossivelmente velha se aproximou de mim devagar, levantou um pouco a cabeça e me perguntou onde ficava qualquer coisa. Não me lembro o quê. Ela tinha uma bengala. Eu sabia onde ficava.
“Ali”, disse.
“Onde?”
“Ali”, repeti. Eu estava apontando claramente para onde ela devia ir, mas ela pareceu confusa. Não sabia para onde ir. Eu olhei na direção indicada, impaciente, e então me enchi de horror e ânsia, meu estômago se contraindo e minha pressão caída.
Meu indicador não estava lá. Havia apenas a minha mão, débil e inútil, estúpida, uma mão em que faltava um dedo --- justamente aquele que deveria indicar a localização dos CDs do Erasmo.
A velhinha se irritou, foi embora, perguntou a outro. Eu não servia mais para dar indicações. As outras pessoas da fila também se afastaram: algumas com repulsa, outras rindo. Apontavam para mim e me humilhavam não apenas com as gargalhadas, mas, principalmente, com o dedo em riste. Saí da loja correndo, deixei minha sacola para trás.

Acordei suado e olhei instintivamente para minhas mãos. O dedo estava lá, mas eu precisava urgentemente falar com minha colega.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Dedos, 5


Um outro mistério surgiu, nascido diretamente de minhas tentativas de solucionar o anterior: como seria possível que Leonardo Tostão, cujos dedos eram identificados, um após o outro, por minha colega de trabalho, não tivesse o endereço ou o telefone disponíveis em lugar algum? Seu nome não constava da lista telefônica, não trazia perfis em redes sociais, não aparecia em buscas feitas no Google.
Se suas digitais eram identificadas pelas análises que a garota, sabe-se lá como, realizava, então algum registro de sua existência deveria existir em algum banco de dados. No entanto, minhas buscas por ele eram todas inúteis. Por que com ela era diferente? Como não poderia deixar de ser, após algum tempo minhas suspeitas recaíram-se sobre esta colega, que teria grande facilidade em depositar envelopes sobre minha mesa.
Tomado pelo desejo de desvendar o quanto antes o caso, lancei-me sobre sua escrivaninha assim que tive a oportunidade, quando, deixando o telefone, ela foi ao banheiro. Abri a gaveta. Meu coração parou: só havia um envelope, lá.
De repente, as coisas começaram a fazer sentido: a resistência em chamar a polícia, a naturalidade com que recebia diariamente dedos indicadores, a forma como guardava sempre o envelope em sua gaveta --- decerto para poder repetir a brincadeira, no dia seguinte. Senti-me um tonto, por ter acreditado naquilo por tanto tempo. Quantos indicadores mais eu precisaria receber para suspeitar que houvesse algo errado?
E contudo, não fui dominado pela raiva ou por qualquer desejo de vingança. O que mais me preocupava eram justamente os mistérios que continuavam sem resposta: de quem era o indicador? Como minha colega o havia conseguido? Será que ela o arrancara? E, acima de tudo: por que, de todas as pessoas, mandá-lo justamente a mim?

sexta-feira, 9 de março de 2012

Dedos, 4

Agora, já não podia andar pelas ruas com tranqüilidade. Se alguém me estendia a mão em cumprimento, eu imediatamente procurava pelos cotocos de dedos faltantes; se uma senhora sinalizasse para parar um ônibus, se um jovem digitasse mensagens ao celular, se uma criança brincasse enrolando elásticos à mão... Eu imediatamente lhes contava os dedos, desesperado por encontrar finalmente Leonardo Tostão

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dedos, 3


No terceiro dia, minha preocupação aumentou. Dois dedos indicadores poderiam, é claro, pertencer à mesma pessoa --- ao tal Léo, como as análises de minha colega haviam comprovado ---, mas como explicar o envelope que, novamente, me esperava sobre a mesa pela manhã?
“Polidactilia”, explicou a voz de minha vizinha de baia, que agora não falava ao telefone, podendo dedicar-se com maior concentração ao MSN, o Facebook e os jogos de paciência.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Dedos, 2


No dia seguinte, mais um envelope me aguardava sobre a mesa. Já pressentindo o que viria, decidi abri-lo correndo, de uma vez, como quem arranca um curativo. E, lá dentro, encontrei mais um dedo humano.
Minha colega, curiosa, observava a tudo isso com atenção. “Outro?”, sussurrou, tapando o bocal do telefone. Confirmei com um gesto da cabeça e ela rapidamente tomou o envelope com o dedo de minhas mãos. Dando-me uma piscadela, guardou-o também na gaveta, de onde, ainda, tirou um pequeno pedaço de papel.
“O que é isso?”, perguntei, mas já via: era o resultado de uma análise das digitais do outro dedo, que ela presumivelmente, sabe-se lá graças a quais contatos, havia realizado na noite anterior. “Leonardo Tostão”, li. “Quem é esse?” Sem largar o telefone, ela empurrou para minha mesa o envelope em que o dedo havia chegado. Sob remetente, li o mesmo nome. “Alguém está me mandando o próprio dedo pelos Correios?”, perguntei.
Ela confirmou. “Hoje, verifico se este dedo é da mesma pessoa”, disse, afastando o telefone.
“E o que nós faremos?”
“Com o dedo?”
“Sei lá, com tudo isso. Falamos com a polícia?”
“Não, por que falaríamos?”
“Porque estão nos mandando dedos por correspondência!”
“E por que a polícia haveria de querer saber sobre isso?”
“Porque é importante, acho.”
“Que nada. Você sabe quantas pessoas recebem dedos em envelopes todos os dias? Se você ainda o tivesse encontrado dentro de uma latinha de Coca-Cola, seria outra coisa...”
“E se for um seqüestro?”
Ela riu de mim, com desdém.  “Ora, não seja ridículo. O remetente é o próprio Léo.”
“Léo?”
“É. Leonardo. Léo.”
“Bem, mas e daí que ele seja o remetente?”
“ Como ele pode ter seqüestrado a si mesmo?”
“Isso não quer dizer nada! Como vamos saber se...”, mas ela me interrompeu: parecia que a pessoa do outro lado da linha dizia qualquer coisa de importante. Resignado, fiquei em silêncio enquanto ela guardava o dedo na mesma gaveta, junto com o resultado da análise.

terça-feira, 6 de março de 2012

Dedos, 1

A carta não vinha endereçada exatamente a mim, mas ao "Departamento Jurídico". Como, porém, a empresa era pequena e não se envolvia muito em litígios de um modo geral, as duas coisas eram sinônimas, isto é: eu correspondia à íntegra de tal departamento. Assim, embora meu nome não constasse no envelope, foi a mim que a carta foi imediatamente encaminhada, assim que recebida na empresa e fui eu o primeiro a abrir o envelope e perceber que alguma coisa muito estranha devia ter acontecido, já que, em condições normais, eu nunca deveria ter recebido nada parecido com aquilo.
Dentro do envelope não havia nenhum recado para mim nem nenhum contrato que exigisse validação: havia um dedo humano.
Evidentemente, eu consegui pensar em algumas implicações jurídicas relacionadas ao fato de alguém me ter enviado um dedo pelos Correios --- de imediato, me vieram à mente a lesão corporal gravíssima e a violação das normas dos próprios Correios, que provavelmente não permitem o transporte de partes humanas ---, mas ainda não entendia muito bem o motivo daquilo ter sido enviado especificamente à minha mesa. Que eu me lembrasse, nunca havia feito elogios ao dedo de ninguém e também nunca demonstrei nenhuma inclinação à mutilação ou ao canibalismo (embora Deus saiba as coisas que ocasionalmente me passam pela cabeça).
Chamei a menina ao meu lado, funcionária do setor de atendimento ao cliente --- omito seu nome por medo de lhe trazer problemas. Ela estava no telefone e digitava com muita força, para que a pessoa do outro lado da linha ouvisse e achasse que ela estava efetivamente se esforçando para encontrar as informações solicitadas, embora, na verdade, ela estivesse apenas conversando pelo MSN com uma amiga. Mesmo assim, virou-se para mim inquisitiva e fez com a cabeça um sinal para que eu falasse. Muito embora ela claramente não estivesse prestando atenção ao cliente, fiquei um pouco intimidado pela situação, de forma que apenas indiquei o envelope para ela. Com um levantar dos ombros, ela me pediu mais informações.
"É um dedo", disse eu.
"O quê?", perguntou ela.
"Um dedo."
Ela ficou em silêncio por um tempo e, após pensar um pouco, perguntou: "E de quem é?"
"Não sei."
"Por que não?"
"Porque não sei, apenas recebi um dedo num envelope. Como ia saber?"
"Digitais."
"Boa sorte", disse e entreguei o dedo para ela. Ela guardou o dedo em sua gaveta e retomou a conversa com o cliente, justificando sua demora com uma estranha lentidão do Sistema. Dei de ombros, satisfeito: havia resolvido meu problema e estava livre do dedo.