terça-feira, 30 de abril de 2013

Flerte

O enigma se desenrola com uma falta de pressa enervante, os elementos se repetindo e se somando num ritmo quase desanimador, mas eu, pouco habilitado  ao trabalho de detetive (em que pesem as experiências acumuladas em anos de má prática do ofício), ainda me excito com essa caça de pistas como se refletissem de fato aquilo que vemos nos filmes, que em duas horas nos conduzem da crise à captura inexorável no final. Ademais, sou um jogador.
O termo engana porque jogos são comumente associados ao lazer e à diversão, o que certamente não reflete nada do trabalho que eu desenvolvo, mas em pelo menos alguns aspectos, é preciso: trata-se de uma competição, sem a menor sombra de dúvidas, entre mim e o mistério a ser desvendado, e trata-se de um exercício regido por regras, também sem dúvidas. Há as regras no sentido mais geral, as regras legais e sobretudo éticas ou morais que limitam minhas ações, mas também há as regras próprias do jogo, aparentemente criadas de improviso por meu oponente que, neste sentido, também já é um parceiro, num sentido curioso do termo.
E há uma meta, é claro, porque num jogo, ao contrário de em uma brincadeira, a parceria não é suficiente: joga-se para ganhar e, para mim, a única vitória possível é a subjulgação de minha nêmese, sua captura e aprisionamento até que não haja esperança de fuga. Vitória para mim virá quando eu alcaçar essa sombra que persigo e trancafiá-la para sempre atrás de grades.
E quando isto acontecer, trancarei eu mesmo a fechadura e guardarei eu mesmo o portão, em vigília absoluta. E nós dois passaremos assim os anos seguintes, deglutindo em silêncio os espólios da vitória ou as lições da derrota, conforme o caso, mas de qualquer maneira, juntos, como parceiros, num sentido curioso do termo.

sábado, 27 de abril de 2013

Balada da amora que não como

No meio do caminho tinha uma amoreira
e ir trabalhar era encher-me de amora
e o mundo era bom e havia ordem –
mas a prefeitura achou por bem a poda.

A amoreira lá ficou: ainda é viva
e ainda a vejo todo dia, mas agora
me esvazia, pois só onde não alcanço
seus galhos curtos ainda se enchem de amora

E em casa, tanta fruta: tem banana
tem pêra, e até (quando tem feira)
tem ameixa – e as como, mas comê-las

é um ato de patética vileza:
como-as com a boca, mas minha mente
e meu coração estão com a amoreira