quinta-feira, 26 de junho de 2008

Recicle! — Uma proposta.

A arte é expressar, e embora Fernando Pessoa dissesse que o que se expressa não é importante, ninguém haverá de negar que duas coisas que expressam mensagens diferentes só podem ser — se forem — duas formas diferentes de arte. Explico: se houver duas obras e em ambas for reconhecido o valor artístico, e se ambas expressarem mensagens que divergem, elas só poderão ser obras de arte distintas, desde que se tenha — e tenho — como inegável que o importante da arte é expressar.

Também só pode ser verdade que ninguém no mundo, ou pelo menos ninguém que reflita o suficiente sobre isso, diria que a obra do artista dadaísta Marcel Duchamp é exatamente a mesma coisa que uma privada que alguém colocou em uma exposição, ou que todas as fábricas de privadas produzem arte da mesma sorte que a dele. Ninguém pode dizer isso porque ainda que a obra de Duchamp seja uma privada exatamente igual à que é feita nas fábricas, ela expressa algo que nenhuma privada jamais expressou. Indo além, eu poderia dizer que a autoria da obra só pode ser de Marcel, ainda que ele não tenha efetivamente criado a privada, porque foi ele quem fez com que aquela privada expressasse um protesto anti-racionalista, quiçá desconstrutivista: retirado de seu âmbito cotidiano, o penico bem poderia ser uma fonte.

Note que, uma vez tendo ele obtido acesso à privada, nenhuma fábrica do mundo ousaria cobrar de Duchamp pelo direito de expô-la ou de transformá-la em arte ou de dar a ela o significado que fosse. Da mesma forma, nenhum vendedor de tinta ou de tela cobrará porcentagens das vendas de um Monet ainda que a tela tenha tido importância para que Monet pudesse expressar sua arte.

Que ninguém afirme, agora, que esse tipo de mudança do significado das coisas está preso às coisas tangíveis. A mudança de uma palavra ou mesmo uma vírgula pode alterar todo o significado de um livro, e ninguém haverá de negar isso, bem como ninguém haverá de negar que a entonação que se dá ao que se diz pode alterar todo o significado de um discurso e um contexto diferente pode transformar uma frase e assim por diante. Em verdade, eu diria que o mesmo conteúdo, se proferido pelo radical de esquerda ou pelo militante de direita, pode pular do mais entusiasta para o mais jocoso dos sentidos, ainda que não se mude em absoluto qualquer palavra ou tom ou o que quer que seja: a mudança do artista bastaria, então, para que mudasse a arte.

É ridículo que se pretenda limitar a criação de uma pessoa porque ela usa como base parte de obra já feita, desde que essa pessoa saiba dar ao que já era um significado que jamais fora. Não há prejuízo quando se cria o novo; só há prejuízo quando se impede o novo de ser criado. Que Duchamp pague pelo seu penico, vá lá, que ninguém aqui quer defender o roubo de nada; mas inibir a exposição d’A Fonte ou cobrar por ela qualquer coisa além da privada em si é ultrajante.

Peguemos as obras, brinquemos com elas e elas serão nossas! John Locke, ao mesmo tempo em que fundamentava as bases teóricas da propriedade privada, já não dizia que é propriedade do homem tudo o que é alvo e resultado do seu trabalho? Tudo o que o homem transforma através de seus esforços? Ah, não se acanhe! Pegue e não tenha vergonha de dizer que pegou; mude e transforme.

Recicle!

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