Ocorre que, na
vida, algumas coisas são simplesmente imperdoáveis. Assim, fazer um
trabalho ruim é muitas vezes mais fácil do que fazer um trabalho
bem feito, em que se atentou aos detalhes e em que se tentou prever
as mais variantes variáveis etc. No entanto, fazer um café ruim dá
o mesmo trabalho que fazer um café bom.
Por isso é que
sempre fiz questão de eu mesmo cuidar da moagem dos grãos, da
torra, da passagem da água, ciente e cioso de que não haveria
desculpas para que o resultado final fosse demasiado aguado,
demasiado amargo. Lembro-me de um comentário que me fizeram certa
vez, retificando a tradição popular de que a vida seria curta
demais para café ruim: a vida é, na verdade, extremamente longa, a
coisa mais longa que existe, aliás, e é por isso mesmo que não
devemos tolerá-la sem um bom café.
No tempo que se
segue, enquanto espero o gotejar desapressado do líquido que passa
pelo filtro e posteriormente enquanto dou goles pequenos e medrosos
(porque tenho medo do calor, mas também porque tenho medo do
fracasso) na bebida recém preparada, me passam pela cabeça os
pensamentos mais variados e eu não me ocupo tanto em controlá-los
quanto em formular as relações que os trouxeram. A lembrança de
meus primos naquele dia, na piscina, talvez tenha derivado de uma
associação entre a temperatura do líquido e o calor tranquilo do
sol que nos embalava despercebido enquanto corríamos, todos
crianças, pela grama. Esquentávamo-nos subindo nas jabuticabeiras e
nos perseguindo, para depois jogarmo-nos na água --- e a última
coisa que eu via, ainda no ar, eram meus primos gritando de alegria,
e então era o frio anestesiando todos os meus poros, abafando todos
os meus sentidos, e então só me sobra o gosto desse primeiro gole
de café.
Quando abro os
olhos, nada mais está lá: apenas a mesa da cozinha, a luz que entra
pela janela. Puxo uma cadeira e só então me sento. A xícara exala
um cheiro que me lembra da terra e das tardes com minha avó.
Entrávamos ainda molhados pela porta grande da sala, ainda gritando
e correndo, às vezes caindo, e minha avó estava na cozinha com sua
xícara e não ligava para a molhaceira que fazíamos, não ligava
para como a ignorávamos quando ela pedia que tomássemos cuidado
para não escorregar, e então ela esquentava leite na panela e fazia
com toddy pra gente, e às vezes tinha coscorão, também. Então,
sentávamos pingando água nas cadeiras de madeira da cozinha, as
almofadas levantadas para não molhar, e ficávamos vendo os insetos
nas redes da janela enquanto minha avó tomava o café que para mim
simbolizava a idade adulta, o amargo contrastando com o leite doce de
chocolate que bebíamos.
Quando o sol
começava a descer, nuvens infinitas de siriris voavam como que
brotando do chão e seguiam algum instinto absurdo, atrás de novos
lugares para infestar. A gente começava a andar com mais cuidado,
porque no escuro era mais fácil pisar nas mangas caídas do chão e
completamente tomadas pelas abelhas, as vespas e os marimbondos. E
então o sol mergulhava no horizonte com a vermelhidão de um tiê e
enchia o céu de tons de laranja como em um quadro expressionista e
depois vinha o preto.
Giro o fundo do
café na xícara e de repente me sinto completamente sozinho. Pela
janela, vejo alguns prédios indistintos e o céu cinzento de São
Paulo, que me traz uma última memória das estrelas da noite no
sítio. Termino o café num último gole, levanto, deixo a xícara na
pia e me deixo sentir por mais algum tempo o gosto bom que sobrevive
na minha boca.
2 comentários:
Que saudade, Ga!
Que saudade, Ga!
Postar um comentário