quarta-feira, 20 de julho de 2016

Olho distraído, distraído porque faço outras coisas, coloco os pratos na máquina, rego meu pé de sálvia, cuido da minha vida, enfim, olho e meu olhar se depara com a janela que dá para a rua e eu instintivamente procuro o imenso tanque de aço maciço que deveria avançar em direção à Vergueiro, rodeado por milicianos deste ou daquele lado, todos muito festivos com suas bandeirolas dessa ou daquela cor e cantando hinos e incitando as pessoas das casas a se juntarem a elas, supondo que já tenham terminado com a louça ou a sálvia. Na Vergueiro estariam já outros tantos tanques, e porque moro perto eu penso que deveria ser capaz de ouvir os tiros dos canhões, as dinamites, o grito assustado das pessoas correndo rua abaixo e se deparando com o tanque e os milicianos em festa.
Mais abaixo, na praça, ocupando a quadra onde em outros tempos alguém jogaria futebol ou soltaria o cachorro para correr um pouco, imagino os outros jovens, talvez com porte menos atlético e ar mais intelectual, lendo textos muito antigos ou muito novos em voz alta para as pessoas ao redor, chamando-as para a ação. Mesmo as pessoas que estejam na praça apenas porque queriam soltar seus cachorros certamente se comovem, talvez não pelo texto, que afinal é um pouco antigo, mas sim pelo fato de estarem os tanques nas ruas e por todo o resto, as certezas todas se desmantelando sob os aviões bombardeiros e os tiros de metralhadora.
A essa altura, tenho certeza de que uma menina vai vir correndo da praça, subir a rua a despeito de os tanques serem todos inimigos (no fim, todos os tanques são inimigos, porque ela é uma pacifista convicta), vai gritar em resposta para os milicianos que naturalmente não teriam como ouvir nada e então ela vai olhar para cima na esperança de encontrar ajuda e seus olhos encontrarão nada mais nada menos que os meus próprios, um pouco distraídos com a louça, mas ainda assim capturados pela cena e pela rua e pela janela. Eu também não ouviria nada do que ela diria, mas saberia que era importante, ciente dos tanques e dos tiros e dos aviões.
No fim, não havia nada de inocente no meu ato de estar distraído e me deparar de repente com a janela, era tudo absolutamente programado para eu testemunhar um ato qualquer de coragem que me tirasse da janela, talvez não sem antes regar também a pitangueira e o coentro, e descer para a rua para combater também os milicianos com suas dinamites, na esperança de conservar um mínimo de normalidade no mundo, evitar que aquelas pessoas todas a destruíssem a tiros.
Mas não tem tanque nenhum subindo a Machado de Assis. Se alguém está atirando na Vergueiro, daqui eu não ouço nada.
Talvez eu tenha entendido tudo errado.
Talvez seja justamente a normalidade que eu deveria sacudir das pessoas na rua, trazer eu mesmo os tanques, lançar minhas próprias dinamites.
Nem que fosse só pra deixar o mundo um pouquinho mais coerente.

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