sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Lagarto


Me dá um, não sei, um asco, não: uma pena deles todos e de suas... Suas certezas, sabe? Suas opiniões sobre tudo --- espero que não seja isso, envelhecer: ter opiniões, sempre, e... respostas. Por exemplo: uma vez eu estava num clube de campo (eu era pequeno e a gente fazia essas viagens, sabe?, por a gente eu quero dizer eu e meus pais e depois eu e meu pai, só) então a gente estava nesse clube de campo e de repente vimos correndo --- devia ser a uns dez metros de distância daonde a gente estava --- vimos correndo esse lagarto, sabe? Um daqueles grandões, acinzentados e sem nada de impressionante além do fato de serem grandes e selvagens e naturalmente distantes da nossa realidade cotidiana. Eu tenho um grande apreço por animais de grande porte e em especial por aqueles que não são mamíferos. Então, veja (eu não sei se um lagarto pode ser chamado de animal de grande porte, com exceção dos dragões de cômodo, que eu também não sei se são lagartos), nós estávamos lá, tomando sol ou pegando frutas ou fazendo qualquer outra coisa dessa natureza, está bem?, e passa de repente esse lagarto de vinte e poucos centímetros --- acho que podemos concordar que se trata de um réptil de grande porte, descontados os dragões, os dinossauros e, é claro, os crocodilos, jacarés e aligátores (você saberia apontar as diferenças entre eles? E não e lindo não sabermos?) --- vinte e poucos centímetros, portanto, grande porte com exceção daqueles, e ele estava a mil (poderiam ser mil) quilômetros por hora, acho, porque em um segundo ou talvez nem isso ele havia passado e encontrado um buraco qualquer e então havia sumido. Um segundo foi todo o tempo de que dispusemos para ver aquela intrusão de vida selvagem num clube de campo até então perfeitamente civilizado e de repente um dos amigos do meu pai levantou a lata de cerveja pensativo com um dos olhos meio fechados e disparou, com o tom de quem profere grandes verdades (era EX-AT-AM-EN-TE o que ele estava fazendo) e disse:

ERA FÊMEA.

Jesus, Laura, você entende agora o quanto isso diz sobre ele, sobre nós, sobre todo mundo? Uma fêmea, por Deus, ele no mínimo deve ter reparado nas genitálias de lagarto daquele lagarto durante os cem, se tanto, centésimos de segundo em que ele (ou ela, afinal!) passou por nós. E em tudo é assim, as pessoas estão o tempo todo tão seguras de que as coisas fazem sentido e se sustentam que elas têm liberdade para determinar o gênero de um lagarto que passa correndo por um instante.
E não me olhe desse jeito, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa e me fazer oposição; prestes a me chamar de injusto, porque eu sei muito bem que existem diversas maneiras de reconhecer o sexo de diversas espécies animais sem o exame das genitálias, mas eu não acho (acho, Laura, acho) que seja o caso desses lagartos tão comuns que não têm absolutamente nada de especial, nem cores nem nada. E também, não há a menor importância, Laura, é apenas um exemplo, está bem?
Mas, na verdade, todo mundo é assim, todo mundo menos eu. Imagine que as pessoas são seguras o bastante para saírem por aí e se declararem dentistasarquitetosengenheirosdelegadosprofessores, PROFESSORES, Laura! PR-OF-ES-SO-RE-S, e de fato lecionam, constroem etc. E eu? Minha resistência ao CREA, Laura é meu pilar de sustentação, a última tábua a que posso me agarrar e eu me agarro, mas é um maremoto, não uma maré. Todas essas pessoas são, portanto, confidentes umas das outras, isso é, suportam a certeza de unidade e coerência que carregam. Mesmo quando discordam, a seriedade de suas devoções ao Argumento fomenta a opinião contrária, não é mesmo? São, portanto, parte de um mesmo grupo. Nesse sentido, no limite, são todos meus inimigos. Detestam-me, e com razão.
Mesmo o Bruno, reparou em como ele sempre sabe das coisas e sustenta sempre posições contrárias à de quem quer que seja? O prazer da discussão só pode vir da certeza absoluta. Na fé, se pudermos e podemos dizer assim. Quanta confiança você precisa ter para falar o exato oposto daquilo em que acredita?
Por João Pessoa, Laura, mesmo você: certa de minha embriaguez, certa de estar mais consciente que eu e certa --- não tente esconder, foi o Bruno quem me disse e ele percebe tudo --- de que pode me consertar, não é?
E a verdade é que... oxalá você consiga. Que me importa, afinal, se o lagarto é macho ou se é fêmea, podia ser qualquer coisa não é isso o que importa, entende, então eu também poderei fazer cara de quem sabe o que diz e talvez nem veja de verdade o lagarto, mas direi:

É FÊ

não, ainda não posso, você precisa me consertar antes, não é? Ah, por Deus, Laura, por João Pessoa, juro que nunca mais bebo --- por favor, me lembre de não beber, que não quero nunca mais chorar assim na sua frente, você me desculpe. Mas não, são só algumas gotas, não importa, isso, pode deixar, já estou melhor.
É toda essa certeza, toda essa convicção. Me dá, não sei, não é asco, é, talvez, inveja, uma inveja de morrer.