quinta-feira, 25 de junho de 2015

Futuro


Não se preocupem, queridos, que eu tenho tudo planejado. O que acontece, na verdade, é que o futuro se anuncia tão possível que não posso deixar de me perguntar se o Mundo é mesmo grande assim, se a gente pode mesmo tanto.
Sempre achei que não podia nada. Não era um juízo da minha competência, mas da competência da vida: as coisas sempre me pareceram possíveis somente sob a bénção e a vigília de outra pessoa.
Eu me lembro, me lembro muito bem, de, pequeno, ter visto alpinistas. Na TV, claro, alpinistas subindo uma montanha impossível, virgem. Me lembro tão bem que, agora, penso ter inventado tudo. Mas, inventados ou não, os alpinistas subiam sem amparo nenhum, os equipamentos inúteis diante da falta de alguém que tivesse subido antes, amarrado os ganchos, prendido os cabos. Aquilo me deu um nó em algumas ideias então já bem definidas -- de que não se poderia subir uma montanha sem ganchos e cabos --, e minha mente de criança tratou de reinventar o mundo, refazer a regra, eliminar a idiossincrasia do episódio e adequá-lo ao que eu sabia da vida: aqueles eram profissionais dotados de uma espécie de autoridade que lhes permitia fazer algo que a outros humanos não seria facultado. Subiam, portanto, prendiam os ganchos, estiravam os cabos e tornavam lícito que outros fossem atrás e mimetizassem o feito.
Experiências do mesmo tipo me aconteceram tantas vezes depois que é impossível pretender relatá-las todas. Acho que por isso mesmo nunca fiz um curso de mergulho (o mar me aceitaria?), nunca me dispus a falar sobre alguns assuntos e, até hoje, ainda sinto algum grau de culpa toda vez que durmo fora de casa.
Não foi, também, que tenha sofrido restrições em excesso, que tenha vivido sob regras muito rígidas. Muito pelo contrário, aliás, tudo sempre me foi permitido. Também nunca fui propriamente vigiado. Não tenho a quem ou por quê culpar.
Falei em vigília, porém, e não menti: sempre tive alguém que olhasse por mim; sempre estive protegido. É desnecessário dizer que sempre contei com pessoas que fizessem as coisas por mim, que se desdobrassem para que eu não precisasse me desdobrar, mas não é só isso, também, o que eu quero dizer. Este é o desabafo de uma criança mimada, é claro, mas espero que seja um pouco mais do que isso. O fato é que eu nunca precisei correr riscos e, por isso, acreditei que ninguém mais o fizesse. Acreditei que se alguém escala uma montanha pela primeira vez, colocando pela primeira vez os grampos que segurarão alpinistas futuros, então essa pessoa certamente o faz com a proteção que lhes concede o título: “Alpinista”. O que nunca me ocorreu é que, para alguém se tornar alpinista, ela vai obrigatoriamente ter que escalar suas montanhas. O que nunca me ocorreu é que ninguém nunca veio a essas pessoas e concedeu-lhes o alvará: vamos!, suba!, a partir de agora, você é um alpinista. Acho que, até hoje, eu vinha esperando que alguém viesse com esse alvará.
Não é de se espantar, então, que o futuro me pareça tão impossível, ainda mais agora que está chegando. E, no entanto, tenho tudo, tudo planejado.