Não
se preocupem, queridos, que eu tenho tudo planejado. O que acontece,
na verdade, é que o futuro se anuncia tão possível que não posso
deixar de me perguntar se o Mundo é mesmo grande assim, se a gente
pode mesmo tanto.
Sempre
achei que não podia nada. Não era um juízo da minha competência,
mas da competência da vida: as coisas sempre me pareceram possíveis
somente sob a bénção e a vigília de outra pessoa.
Eu
me lembro, me lembro muito bem, de, pequeno, ter visto alpinistas. Na
TV, claro, alpinistas subindo uma montanha impossível, virgem. Me
lembro tão bem que, agora, penso ter inventado tudo. Mas, inventados
ou não, os alpinistas subiam sem amparo nenhum, os equipamentos
inúteis diante da falta de alguém que tivesse subido antes,
amarrado os ganchos, prendido os cabos. Aquilo me deu um nó em
algumas ideias então já bem definidas -- de que não se poderia
subir uma montanha sem ganchos e cabos --, e minha mente de criança
tratou de reinventar o mundo, refazer a regra, eliminar a
idiossincrasia do episódio e adequá-lo ao que eu sabia da vida:
aqueles eram profissionais dotados de uma espécie de autoridade que
lhes permitia fazer algo que a outros humanos não seria facultado.
Subiam, portanto, prendiam os ganchos, estiravam os cabos e tornavam
lícito que outros fossem atrás e mimetizassem o feito.
Experiências
do mesmo tipo me aconteceram tantas vezes depois que é impossível
pretender relatá-las todas. Acho que por isso mesmo nunca fiz um
curso de mergulho (o mar me aceitaria?), nunca me dispus a falar
sobre alguns assuntos e, até hoje, ainda sinto algum grau de culpa
toda vez que durmo fora de casa.
Não
foi, também, que tenha sofrido restrições em excesso, que tenha
vivido sob regras muito rígidas. Muito pelo contrário, aliás, tudo
sempre me foi permitido. Também nunca fui propriamente vigiado. Não
tenho a quem ou por quê culpar.
Falei
em vigília, porém, e não menti: sempre tive alguém que olhasse
por mim; sempre estive protegido. É desnecessário dizer que sempre
contei com pessoas que fizessem as coisas por mim, que se
desdobrassem para que eu não precisasse me desdobrar, mas não é só
isso, também, o que eu quero dizer. Este é o desabafo de uma
criança mimada, é claro, mas espero que seja um pouco mais do que
isso. O fato é que eu nunca precisei correr riscos e, por isso,
acreditei que ninguém mais o fizesse. Acreditei que se alguém
escala uma montanha pela primeira vez, colocando pela primeira vez os
grampos que segurarão alpinistas futuros, então essa pessoa
certamente o faz com a proteção que lhes concede o título:
“Alpinista”. O que nunca me ocorreu é que, para alguém se
tornar alpinista, ela vai obrigatoriamente ter que escalar suas
montanhas. O que nunca me ocorreu é que ninguém nunca veio a essas
pessoas e concedeu-lhes o alvará: vamos!, suba!, a partir de agora,
você é um alpinista. Acho que, até hoje, eu vinha esperando que
alguém viesse com esse alvará.
Não
é de se espantar, então, que o futuro me pareça tão impossível,
ainda mais agora que está chegando. E, no entanto, tenho tudo, tudo planejado.