Comendo uma bisteca, sinto a necessidade de extrair até o limite qualquer mínima fração de carne que consiga arrancar dos ossos. Pego com a mão, faço careta, contorcionismos para alcançar com a língua o último fiapo, depois lambo – os ossos e a mão, para o caso de ter restado ali algum sabor. Verdade que essa é mesmo a parte mais gostosa da bisteca, mas ainda que não fosse, eu faria tudo igual, não pelo prazer, não por fome (seguiria ainda que houvesse muito mais comida à mesa), mas por um sentimento de dever, talvez, porque é proibido que sobre qualquer coisa do que um dia foi uma bisteca. Se alguém, seguramente bem intencionado, me vê nesse exercício e sente pena e decide me ceder a metade da própria bisteca, que vinha encostada no canto do prato, eu me irrito, porque agora terei forçosamente que repetir todo o processo, comer tudo ainda que já estivesse completamente saciado, até o último fiapo que minha língua conseguisse alcançar entre uma forquilha dos ossos.
A bisteca, o leitor já terá adivinhado, é uma alegoria. Tudo na minha vida é assim. Quero a última gota quente da cerveja no meu copo, a última nota da música de que não gosto antes de as luzes se acenderem e a festa acabar, todos os olhares de desejo das pessoas que eu mesmo não desejo. Quero, em cada noite, sair, curtir minha casa, escrever, ler, ouvir música, ver um filme, desenhar, tocar ukulele, jogar Dragon Quest 8 no 3DS e Shin Megami Tensei no Switch, quero editar um vídeo para postar no tiktok, promover o jogo que lancei, terminar o outro que está em andamento, começar um terceiro projeto.
É que a vida é muita coisa, o mundo é muito grande (mundo, mundo) e eu às vezes sou pequeno demais, preciso me desdobrar, ou então grande também, menorme, preciso transbordar. Não dá tempo de não fazer tudo, mas dá menos tempo de fazer nada. Parece ter, e talvez tenha mesmo um pouco de arrogância nisso, em achar que tenho algo a dar ao mundo, mas se dou minha contribuição, e vá saber se se pode chamar isso de contribuição, não é a ele, que já é grande, mas a mim mesmo: só eu me regozijo de minhas quimeras, me compadeço de seus enterros, é meu presente de mim pra mim, mas também minha dívida comigo mesmo: quando tudo isso acabar, não jogar fora junto com os ossos nenhum fiapo de bisteca.
— Ó vida futura! nós te criaremos