segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Passagem

Você sabe, é aquele momento em que você pôs a cabeça em baixo da cascata e sente a água congelante nos cabelos, o corpo inclinado para a frente por um medo qualquer de se molhar, e então você dá um passo para a frente, entrando completamente debaixo d‘água, mas antes... Antes de a água cair no seu peito e gelar suas costas, antes de você ser encharcado e cortado pelo rio que vai, você sente o ar faltar no peito. É uma fração de segundo, o tempo que dura, mas seu coração acelera e você está consciente demais das águas que passam por você. É dessa falta de ar que eu estou falando.

Naquele dia eu dormi na praia e não havia ninguém lá quando o sol me acordou assim como não havia ninguém quando a lua e as estrelas e o fogo estalando me fizeram sonhar com coisas de contos de fadas. Durante a noite Iemanjá vem na forma de onda e me toca os pés e me apaga o fogo, então quando eu acordo já seco eu sei que nada de ruim vai me acontecer.

Eu levanto e sacudo a areia fria e me espreguiço de pé e já saio correndo descalço em direção ao mato, que é lá que ela deve estar. No meio do mato tem o rio. No meio do rio, a cachoeira e no meio da cachoeira, com alguma sorte, a menina que está acampando. Ela é morena e bonita e perfeita e disse que tem dezessete anos e eu disse que eu espero.

Sentado ali na pedra, espero vinte, quarenta minutos. Nesse tempo, pego um pitu de catorze centímetros, mato logo e guardo. Depois fico vendo um peixe nadando parado contra a corrente, mas ele foge assim que eu me inclino um pouco e é bem aí que ela chega. Chega sozinha que nem disse que chegava e diz Meus amigos foram pra praia, eu disse que não estava bem. Que depois ia. Não tem ninguém nas barracas agora.
Eu sorrio igual venho sorrindo nessa última semana, mas um pouco mais porque parece que as coisas agora vão dar certo, finalmente. Sem levantar, chuto água nela e o gritinho-riso é exatamente como você está imaginando, e então eu pulo na água e ela também e nós dançamos. Tenho certeza que ela também sentiu. A falta de ar. Só depois é que corremos de mãos dadas para o acampamento, porque ela gosta de conforto, ou porque não gosta de insetos, e entramos na barraca dela.

Fico por algum tempo me perguntando se fui desprezível ou generoso ao deitar com ela na barraca e abraçá-la e beijá-la toda, e depois ficar sussurrando bem pertinho do ouvido dela enquanto ela expremia os olhos bem fechadinhos, mas agora ela está deitada e não tem mais ninguém aqui então isso não importa mais. Eu saio da barraca para que ela saia atrás e dou de cara com o mar logo ali, debaixo do rochedo, uns três metros pra baixo do acampamento. A água bate nas pedras com força e eu estou pensando nisso quando ela vem e me abraça por trás e me beija a nuca. Nesse momento, eu sinto de novo a falta de ar.
É nessa hora que eu mudo de idéia e decido que se eu pegar o som, os celulares e o dinheiro e sair correndo para o mato, ela nunca vai me alcançar, então não tem porque eu empurrar ela de lá de cima.

Eu faço força pra ela me soltar, mas só o que eu quero é conseguir correr para pegar tudo. Só que é bem nessa hora que uns amigos dela voltam e acham que eu estou fazendo alguma coisa com ela ou sei lá. Eles pulam pra cima de mim e eu grito Merda merda merda, por que não me soltou logo, sua vadia? E ela está chorando, então eu me arrependo de ter dito isso e fico um pouco assustado e acabo me desequilibrando.

Quando eu caio, a última coisa que vejo são as ondas de Iemanjá se atirando pra cima de mim. Pra impedir que qualquer coisa de ruim me aconteça. Eu fecho os olhos e meu coração pára por um segundo, eu fico esperando para ser recebido pela deusa. É dessa falta de ar que eu estou falando.

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