segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mar, 1

Apesar de tudo, eu nunca vi o mar como um amigo. Era algo diferente, como um animal selvagem que alguém tivesse domado. Eu conhecia o mar, sabia lidar com ele e, sim, eu chegava mesmo a confiar no mar. Mesmo quando mergulhava com tubarões, moreias, baleias --- e não foram poucas essas ocasiões ---, nunca era exatamente medo o que eu sentia: era mais a consciência avassaladora da grandeza do mundo e da absoluta impossibilidade de lutar contra ele. Era admiração, mais que qualquer outra coisa. Mesmo quando eu passava semanas em embarcações pouco confiáveis, com tripulações que mal falavam a minha língua, ou quando era jogado pelas ondas sob tempestades ou na ocasião em que navegamos para o sul e ficamos presos no gelo e só víamos o branco da névoa, eu nunca, nem mesmo uma vez, olhei para o mar com rancor.
Mas é claro que eu conhecia os ditados. No fundo, não havia diferença entre mim e os pescadores cubanos com quem tantas vezes tomei rum. Assim, eu sabia tanto quanto eles que o mar deve ser amado, mas respeitado. O mar dá, eles diziam, e o mar tira.
Por isso, eu seguia navegando e mergulhando e eu amava o mar acima de qualquer coisa, mas eu nunca perdi o respeito por ele. Eu abraçava tudo o que o mar me dava e reconhecia o quanto ele era generoso comigo. E eu esperava pelo dia em que ele me tiraria algo em troca.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Piores dias


Eu odeio todas as pessoas
Que escrevem canções de amor
Porque eu não sei cantar
Eu não sei escrever
E eu nem sei direito
Se eu sei amar
Eu sei que era eu
E que era você
E não era nada, nada, nada
Porque a gente era eu
E era você
Mas não era a gente
E nem podia ser
Mas era tudo, tudo, tudo
Era de madrugada
Toda madrugada
Sempre madrugada
E a gente acordado junto
(mas não juntos)
E eu queria, mas não demais
E você disse que não podia ser
E foi ruim, assim
Mas não muito
E os dias piores
Ainda estavam por vir

E depois foram meses
Sem ouvir falar
E acho que eu acreditei
Que era só esquecer
Só deixar pra lá
Mas teve aquele dia no shopping
Em que não aconteceu nada
Mas foi tudo, tudo, tudo
Porque estava eu
E estava você
E não era a gente
Mas de repente
Só naquele instante
Acho que até podia ser
Então nos falamos
Acho que foi você quem falou
E eu ouvia, ouvia, ouvia
Ou via, via via
E foi meio horrível
Mas também meio bom
Ter a cabeça cheia
De você
Durante toda a madrugada
Toda madrugada
E não só de madrugada
Ficar acordado
Com a cabeça pesada
E o peito pesado
E os olhos pesados
De você
Mas os dias piores
Ainda estavam por vir

Quanto tempo levou
Pra tudo dar certo
Quando tudo deu errado?
Ficamos presos no carro
Ou o telefone tocava
Ou era engano
Ou era eu
Ou não era nada
E era nada, nada, nada
E você disse que não entendia
E nem eu entendia
Você achou que não era pra ser
Eu achei que não era você
Mas uns dias, umas semanas
Pra quem tem a vida toda
E na verdade, na verdade
Acho que eu sempre tive fé
Em você
E foi aí que tudo ainda tava errado
Mas como você estava do meu lado
Era tudo, tudo, tudo
E eu segurei seu rosto
Ou foi você quem segurou minha mão
Ou foi minha boca que segurou a sua
Ou foi tudo, tudo, tudo
E ninguém me culpe por não ouvir
Quando vieram me dizer
Que os dias piores
Ainda estavam por vir

Mas quanto tempo levou
Pra tudo dar errado
Quando tudo deu certo?
Quando você me falou
Ou me fez te falar
Que a hora era ruim
E que era o fim
I see skies
(Or are these violets
Blue, blue, blue?)
Red roses
Too, too, too
Is it a song
Or lame poetry?
Should I stay or
Let it be
Mas isso não é uma canção
E muito menos um poema
Nada, nada, nada
Nada que valha a pena
Ne rien choisir
Mas eu fiz pra você
E pra gente esquecer
Que os dias piores
Estão sempre por vir

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Dia 8.317

Descobri que também este intermediário tem jogado fora, ao invés de entregar, parte dos textos que dou a ele --- apesar das quantidades cada vez maiores de ração que me cobra pelo serviço. Tanto faz.
Já não ligo para isso, assim como não me incomodo de cumprir as ordens, de dar as ordens, de sorrir quando preciso sorrir etc. Tanto faz.
Nos últimos tempos, descobri as coisas mais absurdas, que me tiraram qualquer possibilidade de reação. Meus carcereiros, também eles, estão contaminados. Pior: cultivam o vírus e o disseminam a conta-gotas. Nos trancam aqui e nos tolhem a comunicação não porque temem que a doença se espalhe para além dessas grades. Ela já se espalhou. Não, o medo deles é outro, é outra a causa de nossa privação. Não nos isolaram para salvaguardar a você e aos outros. Se me tiram agora o papel das mãos é porque acham que dele, um dia, pode nascer a cura.