segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Ao longo de uma música


É quando me bate a saudade das coisas que eu deixei de ser pelo caminho. Quando me pego sentado com a postura errada, olhando para a tela do computador sem realmente enxergar as palavras e ouvindo no fone o Gilberto Gil cantando sua versão do Bob Marley e eu me lembro, é claro, daqueles dias na praia (quinze anos, salvo engano) e daqueles meninos mais velhos (adultos, portanto) com o violão.
Eram os únicos momentos em que eu conseguia ficar quieto (nesse sentido, não mudei nada: sempre imensamente afetado pela hostilidade de um ambiente e igualmente por sua receptividade), olhando a rebentação e as meninas perto da fogueira, algumas de biquíni, ainda. Havíamos passado a noite inteira zanzando pelo Centrinho, tomando sorvete e mudando ocasionalmente de lugar para ver as meninas passando. Era mais ou menos a isso que se resumiam minhas férias, imaginem só. E eu diria que valeu a pena se pelo menos conseguisse me lembrar de qualquer uma delas. Enfim. De qualquer forma, só as via passando, mesmo, e então comíamos qualquer coisa e nossas amigas (que também víamos só de passagem) nos chamavam para mais perto do mar.

Um dia, choveu muito e a água passou sem tomar conhecimento do teto de um dos quartos, molhando completamente alguns dos colchões. Os adultos evidentemente não perderiam suas camas, então seríamos forçados a espalhar os colchões restantes no chão e dormirmos todos juntos. Éramos três meninos e duas meninas, ambas um pouco mais novas e absolutamente maravilhosas. Isso foi logo na hora do almoço, então nós três passamos o dia inteiro sem conseguir pensar em qualquer outra coisa. A todo momento, discutíamos como seria estarmos tão perto das meninas; os assuntos que inevitavelmente surgiriam; as vontades que elas certamente já sentiam e reprimiam, mas que, no ambiente propício, floresceriam; e, principalmente, quem de nós seria o desafortunado que ficaria de lado, sozinho, perdido. Ensaiamos movimentos, frases, formas de sussurrar. Não posso dizer quanto aos outros, mas pessoalmente, me apavorava pensar na possibilidade de chutar alguém, roncar ou peidar durante o sono.
À noite, repetimos o teatro de sempre: o Centrinho, as mudanças de mesa --- mas já nem ligávamos para quem passava, exceção feita ao tempo.
Eventualmente, as duas vieram e nos chamaram para ir à praia e, conforme havíamos deliberado previamente, acatamos e as seguimos, tendo sido vetada, por ser considerada suspeita, a ideia de negarmos o luau, propondo em seu lugar um jogo de baralho que antecipasse nosso grande momento de trunfo e glória.
Assim foi que sentamos na areia como se aquele fosse um dia absolutamente comum e olhamos a rebentação e ouvimos a música, enquanto nos perguntávamos aos cochichos se já não era tarde, se já não podíamos organizar a volta à casa. E estávamos nessa quando vimos dois rapazes deitarem o violão e sentarem do lado das meninas e conversarem com elas. Como se a gente não estivesse ali!
Eventualmente, acabamos desistindo de olhar pra escuridão fingindo indiferença e voltamos pra casa. Jogamos nós o baralho e esperamos até cairmos de sono sozinhos nos tais colchões.
Quando acordamos, elas estavam lá, com a gente. Mas aí já não adiantava mais.

Será que eu suportaria aquilo, hoje? Aquela conversa, aquelas piadas sobre a homossexualidade alheia e sobre a genitália própria? Certamente ainda gosto da areia e do mar, ainda pego caranguejos, quando posso, mas ouvir Natiruts mal interpretado à meia noite no litoral norte...
É bem provável que eu esteja melhor com a postura torta e as palavras no monitor. Mas...
Mas era uma possibilidade, não era? Mesmo agora, se eu repassar tudo o que aconteceu desde então, acho que nem consigo identificar exatamente quando foi que aquilo virou um absurdo. E também não dá pra dizer que não sejam absurdos este agora, esta camisa, estes sapatos.

Quando vim trabalhar no banco, lembrei imediatamente de dois ex-colegas de faculdade que eu sabia (ou suspeitava) que trabalhavam aqui. Já nas entrevistas, perguntei ao meu (então potencial) futuro chefe se os conhecia, mas ele nunca havia ouvido falar em nenhum dos dois. Dei de ombros, que o banco é grande, cheio de pessoas e departamentos e tudo o mais. Nenhum motivo para me admirar, evidentemente.
Mas num outro dia, já contratado, flagrei-lhes os nomes sendo mencionados numa conversa. Investiguei um pouco e matei a charada: os dois eram empregados, sim, mas não do banco em si, e sim de outra pessoa jurídica do mesmo grupo econômico: trabalhavam para um outro banco, focado em investimentos de grandes pessoas jurídicas, que foi adquirido pelo conglomerado mas manteve seus funcionários, incluindo o corpo jurídico.
Cavando um pouco mais, descobri o e-mail dos dois, e mandei minhas saudações. Eles responderam, me parabenizando pela contratação e desejando sorte, mas depois disso nunca mais nos falamos.
Passados sete meses, o funcionamento do banco começou a fazer mais sentido para mim, assim como se evidenciaram as relações entre departamentos, as disputas por orçamento e as rixas internas. Embora não houvesse hierarquia formal entre as diretorias, comecei a perceber que determinadas áreas gozavam de certos privilégios, sempre proporcionais aos lucros que elas rendiam para nossos acionistas.
O setor com o pessoal que geria os fundos tinha a melhor vista do prédio. Os gerentes dos clientes milionários tinha, nos e-mails, uma assinatura mais personalizada e, na copa, bolachas Calipso, ao invés das de água-e-sal. Meus colegas que lidam com clientes internacionais receberam computadores novos. Mas ninguém dava tanto dinheiro para o banco quanto as grandes pessoas jurídicas e suas emissões de debêntures, seus IPOs, seus M'n'As, suas operações de câmbio gerando milhões no float.
Então, nem os gestores de fundos, nem o pessoal que lidava com socialites, nem o pessoal do internacional, com suas conference-calls em línguas sortidas --- nenhum deles se comparava à equipe dos meus dois amigos. Eram eles que nos exigiam os prazos mais curtos e que mais nos condenavam por perdê-los. Eram eles que determinavam, com voto de Minerva, as datas e horários das reuniões. O banco de investimento era o panteão dentro do conglomerado, e lá só havia deuses.
Ah, como eu fui inocente, mandando aquele primeiro e-mail! Eu imagino a cara deles, ao recebê-lo. O ex-coleguinha de classe que arrumou uma vaga na cozinha e vem se gabar aos passageiros do cruzeiro. Eu imagino na cara deles o misto de divertimento e pena com que viram a animação com que eu relatava minha contratação e os imagino lançando um para o outro um olhar cúmplice.

Será que daqui a alguns anos, também vou me lembrar e... Bom, pior seria não lembrar. De todo modo, é o próprio Gil quem me conforta e diz que tudo-tudo-tudo vai dar pé.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Mar, 17 - A história do norueguês

Ike embarcou novo demais para se lembrar de qualquer paisagem norueguesa. Também não sobrou muito por lá de que se lembrar. Viajaram com ele a família toda e a esmagadora maioria dos amigos e conhecidos. Todos os bens foram empilhados em navios, todos os moradores da vila juntaram suas coisas e, aos poucos, não sobrou ninguém por lá.
Assim, quando pensava na infância, era para os campos da Inglaterra, então dominados pelos nórdicos, que ele voltava a memória. Àquela altura, o território tomado já era tão vasto que Ike praticamente não via sinais da guerra: em sua vila se plantava e se criava em paz e se falava o norueguês. Os ingleses que restavam falavam uma mistura da língua do norte com o saxão e também não devotavam lealdade ao rei britânico. Para eles, que não eram cristãos e não tinham grande apreço pelos impostos cobrados pela coroa, a vida seguia em frente.
Mas, ao sul, os combates prosseguiam, intercalando grandes conquistas com pesadas derrotas. As histórias chegavam ao norte na forma de relatos mal contados de ar fabulesco, misturando as narrativas dos grandes feitos dos comandantes noruegueses e dinamarqueses com menções a espíritos ruins e bestas vindas de outros mundos. Era impossível considerar a guerra de forma concreta, como o era esperar que ela mantivesse incólumes por muito tempo aqueles vilarejos.
Quando tudo ia bem, os viajantes chegavam com moedas e muita sede, pagando bem nas estalagens e bordéis; mas quando os ingleses viviam seu ápice e as terras do sul eram retomadas, os fugitivos vindos de lá apinhavam e alimentavam a mendicância e a criminalidade dos vilarejos. Traziam, também, a demanda constante por comida e por braços jovens e fortes, como já eram então os de Ike.
Ele já era um pouco velho para aprender como se devia o ofício da guerra, viciado já na forma alucinada e desordenada com que os meninos brigavam na rua, mas Ike logo se demonstrou um soldado talentoso e, principalmente, ambicioso. Mesmo enquanto ainda engatinhava nas linhas em que lutava, ele já sabia bem que queria ter seus próprios homens e, principalmente, seu próprio barco.
Durante seis anos, Ike lutou em diversas batalhas, obtendo vitórias significativas e, com elas, riquezas.
Eram anos em que combater era um negócio lucrativo, e, para os profissionais do ramo, nunca faltava trabalho.
Nos pântanos da Wiltshire, matou homens o bastante para comprar um punhado de terra ou um título de nobreza, mas, isso não lhe interessava: eram ambições para quem queria formar uma linhagem, e Ike não pensava em parar. Não agora.
Ao invés disso, usou o dinheiro para iniciar seu plano de ter um pequeno exército. Ike pagava bem aos homens que o seguiam e os treinava melhor, de forma que não demorou a juntar bons soldados que lhe defendessem o brasão. Um navio, contudo, parecia ser um sonho mais ambicioso.
Em primeiro lugar, eles eram caros. Ike havia juntado dinheiro, mas nem de longe tinha o suficiente para pagar pelos serviços de um bom construtor (que a madeira, arranjava-se). Em segundo lugar, tomavam tempo e exigiam muita mão de obra --- duas coisas que Ike julgava difíceis de conseguir.
Restava-lhe, no entanto, a opção de recorrer à forma alternativa de aquisição de quaisquer bens mais em voga naqueles tempos: a guerra.
Aconteceu-lhe como que por acaso. Num ataque a uma fortificação, viu-se separado do resto das forças nórdicas quando um exército saxão, surpreendendo-lhes pela retaguarda, rompeu a linha que os noruegueses voltavam aos portões do castelo. O combate os arrastou cada vez mais para longe dos companheiros e para perto das margens de um rio, deixando-os encurralados e em menor número. Nesse momento, rio acima, despontaram os mastros de duas naus saxãs, descendo as águas com mais homens para terminar aquilo que todos os indícios apresentavam como um massacre.
Mas Ike havia estudado o terreno e sabia ler as águas melhor que qualquer inglês. Manobrando seus homens como um maestro, dirigiu-se para onde as ondas indicavam a presença de bancos de areia e contornou, pela água rasa, os homens que os prensavam. Os navios não puderam chegar mais perto e seus tripulantes tinham dificuldade em arrastarem-se, com o aço que vestiam e levavam, pelo lamaçal. Enquanto isso, o exército inglês em terra firme perdera a vantagem geográfica e começava a tropeças em seus próprios mortos. Quando os homens dos navios chegaram, o fizeram sem nenhum ímpeto e sem equilíbrio, desastrados e já se sabendo em maus lençóis.
Enquanto isso, as espadas faiscavam umas contra as outras e os escudos tilintavam sobre o ruído das águas. ike ainda tinha menos homens, mas os que tinha sabiam que haviam sobrevivido ao pior e esse ânimo lhes dava forças. Resumindo uma história que já se alonga além do que devia, venceram, e aos vencedores, as naus.

Foi ao barco que Ike deu o nome de Maud Thyra. E, a princípio, Ike se demonstrou tão genial nos mares quanto o era em terra firme. Suas manobras eram mais ágeis e precisas que as de qualquer oponente, e Ike os derrotava um a um. Mas então, o impensável aconteceu.
Foi justamente no equinócio que, após navegar por seis dias, Ike e três navios aliados se depararam com as forças do rei Alfredo: seis navios apinhados de saxões raivosos. Os nórdicos logo compensaram a desvantagem numérica com o instinto natural aos combates no oceano, mas havia algo errado com Maud. A nau estava perdida, incapaz de prever as manobras dos adversários. Estava lenta. Ike parecia ter perdido a mão, e isso lhe custou caro demais. Foi cercado como um rebanho pelo cão pastor. Foi dominado, rendido e derrotado.
Os saxões o capturaram e a partir daí, a história se torna nebulosa. É certo que sofreu as piores torturas que seus captores puderam imaginar e que, de alguma forma, conseguiu fugir. Mas então, já não era o mesmo.
Parecia um fantasma, a sombra de um homem, perambulando bêbado pelas estradas litorâneas, procurando incansavelmente por seu barco. Desde então, sempre que chega o equinócio, a dor lhe ataca e ele repete sua lástima pela perda do Maud Thyra.