Ike embarcou novo demais para se lembrar de qualquer paisagem norueguesa. Também não sobrou muito por lá de que se lembrar. Viajaram com ele a família toda e a esmagadora maioria dos amigos e conhecidos. Todos os bens foram empilhados em navios, todos os moradores da vila juntaram suas coisas e, aos poucos, não sobrou ninguém por lá.
Assim, quando pensava na infância, era para os campos da Inglaterra, então dominados pelos nórdicos, que ele voltava a memória. Àquela altura, o território tomado já era tão vasto que Ike praticamente não via sinais da guerra: em sua vila se plantava e se criava em paz e se falava o norueguês. Os ingleses que restavam falavam uma mistura da língua do norte com o saxão e também não devotavam lealdade ao rei britânico. Para eles, que não eram cristãos e não tinham grande apreço pelos impostos cobrados pela coroa, a vida seguia em frente.
Mas, ao sul, os combates prosseguiam, intercalando grandes conquistas com pesadas derrotas. As histórias chegavam ao norte na forma de relatos mal contados de ar fabulesco, misturando as narrativas dos grandes feitos dos comandantes noruegueses e dinamarqueses com menções a espíritos ruins e bestas vindas de outros mundos. Era impossível considerar a guerra de forma concreta, como o era esperar que ela mantivesse incólumes por muito tempo aqueles vilarejos.
Quando tudo ia bem, os viajantes chegavam com moedas e muita sede, pagando bem nas estalagens e bordéis; mas quando os ingleses viviam seu ápice e as terras do sul eram retomadas, os fugitivos vindos de lá apinhavam e alimentavam a mendicância e a criminalidade dos vilarejos. Traziam, também, a demanda constante por comida e por braços jovens e fortes, como já eram então os de Ike.
Ele já era um pouco velho para aprender como se devia o ofício da guerra, viciado já na forma alucinada e desordenada com que os meninos brigavam na rua, mas Ike logo se demonstrou um soldado talentoso e, principalmente, ambicioso. Mesmo enquanto ainda engatinhava nas linhas em que lutava, ele já sabia bem que queria ter seus próprios homens e, principalmente, seu próprio barco.
Durante seis anos, Ike lutou em diversas batalhas, obtendo vitórias significativas e, com elas, riquezas.
Eram anos em que combater era um negócio lucrativo, e, para os profissionais do ramo, nunca faltava trabalho.
Nos pântanos da Wiltshire, matou homens o bastante para comprar um punhado de terra ou um título de nobreza, mas, isso não lhe interessava: eram ambições para quem queria formar uma linhagem, e Ike não pensava em parar. Não agora.
Ao invés disso, usou o dinheiro para iniciar seu plano de ter um pequeno exército. Ike pagava bem aos homens que o seguiam e os treinava melhor, de forma que não demorou a juntar bons soldados que lhe defendessem o brasão. Um navio, contudo, parecia ser um sonho mais ambicioso.
Em primeiro lugar, eles eram caros. Ike havia juntado dinheiro, mas nem de longe tinha o suficiente para pagar pelos serviços de um bom construtor (que a madeira, arranjava-se). Em segundo lugar, tomavam tempo e exigiam muita mão de obra --- duas coisas que Ike julgava difíceis de conseguir.
Restava-lhe, no entanto, a opção de recorrer à forma alternativa de aquisição de quaisquer bens mais em voga naqueles tempos: a guerra.
Aconteceu-lhe como que por acaso. Num ataque a uma fortificação, viu-se separado do resto das forças nórdicas quando um exército saxão, surpreendendo-lhes pela retaguarda, rompeu a linha que os noruegueses voltavam aos portões do castelo. O combate os arrastou cada vez mais para longe dos companheiros e para perto das margens de um rio, deixando-os encurralados e em menor número. Nesse momento, rio acima, despontaram os mastros de duas naus saxãs, descendo as águas com mais homens para terminar aquilo que todos os indícios apresentavam como um massacre.
Mas Ike havia estudado o terreno e sabia ler as águas melhor que qualquer inglês. Manobrando seus homens como um maestro, dirigiu-se para onde as ondas indicavam a presença de bancos de areia e contornou, pela água rasa, os homens que os prensavam. Os navios não puderam chegar mais perto e seus tripulantes tinham dificuldade em arrastarem-se, com o aço que vestiam e levavam, pelo lamaçal. Enquanto isso, o exército inglês em terra firme perdera a vantagem geográfica e começava a tropeças em seus próprios mortos. Quando os homens dos navios chegaram, o fizeram sem nenhum ímpeto e sem equilíbrio, desastrados e já se sabendo em maus lençóis.
Enquanto isso, as espadas faiscavam umas contra as outras e os escudos tilintavam sobre o ruído das águas. ike ainda tinha menos homens, mas os que tinha sabiam que haviam sobrevivido ao pior e esse ânimo lhes dava forças. Resumindo uma história que já se alonga além do que devia, venceram, e aos vencedores, as naus.
Foi ao barco que Ike deu o nome de Maud Thyra. E, a princípio, Ike se demonstrou tão genial nos mares quanto o era em terra firme. Suas manobras eram mais ágeis e precisas que as de qualquer oponente, e Ike os derrotava um a um. Mas então, o impensável aconteceu.
Foi justamente no equinócio que, após navegar por seis dias, Ike e três navios aliados se depararam com as forças do rei Alfredo: seis navios apinhados de saxões raivosos. Os nórdicos logo compensaram a desvantagem numérica com o instinto natural aos combates no oceano, mas havia algo errado com Maud. A nau estava perdida, incapaz de prever as manobras dos adversários. Estava lenta. Ike parecia ter perdido a mão, e isso lhe custou caro demais. Foi cercado como um rebanho pelo cão pastor. Foi dominado, rendido e derrotado.
Os saxões o capturaram e a partir daí, a história se torna nebulosa. É certo que sofreu as piores torturas que seus captores puderam imaginar e que, de alguma forma, conseguiu fugir. Mas então, já não era o mesmo.
Parecia um fantasma, a sombra de um homem, perambulando bêbado pelas estradas litorâneas, procurando incansavelmente por seu barco. Desde então, sempre que chega o equinócio, a dor lhe ataca e ele repete sua lástima pela perda do Maud Thyra.
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