Estava no ponto da
avenida Luciano Gualberto, esperando pelo ônibus e por uma
oportunidade de tirar meus sapatos e/ou o cinto, que ambos me
apertavam. A tripla espera me desviava a atenção, mas quando o
casal (eu não sei se eram propriamente um casal, porque podiam ser
só duas pessoas andando juntas; gosto de pensar que eram um casal)
quando o casal, eu dizia, chegou oferecendo brigadeiros, eu percebi
que também estava com fome.
Um dos vendedores de
brigadeiro me estendeu a tigelinha, pedindo dois reais em troca.
Achei caro, mas chequei rapidamente minha carteira: eu tinha dois
reais, eu tinha fome.
“É um brigadeiro
caseiro, de panela”, ele disse. Não sei se existe outro tipo de
brigadeiro. Talvez ele também tenha pensado nisso, porque
complementou, piscando um olho: “É bem puxadinho”.
Aquilo foi um trigger.
Não
foi exatamente desconfiança, mas eu tinha que pensar nas minhas
circunstâncias. É importante, isso aí. CI-RC-UN-ST-ÂN-CI-AS.
Ei-las: ponto de ônibus, vinte e duas horas da noite. Casal
desconhecido vendendo brigadeiro.
Lembre-se
do que seus pais diziam. Do que os desenhos animados diziam. De João
e Maria e a casa da bruxa. Por Deus: lembre-se da menina no primeiro
ano SanFran, xingando a Deus e ao mundo no grupo de e-mails da classe
depois de ter comido cinco fatias de brownie batizado no churrasco da
turma.
E
afinal, o que foi aquela piscadela acompanhando a descrição do
brigadeiro? Bem puxadinho.
Hmmm.
Imediatamente,
pensei nas toxinas invadindo meu corpo, entrando no meu sangue,
chegando ao meu cérebro. Pensei que se mordesse aquele brigadeiro,
minha cabeça se abriria como um ovo do qual sai uma ave. E então a
ave voaria e seria eu, voando, e o voo seria descontrolado como nos
sonhos recorrentes que tenho, em que dirijo um carro sem freios e com
guidão desregulado. Lutando contra o vento, eu esbarraria nas
pessoas do ponto, no próprio ponto, nas árvores ao redor.
Esbarraria também no poste de luz, mas nele conseguiria um impulso
último, que me arremessaria para o céu aberto da noite paulistana.
E então eu planaria. De lá de cima, veria as pessoas no ponto,
ignorantes do que se passava. Veria o prédio da Letras e a
biblioteca Brasiliana, em frente, e então logo adiante o CRUSP, o
CEPE, as avenidas que levam até a cidade. Se o vento me levasse para
o sul, eu veria o prédio onde trabalho, e ele estaria quase
invisível, à distância, com a maioria das janelas apagadas. Eu
talvez pensasse nas pessoas que mantinham as outras acesas, mas
apenas muito rapidamente, pois meu voo descontrolado já me levaria
para longe dali, para cima do parque, para o momumento às Bandeiras,
uma estátua bonita de um episódio triste. De lá, eu talvez
seguisse para casa, mas não poderia pousar, o vento me impedindo ---
e além disso eu logo imaginaria, sobre a cobertura, caçadores
armados de bestas e espingardas, apontando diretamente para mim. Eu
saberia que nunca mais poderia voltar para lá, que não haveria
segurança, e então eu bateria as asas com força, mas elas já não
seriam as asas de um pássaro. Nesse momento, eu seria um avião
monomotor movido por um combustível desconhecido feito de casca de
eucalipto e urina de elefante. Minha hélice rodaria com potência
incomparável para os aviões movidos a petróleo, mas minha
fusilagem seria fraca demais para aguentar a viagem. Conforme eu
sobrevoasse o interior de São Paulo, e depois o Mato Grosso, e então
a Bolívia, pedaços cada vez menores de metal se desprenderiam de
mim, como um quebra-cabeças ao contrário. Parafusos, pedaços de
lataria, pequenas peças de chumbo (de símbolo Pb e 82 prótons)
cairiam sobre o solo acelerados por uma gravidade dez vezes superior
àquela que normalmente se observa no terceiro planeta do sistema
solar e penetrariam profundas no chão de terra. E de cada um dos
buraquinhos formados pela queda dos meus pedaços, nasceria uma
árvore.
Eu
pensei nisso tudo enquanto o sujeito pegava o dinheiro da minha mão,
meio sem jeito, e trocava pelo doce.
“Brigado”,
falou, e eu respondi baixinho, pra ninguém ouvir:
“Brigadeiro.”