sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Hoje, talvez pela primeira vez na vida, eu li, sim, provavelmente pela primeira vez na vida, eu li o obituário no jornal. 
Tinham uns poucos nomes, menos de dez, dois deles sendo enterrados no mesmo cemitério. Tinha uma mulher de oitenta e nove anos e um cara de cinquenta e nove. Um homem que deixou irmã e sobrinhos, uma senhora viúva que deixou bisnetos. A de oitenta e nove só deixou filhos, nenhum neto. Um outro tinha o comentário: amado e incomparável. 
Eu nunca, provavelmente nunca tinha lido um obituário. Eu sabia que existiam obituários, obviamente, porque existem registros de que esse tipo de coisa já existiu um dia (obituários, portanto), mas assim, ao vivo, foi a primeira vez, então eu não sabia como seria a minha reação. Pra falar a verdade, eu nem achava que eu teria uma reação. 
Mas eu tive. 
Eu fiquei triste. Não muito triste, não triste a ponto de chorar, mas suficientemente triste pra perceber que eu estava triste. Suficientemente triste para que essa tristeza se sobressaísse em relação à tristeza cotidiana, que é quase indistinta da alegria cotidiana, essa, por sua vez, uma coisa já meio indefinível. 
 Talvez eu tenha ficado um pouco triste por aquelas pessoas. Talvez especificamente pelo sujeito de cinquenta e nove anos, nem sessenta, nem nada. Ou pela octagenária sem netos, que eu imaginei decepcionada com os filhos, aqueles párias, que não legaram a ninguém a nossa miséria. Eu posso ainda, vai saber, ter ficado triste pelo outro, comentado, que foi amado e incomparável, mas agora vai à vala como todo mundo. 
Ou então eu fiquei triste pelo obituário, ele mesmo moribundo; pelo jornal de sina incerta, tendo que se reinventar como pode entre outras tecnologias, pra adiar o inevitável. 
Ou vai ver que era uma tristeza de mim, mesmo, finito como os mortos que eu lia no cadáver de um obituário, no cadáver de um jornal, no cadáver da minha sala de estar.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Brigadeiro


Estava no ponto da avenida Luciano Gualberto, esperando pelo ônibus e por uma oportunidade de tirar meus sapatos e/ou o cinto, que ambos me apertavam. A tripla espera me desviava a atenção, mas quando o casal (eu não sei se eram propriamente um casal, porque podiam ser só duas pessoas andando juntas; gosto de pensar que eram um casal) quando o casal, eu dizia, chegou oferecendo brigadeiros, eu percebi que também estava com fome.
Um dos vendedores de brigadeiro me estendeu a tigelinha, pedindo dois reais em troca. Achei caro, mas chequei rapidamente minha carteira: eu tinha dois reais, eu tinha fome.
“É um brigadeiro caseiro, de panela”, ele disse. Não sei se existe outro tipo de brigadeiro. Talvez ele também tenha pensado nisso, porque complementou, piscando um olho: “É bem puxadinho”.
Aquilo foi um trigger.
Não foi exatamente desconfiança, mas eu tinha que pensar nas minhas circunstâncias. É importante, isso aí. CI-RC-UN-ST-ÂN-CI-AS. Ei-las: ponto de ônibus, vinte e duas horas da noite. Casal desconhecido vendendo brigadeiro.
Lembre-se do que seus pais diziam. Do que os desenhos animados diziam. De João e Maria e a casa da bruxa. Por Deus: lembre-se da menina no primeiro ano SanFran, xingando a Deus e ao mundo no grupo de e-mails da classe depois de ter comido cinco fatias de brownie batizado no churrasco da turma.
E afinal, o que foi aquela piscadela acompanhando a descrição do brigadeiro? Bem puxadinho. Hmmm.
Imediatamente, pensei nas toxinas invadindo meu corpo, entrando no meu sangue, chegando ao meu cérebro. Pensei que se mordesse aquele brigadeiro, minha cabeça se abriria como um ovo do qual sai uma ave. E então a ave voaria e seria eu, voando, e o voo seria descontrolado como nos sonhos recorrentes que tenho, em que dirijo um carro sem freios e com guidão desregulado. Lutando contra o vento, eu esbarraria nas pessoas do ponto, no próprio ponto, nas árvores ao redor. Esbarraria também no poste de luz, mas nele conseguiria um impulso último, que me arremessaria para o céu aberto da noite paulistana. E então eu planaria. De lá de cima, veria as pessoas no ponto, ignorantes do que se passava. Veria o prédio da Letras e a biblioteca Brasiliana, em frente, e então logo adiante o CRUSP, o CEPE, as avenidas que levam até a cidade. Se o vento me levasse para o sul, eu veria o prédio onde trabalho, e ele estaria quase invisível, à distância, com a maioria das janelas apagadas. Eu talvez pensasse nas pessoas que mantinham as outras acesas, mas apenas muito rapidamente, pois meu voo descontrolado já me levaria para longe dali, para cima do parque, para o momumento às Bandeiras, uma estátua bonita de um episódio triste. De lá, eu talvez seguisse para casa, mas não poderia pousar, o vento me impedindo --- e além disso eu logo imaginaria, sobre a cobertura, caçadores armados de bestas e espingardas, apontando diretamente para mim. Eu saberia que nunca mais poderia voltar para lá, que não haveria segurança, e então eu bateria as asas com força, mas elas já não seriam as asas de um pássaro. Nesse momento, eu seria um avião monomotor movido por um combustível desconhecido feito de casca de eucalipto e urina de elefante. Minha hélice rodaria com potência incomparável para os aviões movidos a petróleo, mas minha fusilagem seria fraca demais para aguentar a viagem. Conforme eu sobrevoasse o interior de São Paulo, e depois o Mato Grosso, e então a Bolívia, pedaços cada vez menores de metal se desprenderiam de mim, como um quebra-cabeças ao contrário. Parafusos, pedaços de lataria, pequenas peças de chumbo (de símbolo Pb e 82 prótons) cairiam sobre o solo acelerados por uma gravidade dez vezes superior àquela que normalmente se observa no terceiro planeta do sistema solar e penetrariam profundas no chão de terra. E de cada um dos buraquinhos formados pela queda dos meus pedaços, nasceria uma árvore.
Eu pensei nisso tudo enquanto o sujeito pegava o dinheiro da minha mão, meio sem jeito, e trocava pelo doce.
“Brigado”, falou, e eu respondi baixinho, pra ninguém ouvir:
“Brigadeiro.”