terça-feira, 10 de junho de 2014

1.

Há muito, muito tempo, mesmo, em uma vila de pescadores, havia um dragão. Os homens e as mulheres, porque naquela vila os gêneros não determinavam a função da pessoa, saíam de manhã para o mar e suas redes voltavam sempre cheias de peixes que eles assavam nas chamas fartas de fogueiras coletivas, e sempre havia música e comida em abundância. Os trabalhos eram divididos e a comida também. Quem não podia pescar, ou não queria, porque naquela vila as pessoas eram relativamente livres para fazer suas escolhas, se ocupava de cuidar das crianças e ensiná-las, de proteger as casas contra animais selvagens, de fazer os reparos necessários nas construções, de fazer arte, de cuidar dos doentes, de fazer estradas, de construir embarcações ou o que mais fosse necessário. E evidentemente algumas pessoas optavam por não fazer nada e apenas se beneficiar do trabalho alheio, o que também era possível naquela vila, mas a maioria das pessoas simplesmente não queria isso, ou pelo menos não na maioria dos dias. De um modo geral, era uma vila harmoniosa e funcional, cujos poucos desentendimentos ocasionais eram prontamente solucionados por um grupo, eleito entre todos os moradores e representativo tanto dos interesses das maiorias quanto das necessidades das minorias, equivalente ao que nós habitualmente chamamos ou deveríamos chamar Judiciário. Mas o dragão era um problema.
Ele dormia em uma montanha próxima, uma montanha cujo cume era coberto de gelo em todos os meses do ano, mesmo quando o povo lá em baixo ardia sob o sol, mas a cada quinze dias, ou um pouco mais, se o tempo fosse bom e o ar estivesse calmo, ou então um pouco menos, quando chovia muito ou as ventanias vinham do sul, ele acordava. Voava por sobre a vila, destruindo casas com seu fogo, afundando barcos de pescadores ou mesmo caçando pessoas para comer. Se ocupava dessas malfeitorias por um mês, ou um pouco mais, caso estivesse bem disposto, e de qualquer modo nunca menos do que isso, e então batia as asas novamente em direção à montanha, onde se acomodava para dormir, inocente, por mais quinze dias, ou um pouco mais, ou um pouco menos.
Os moradores da vila se incomodavam muito com esse infortúnio, mas durante muito tempo não fizeram nada a respeito, porque acreditavam que o bicho podia um dia simplesmente ir embora ou morrer de velho. Ninguém sabia muito bem por quanto tempo vivia um dragão, já que não conheciam nenhum outro, pelo quê eram gratos, e aquele nunca havia morrido, pelo quê lamentavam e porque não lhes parecia muito fácil matar uma monstruosidade daquelas. Um dia , porém, um grupo de pessoas, eleito entre todos os moradores e atento tanto aos clamores das maiorias quanto ao silêncio das minorias, equivalente ao que nós habitualmente chamamos ou deveríamos chamar Executivo, decidiu que era hora de fazer alguma coisa.
Assim, como era o costume do lugar, todos os moradores se juntaram e saíram em direção à montanha, exceto por aqueles que não podiam fazer a viagem, por motivo de saúde, idade ou presença de deficiência motora, e por aqueles que optaram por não ir, o que também era possível naquela vila. No fim das contas, cerca de metade da vila saiu naquele dia e caminhou pela pradaria em direção à montanha, levando consigo apenas algumas ferramentas básicas, umas poucas trocas de roupa e alguma comida.
Enquanto caminhavam, uma pessoa foi mordida por uma cobra peçonhenta e morreu ainda na mesma noite, após horas ardendo em febre. Enquanto escalavam a montanha, três pessoas se feriram com graus diferentes de seriedade e decidiram voltar à vila, julgando-se, com ou sem razão, impossibilitadas de seguir a viagem. E a elas se juntaram as outras tantas que se cansaram, se amedrontaram ou por qualquer outro motivo desistiram de seguir viagem em direção ao cume, de modo que três sétimos da vila, apenas, chegaram ao ninho onde o dragão dormia, inocente. Essas pessoas se viram, então, diante de uma criatura de dimensões colossais, de escamas impenetráveis, cuja respiração era capaz de aquecer todo o ar em um raio de cerca de quinze metros, e constataram sem grande surpresa que a tarefa de executar um dragão não seria simples. 
Nessa vila, porém, as decisões não eram tomadas precipitadamente, de forma que muito já havia sido deliberado acerca de como seria o curso de ação para cumprir a missão de eliminar a terrível ameaça. Para começar, haviam concluído que o ideal seria aniquilar a fera em apenas um golpe, evitando-se assim o inconveniente de o animal acordar e começar a fazer coisas desagradáveis, como se defender ou, o que a opinião geral havia reconhecido como muito pior, contratacar. Uma pessoa observou que seria difícil subir a montanha levando armamentos, também porque aquela era uma vila de tendências pacíficas que nunca havia dedicado grandes esforços à indústria bélica. Outra pessoa sugeriu que uma alternativa seria simplesmente empurrar o dragão montanha abaixo, deixando seu próprio peso e a gravidade cuidarem do serviço. A proposta tinha a vantagem de dispensar equipamentos cujo transporte seria inconveniente, mas foi rapidamente rechaçada pelo grupo, que supôs que o dragão provavelmente acordaria durante a queda e, acordado, não teria dificuldade para simplesmente agitar as asas e voar montanha acima ou mesmo em direção à vila. Outra sugestão consistia em introduzir --- pela boca, pelas narinas ou por onde fosse possível --- pólvora e combustíveis variados no dragão, para posterior explosão da criatura. Essa ideia, porém, também não resistiu à sabatina, visto que considerou-se, com muita pertinência, que introduzir materiais inflamáveis ou explosivos em uma criatura basicamente constituída de fogo seria uma tarefa inglória. Finalmente, o consenso geral foi o de que o dragão deveria ser acorrentado --- da maneira mais sutil que os habitantes da vila pudessem fazê-lo (e os habitantes daquela vila, ou ao menos alguns deles, sabiam ser bastante sutis, visto que se empenhavam a toda variedade de processos artísticos ou científicos que exigiam grande precisão) --- até que não houvesse chance de escapar, e, então, o grupo poderia se posicionar em local seguro e atacá-lo com as ferramentas de que dispusesse, ou, ainda, embora esse fosse um ato de crueldade que contrariava a moral da maioria dos habitantes daquela vila, deixá-lo lá, incapaz de levantar voo ou caçar, até que ele morresse de fome, de sede ou nas mãos de quaisquer predadores que ousassem se aproveitar de sua impotência.
Assim, em resumo, os moradores da vila que resistiram à viagem se encontraram finalmente diante daquela criatura de dimensões colossais, que respirava fogo e os amedrontava mesmo em seu sono, cientes da dificuldade da tarefa que lhes cabia, mas dotados de um plano. O grupo se organizou então de modo a que todas as partes desse plano pudessem ser executadas adequada e simultaneamente, e passou a se ocupar da colocação das correntes que deviam ser inicialmente presas a porções rochosas da montanha (e não a árvores ou a pedras que pudessem ser posteriormente carbonizadas ou movidas, respectivamente, pelo dragão) e depois cuidadosamente passadas por sobre o animal, com o cuidado de imobilizarem-se todos os membros e articulações (as do rabo despertando particular preocupação); da fixação, por cima das asas do bicho, de uma rede feita com grandes tiras de couro; de vestir por sobre os olhos do dragão uma imensa venda que lhe retirasse totalmente a visão; de amarrar-lhe o maxilar, dificultando que ele voltasse a exibir os dentes ou soprar fogo sobre quem quer que fosse.
A execução dessas tarefas se deu, de um modo geral, com grande precisão e cuidado, mas, de todo modo, os eventuais erros decorrentes da inépcia de alguns dos habitantes daquela vila ou do simples nervosismo causado pela proximidade com aquela criatura terrível foram encarados por todos como naturais e inevitáveis em uma empreitada de tal magnitude, também porque naquela vila os moradores procuravam sempre ajudar àqueles com dificuldade e atuar e forma a minimizar os efeitos das diferentes habilidades de cada um, ao invés de criar ou incentivar discriminações baseadas nessas diferenças. A despeito disso tudo, porém, e também porque, como todos sabiam, matar um dragão não era tarefa fácil, ainda que se tivesse um plano, a missão daqueles moradores que subiram a montanha e encararam o dragão foi tremendamente mal sucedida. Isso porque, em meio à execução dos procedimentos todos que constituíam a estratégia dos habitantes da vila, todos eles descritos acima, o dragão --- em decorrência, talvez, de algum dos erros também descritos acima, ou de algum outro, ou ainda por outra razão qualquer --- acordou.
Os habitantes da vila que haviam resistido à viagem, e se deparado com o dragão, e iniciado os procedimentos que deveriam levar à sua execução --- tais moradores estavam empenhados justamente em tais procedimentos quando tal dragão respirou mais profundamente (matando por combustão meia dúzia de tais moradores), abriu os olhos do tamanho de choupanas e agitou sua enorme cabeça, através de espasmos violentos de seu enorme pescoço (ferindo, por contusão, outra meia dúzia de tais moradores). O monstro agitou suas asas, arremessando ao ar couro, correntes e uma terceira meia dúzia de habitantes daquela vila, e então saltou com um gesto brusco de suas patas traseiras, cujos músculos se demonstraram mais duros mesmo que as próprias rochas da montanha nas quais eram presas as correntes.
O salto imediatamente se transformou em voo, mas um voo que nada tinha a ver com o planar tranquilo das águias que giram nos céus aproveitando-se das correntes de vento, se assemelhando muito mais com os mergulhos que essas mesmas águias davam ao avistar, ao longe, suas presas. Assim, o dragão se atirava em fúria contra os habitantes daquela vila que haviam chegado até seu território, todo garras e dentes e chamas, com precisão perfeita e velocidade violenta, e esses moradores, que haviam levado consigo apenas umas poucas armas montanha acima, e de qualquer forma nenhuma delas de fogo, porque o fogo era o elemento do inimigo, lutavam contra ele da forma como podiam, ou então não lutavam, porque não podiam ou porque não queriam fazê-lo, preferindo correr ou se esconder ou contemplar a morte que se impunha contra eles.
Metade das pessoas que haviam chegado ao ninho do dragão, e que correspondiam a três catorze-avos da população da vila (se bem que esta, a esta altura, também já havia sido bastante reduzida) havia morrido antes que qualquer dano pudesse ser infligido ao inimigo; outro quarto (ou três vinte-e-oito-avos, ou outra fração qualquer que considere as baixas sobre a população total da vila) morreu quando o dragão ainda parecia simplesmente imbatível. Mas então alguma coisa aconteceu.
Com menos inimigos, o réptil, habituado a atacar grandes aglomerados de gente, perdeu eficiência. Ao contrário do que ocorre com predadores como as leoas ou as chitas, o dragão não adotava usualmente a estratégia de seguir uma única presa em meio ao rebanho, mas sim a tática, usada por golfinhos ou tubarões, de juntar uma grande quantidade de animais em um mesmo ponto, cercando-os e encurralando-os, para depois abocanhar um grande número de uma só vez. Isso funcionava bem quando o intuito era conseguir comida na vila, mas trazia dificuldades agora que, movido por um desejo de vingança, ele pretendia aniquilar cada um e todos os indivíduos que haviam chegado até seu ninho.
Os moradores da vila ainda morriam ou eram feridos pelo bicho, mas agora, espalhados e escondidos entre árvores e pedras, começou a lhes parecer possível sobreviver. Mais um pouco e algumas daquelas pessoas, primeiro uma e depois outras, mas decerto não todas, se convenceram de que, com algum cuidado, seria possível inclusive atacar o dragão. Assim, saltando de trás de uma pedra com uma faca na mão ou atirando uma seta do topo de uma árvore ou ainda girando alguma corrente pelas costas do bicho, aquelas pessoas começaram a machucá-lo. 
Quanto mais lhe feriam, mais o dragão se confundia. Não demorou muito, começou a sangrar.
A luta foi lenta e o dragão continuava a atacar e ferir e matar pessoas, mesmo enquanto essas tinham algum sucesso em também atacá-lo, e também ferirem-no. Finalmente, restou ao dragão um último suspiro de vida; e restou, ao grupo de moradores da vila que havia subido a montanha e chegado ao ninho e lutado, uma única mulher. Os dois se encararam, um de frente para o outro, o dragão caído ao chão e já com os olhos semicerrados, a mulher assombrada pela enormidade das mortes que havia presenciado, e ambos sabiam o que ia acontecer. Não foi preciso mais que um chute --- um chute sem raiva nem crueldade; um chute que foi apenas o que era preciso --- para que estivesse tudo terminado.

***

Muitas vezes depois disso, a mulher se perguntou se teria sido apenas coincidência. 
Era possível, claro, que aquela vila fosse protegida por alguma entidade mágica que quisesse demonstrar seu agradecimento à mulher que matou o dragão. Era possível, também, que o dragão guardasse uma última maldição para quem o matasse. Ambas as hipóteses eram possíveis e capazes de explicar o que aconteceu depois. 
Mesmo assim, nos anos seguintes, ela não pode deixar de pensar que poderia ser só coincidência. Talvez, com ou sem a morte do dragão, ela estivesse mesmo destinada a viver para sempre.

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