domingo, 24 de julho de 2016

Subiu José aos céus e se prostrou na grande sala oval em que não havia lugar nenhum para sentar. Depois entrou Jesus, pediu desculpas pelo atraso, ofereceu que José se sentasse em uma cadeira que até então não estava ali.
José se sentou e repassou mentalmente o discurso que tinha preparado. Achava que funcionaria; era coerente e, afinal, ele se sentia orgulhoso do resultado final.
No dia da cirurgia, ele começou a falar, mas Jesus o interrompeu.
Eu sei o que aconteceu.
Só queria esclarecer que no dia da cirurgia eu estava... Você sabe. Eu estava muito, estava muito nervoso com ele. Quer dizer... Se eu tivesse descoberto antes... Acho que se eu tivesse descoberto antes ainda nem teria tanto problema, acho que eu conseguiria lidar com isso, mas foi no mesmo dia! Eu tinha acabado, acabado de descobrir o caso dos dois quando ele sofreu o acidente. Se eu fosse religioso (sem ofensa), teria achado que era alguma obra da Providência ou sei lá o quê. Que era uma forma de punição.
 Você acha que porque ele transou com a sua esposa eu causaria um acidente de carro com três vitimas fatais e deixaria justamente ele vivo, disse Jesus. Não era uma pergunta.
Se eu fosse religioso. José deu de ombros. Sem ofensa. De qualquer jeito, a operação começou normal, mas ele estava realmente muito mal. Não foi culpa minha que as coisas desandaram.
Se você diz.
Digo. E aí, você sabe, eu estava ali, e ele estava com a barriga aberta e tinha uma placa de alumínio ainda enfiada no peito. Ninguém poderia achar estranho se ele morresse.
Se você diz, repetiu.
Digo, digo. Na verdade, tudo o que eu precisava fazer era... E eu estava muito nervoso! Eu estava puto! E tudo o que eu precisava fazer era...
Nada.
Isso. Eu só precisava não salvar ele. Eu até podia tentar. Muita gente tentaria e ainda assim ele morreria. Eu podia tentar, ou fingir que tentei, e ele morreria e eu teria minha vingança e ninguém nunca me culparia por isso.
Mas não foi isso o que você fez.
Não foi.
Você se desdobrou e conseguiu estabilizar os sangramentos e tirar a placa do peito dele.
Foi.
E então ele se salvou e saiu do hospital sem imaginar que você sabia do caso  com a sua esposa.
E até hoje não sabe.
E no entanto você veio até aqui e achou relevante me contar essa história hoje.
É só porque eu achei que... Você sabe. Por causa da triagem.
Você salvou a vida dele, mesmo querendo não salvar. Você sabia que pouco importava para o mundo e os cosmos ou o que quer que seja em que você acredita, mas para você era importante que ele vivesse. Para você poder ter essa conversa hoje, por exemplo (se você fosse religioso), ou para você poder continuar olhando para a sua esposa com a mesma certeza de que ela pecou, ela foi injusta com você de alguma forma, mas você não tinha nada de que se desculpar.
Eu fiz o que era certo.
Fez. Por outro lado, você não quis fazer. Se você tivesse um pouco mais de coragem... Na verdade, se essa situação se repetisse cinqüenta vezes, acho que em metade delas você deixaria ele morrer. Talvez em sessenta ou setenta por cento das vezes.
Você não tem como saber.
Na verdade, eu tenho. Posso fazer com que você passe por essa mesma situação cinqüenta, cem, infinitas vezes.
Bom, mas isso, isso não importa. O que importa é o que realmente aconteceu, quero dizer, o resultado final das minhas ações. 
Aí é que você se engana. Estamos separando pecadores de não pecadores. Qualquer abstração tem que ficar fora dessa conversa, mas a questão também não é tão simples assim. Eu não quero saber o que você fez, mas o que você é. Se você quer saber, você acertou em uma coisa. Para os cosmos, não importa. Um homem sobreviveu naquela noite e ele poderia ter morrido e o mundo não seria diferente. Você sabe disso, é claro. Se essas situações importam, não é pelo seu impacto efetivo,mas pelo que elas dizem de você, dele, das pessoas envolvidas.
Certo.
Eu preciso separar os pecadores dos não pecadores. Então o que eu faço? Eu vejo as pessoas que vêm até aqui. Vejo mesmo. Por dentro, sabe? Eu olho para o fundo da alma delas e vejo se existe pecado lá.
Parece um trabalho fácil. Quer dizer, pra você e tal.
É um trabalho fácil, pra mim, e é mais fácil ainda pras pessoas que vêm aqui. Vamos lá: eu olho pra você e o que eu vejo? O homicídio está dentro de você? Matar um homem, ou deixar ele morre (pra mim tanto faz) mas matar um homem é algo que faz parte de você? Ou foi alguma incompatibilidade profunda, algo intrínseco ao que você é, que te fez ser tão diligente na cirurgia? Lembre-se de que esse é um julgamento moral. Para alguém que não se importa com o resultado prático dos seus atos no mundo, você já tinha pecado muito antes de decidir se ia ou não deixar ele morrer?
José não falou nada. Jesus andou até uma das extremidades da sala, e parou entre duas portas. José sabia que a da esquerda era a porta do céu e que atrás dela estavam todas as delícias reservadas às pessoas puras, e que a da direita era a porta do inferno, que levava às agruras destinadas aos pecadores e às pessoas ruins. Fora isso, elas eram exatamente iguais.
Jesus não abriu nenhuma das duas. Ele não precisava. José se levantou e andou até Jesus e pensou em dizer alguma coisa ou em abraçá-lo ou qualquer outra coisa, mas no último minuto mudou de ideia, baixou os olhos, seguiu reto.
Pela grande, pesada e inexorável porta pela qual lhe cabia passar.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Olho distraído, distraído porque faço outras coisas, coloco os pratos na máquina, rego meu pé de sálvia, cuido da minha vida, enfim, olho e meu olhar se depara com a janela que dá para a rua e eu instintivamente procuro o imenso tanque de aço maciço que deveria avançar em direção à Vergueiro, rodeado por milicianos deste ou daquele lado, todos muito festivos com suas bandeirolas dessa ou daquela cor e cantando hinos e incitando as pessoas das casas a se juntarem a elas, supondo que já tenham terminado com a louça ou a sálvia. Na Vergueiro estariam já outros tantos tanques, e porque moro perto eu penso que deveria ser capaz de ouvir os tiros dos canhões, as dinamites, o grito assustado das pessoas correndo rua abaixo e se deparando com o tanque e os milicianos em festa.
Mais abaixo, na praça, ocupando a quadra onde em outros tempos alguém jogaria futebol ou soltaria o cachorro para correr um pouco, imagino os outros jovens, talvez com porte menos atlético e ar mais intelectual, lendo textos muito antigos ou muito novos em voz alta para as pessoas ao redor, chamando-as para a ação. Mesmo as pessoas que estejam na praça apenas porque queriam soltar seus cachorros certamente se comovem, talvez não pelo texto, que afinal é um pouco antigo, mas sim pelo fato de estarem os tanques nas ruas e por todo o resto, as certezas todas se desmantelando sob os aviões bombardeiros e os tiros de metralhadora.
A essa altura, tenho certeza de que uma menina vai vir correndo da praça, subir a rua a despeito de os tanques serem todos inimigos (no fim, todos os tanques são inimigos, porque ela é uma pacifista convicta), vai gritar em resposta para os milicianos que naturalmente não teriam como ouvir nada e então ela vai olhar para cima na esperança de encontrar ajuda e seus olhos encontrarão nada mais nada menos que os meus próprios, um pouco distraídos com a louça, mas ainda assim capturados pela cena e pela rua e pela janela. Eu também não ouviria nada do que ela diria, mas saberia que era importante, ciente dos tanques e dos tiros e dos aviões.
No fim, não havia nada de inocente no meu ato de estar distraído e me deparar de repente com a janela, era tudo absolutamente programado para eu testemunhar um ato qualquer de coragem que me tirasse da janela, talvez não sem antes regar também a pitangueira e o coentro, e descer para a rua para combater também os milicianos com suas dinamites, na esperança de conservar um mínimo de normalidade no mundo, evitar que aquelas pessoas todas a destruíssem a tiros.
Mas não tem tanque nenhum subindo a Machado de Assis. Se alguém está atirando na Vergueiro, daqui eu não ouço nada.
Talvez eu tenha entendido tudo errado.
Talvez seja justamente a normalidade que eu deveria sacudir das pessoas na rua, trazer eu mesmo os tanques, lançar minhas próprias dinamites.
Nem que fosse só pra deixar o mundo um pouquinho mais coerente.