sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Notas sobre música

Na segunda metade dos anos sessenta, artistas hippies e beatniks, empolgados com a onda psicodélica, se debruçaram sobre novas tecnologias de iluminação e som e começaram a aplicá-las a novas formas de expressão. A experimentação era a regra e inúmeras bandas novas compunham músicas que, embora inspiradas pelo blues, o jazz e o que já existia do então novato rock'n'roll, não pareciam com nada que houvesse sido feito antes.
Em concertos destinados a um público muito parecido com os próprios artistas, estas bandas se extendiam por horas, tocando qualquer coisa que fosse condizente com as experiências psicodélicas experimentadas, na plateia e no palco, graças à ajuda supostamente libertadora do LSD. Uma dessas bandas, que originalmente se autodenominava um grupo de blues, fazia improvisações longuíssimas, seguindo a empolgação própria e dos ouvintes que se aglomeravam em número cada vez maior para ver seus shows.
Os músicos em questão, que eram quatro que viraram cinco e voltaram a ser quatro, tinham empregos ou estudavam (pelo menos um deles até gostava do que fazia), mas já então largaram tudo pela "carreira" musical. Mas aqueles não eram tempos de shows pequenos, e a banda em pouco tempo se "profissionalizou". O sucesso de Dark Side of the Moon jogou os quatro membros do Pink Floyd (já sem a presença de Syd Barrett) no mundo do estrelato, do dinheiro e dos mega concertos pirotécnicos em estádios lotados. Mas algo muito curioso aconteceu.
Em primeiro lugar, é notável, nos discos posteriores, um certo rancor contra este mundo. Em segundo lugar, manteve-se sempre um excesso de menções ao membro ausente. São duas coisas, à primeira vista, difíceis de explicar.
A primeira questão é ainda mais complexa do que parece. A aversão à fama é relativamente comum e poderia explicar por que uma banda que atinge tamanho sucesso faria um álbum como o The Wall, que conta a história de um rockstar depressivo. No entanto, mais relevante para a história da banda do que o conto de Pink é a alienação deste em relação ao mundo e a todos. A música Hey You é icônica desse sentimento de distância, quando o eu-lírico se dirige a um ouvinte igualmente alienado com a pergunta: Can you feel me? A idéia, aliás, se repetiria em álbuns futuros, particularmente em Wish You Were Here (album particularmente relevante para o segundo ponto a ser discutido), nas músicas Welcome to the Machine e Have a Cigar (“By the way, which one is Pink?”). A entrada da banda para a indústria fez com que ela perdesse todo o contato que tinha com seu público, ficando nas mãos de quem nem sabia os nomes de seus integrantes. O ápice dessa situação foi a cusparada disparada por Roger Waters em um fã que, em um show, não parava de gritar — para ele, não fazia diferença o que estava sendo tocado; não havia uma conversa efetiva.
Sobre Syd Barrett, o caso também me intrigava muito. Syd participou da criação da banda, é verdade, mas já não fazia parte dela quando o Pink Floyd virou o que é. Por mais que se alegue que sua influência permaneceu, é difícil dizer que aquela banda psicodélica é a mesma que se consagraria depois. Além disso, outras bandas perderam integrantes sem que se criasse tanto alarde. Em parte, foi só por causa deste mistério que eu fiz questão de me informar sobre o passado do Pink Floyd. E o que descobri é que o Syd, um cara carismático, espontâneo e vanguardista, não representa apenas algo que o Pink Floyd foi um dia, mas também algo que a banda, ao longo de sua trajetória, continuou a querer ser. É de se questionar se Syd teria suportado o que a banda virou, caso não tivesse, ele também (mas, é claro, de outro modo), se alienado.
Essa, é claro, é a história de uma banda. Mas também é a história de uma forma de se fazer música. Uma forma caracterizada pelo poder da indústria, pelas multidões, pela idolatria quase cega às estrelas. E uma história que, como a do Pink Floyd (Live 8s à parte), parece estar a ponto de terminar.

A venda de CDs não é mais o que já foi. Apesar do choro das empresas do ramo, ainda vende-se música — e não apenas música virtual —, mas é claro que este mercado vai se limitar cada vez mais, até ficar restrito a colecionadores, a gente que não sabe usar a internet ou a loucos de toda sorte. A Warner, a Universal e suas amiguinhas vão-nos dizer que esse é o fim da música, enquanto qualquer clube da Rua Augusta e suas dezenas de excelentes bandas novas vão dizer que, bem, talvez não seja pra tanto. De todo modo, porém, algo está acontecendo.
Quando não se ganhar mais dinheiro com venda de CDs, o dinheiro vai vir das apresentações ao vivo. O boom de grandes concertos e festivais no Brasil é sinal disso, e as estatísticas estão por aí. Quem quiser números pode procurar a Piauí de novembro de 2011 (vejam como aspiro à imortalidade), mas a mudança é mais ou menos óbvia. O importante mesmo são as implicações dessa mudança.
Por enquanto, mesmo com a diminuição da dependência dos artistas em relação às gravadoras, ainda há uma força muito poderosa na determinação de quem vai dar certo e quem não vai, e que é capaz de criar sucessos como o do Pink Floyd. É uma força contrária à tendência proporcionada pela internet — esta tenda a dar pouca influência a cada banda individual, mas a distribuir a atenção a um número enorme, infinito de grupos —, mas que está longe de ser moribunda, como é o caso dos CDs. Trata-se da mídia.
Ao contrário das grandes empresas de gravação e distribuição, o rádio e a TV não são grandes vilões no imaginário popular. Eles tocam as músicas que a gente conhece e ama e nem nos cobram por isso. O Queen gosta do rádio. O Dire Straits gosta (?) da MTV. Por Deus, eu não sei se sobreviveria sabendo que a Mit FM não existe mais.
É por isso que me dói dizer isso, mas o rádio também vai morrer. Pode ser que demore anos, décadas, mas o que a gente conhece como rádio não vai sobreviver. E, é claro, a TV vai segui-lo de perto. Mídias de caminho único, em que o espectador é mudo (ou, no máximo, contribui “mandando sua programação discando para 7777-7777!”) não podem durar no nosso mundo. Elas são um resquício de um tempo morto, são algo que a gente guarda por pura nostalgia ou, no máximo, por comodismo. Como aquele quadro renascentista ou qualquer outro bibelô anacrônico de que não conseguimos nos desfazer. Mas um dia a gente vai seguir em frente, ou então nossos filhos e netos, que não terão o mesmo carinho por essas velharias, o farão por nós. E, como os quadros renascentistas, um dia essas mídias serão peças de museu.
Nesse dia, a história da música dos superstars terá acabado — salvo, é claro, pelo Live 8 ocasional. Dizer isso pode machucar os sentimentos de alguém, então vou fazê-lo logo: nunca mais teremos outros Beatles. Nunca mais. Nunca mais teremos o mundo inteiro cantando a mesma música, gostando do mesmo cantor, idolatrando a mesma celebridade musical.
E não se engane: essa vai ser a melhor coisa que vai acontecer para a música nos últimos cento e tantos anos. Porque, se não teremos mais uma oligarquia em que alguns poucos músicos encantam milhões de fãs, teremos milhões de músicos encantando dezenas de fãs. A música vai ser aquilo que ela nasceu para ser: a mais pessoal das experiências coletivas. Será comunicação de verdade, como era quando nasceu, nas rodas pequenas, imagino, em volta da fogueira. E o mais lindo de tudo é que isso ocorrerá de duas formas completamente diferentes — opostas, até. Por um lado, teremos uma experiência individual coletivizada: a pessoa que ouve uma mp3 em casa, mas que a compartilha com os amigos ou com desconhecidos pela internet. De outro lado, uma experiência coletiva — os concertos, as festas — serão individualizadas, à medida em que o músico poderá olhar nos olhos de quem está à sua frente, falar-lhe diretamente. Nunca mais haverá um Pink Floyd que fature milhões, mas também nunca mais se precisará cuspir em alguém que, da primeira fileira, pareça distante a ponto de não poder sentir o cantor.

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