Gabriel queria escrever um romance. Ele já havia escrito outras coisas antes, é claro: historinhas, na denominação utilizada pelos parentes mais próximos e por aqueles que possuíam qualquer dosagem de senso crítico; agora, porém, queria escrever um romance.
O procedimento é relativamente simples, ao menos no que diz respeito ao seu aspecto, digamos, braçal: adquire-se o equipamento necessário, que pode ser uma agenda telefônica e caneta ou uma área suficientemente grande de areia na praia e um pedaço de pau (no caso, optou-se por um computador), dedica-se uma quantidade suficiente de tempo e procede-se com a técnica repetitiva e mecânica de desenhar letras ou pressionar teclas. É isto o que fazem aqueles que escrevem romances e, ao fazê-lo, Gabriel não poderia ser diferenciado de nenhum de seus grandes heróis da Literatura com L maiúsculo.
No entanto, findas algumas horas e diante da página quase completamente vazia, Gabriel percebeu que a tarefa era muito menos simples do que inicialmente se lhe havia apresentado. Dispondo ainda do tempo que havia reservado em seu cronograma e no intento de atiçar a criatividade, nosso intrépido herói deu uma rápida olhada ao redor, à procura de qualquer objeto que lhe servisse de inspiração.
Ao seu lado, encostado à parede e coberto de poeira, estava o antigo violão. Um violão é um instrumento musical e, portanto, artístico; a música e a literatura são espécies diferentes de um mesmo gênero e, portanto, o empenho a uma certamente renderia seus frutos à outra. Dotado de tal convicção, Gabriel tomou o violão em suas mãos e pôs-se a dedilhar uma das raras melodias que subsistiam em sua memória. Os dedos correram sozinhos pelas cordas, engasgando-se, às vezes, mas demonstrando-se razoavelmente corretos.
Produziram um som odioso.
Gabriel percebeu-se, então, diante de um novo problema: não sabia como afinar o instrumento. Dirigiu os olhos tentados à tela do computador, em cujo canto superior esquerdo reluzia o ícone do navegador Firefox, deixado ali a postos. Um dilema moral nasceu dessa observação: havia imposto a si mesmo a restrição de não desperdiçar seu tempo de escrita na internet, vício dos vícios. No entanto, tocar o violão era, de certa forma, parte do processo de escrita, e aprender como afiná-lo era parte do processo de tocar o violão. Após alguma reflexão, consentiu em liberar-se de sua restrição, desde que fosse exclusivamente com este bom intento.
Após alguma pesquisa, porém, observou outra dificuldade: não lhe bastava simplesmente mimetizar os sons que alguns sites ofereciam, para saber que o violão estava afinado. Era preciso ir a fundo, refletir sobre a natureza das escalas musicais, sobre a razão de ser das variações microtonais etc. Não o fazer seria reduzir seu empenho musical a uma tarefa isenta de raciocínio crítico, o que obviamente contrariava as demandas mais básicas da escrita literária — e afinal, era isso o que ele estava fazendo: escrevendo.
Imergiu-se, assim, no estudo de teoria musical. Evidentemente, um dia não lhe bastou, então os dias se passaram e ele lia com olhos vidrados tudo o que podia encontrar sobre o assunto. Após quatro anos, julgou-se apto a, enfim, afinar o violão, o que de fato fez.
Terminado este primeiro passo, Gabriel pôs-se a tocar, agora com muito mais clareza e convicção, e até mesmo a compor. Sempre que lhe ocorria voltar os olhos à página em branco e talvez pressionar uma ou outra tecla, percebia que ainda não estava pronto, de forma que voltava a correr os dedos pelas cordas.
Até que, é claro, aquilo já não lhe bastava. No oitavo ano, saiu de casa apressado e comprou um contrabaixo. Depois, seguiram-lhe um sax, um piano de cauda, uma flauta doce, uma cuíca, uma gaita diatônica etc. No décimo quinto ano, após breve vislumbre do cursor que piscava impaciente na página vazia do Word, Gabriel decidiu que era hora de investir mais seriamente na literatura, motivo pelo qual comprou os mais avançados equipamentos de gravação e edição de som e sintetizou, em seu quarto, mesmo, seu primeiro álbum musical.
O sucesso desse primeiro disco fez com que um segundo fosse lançado, em obra que contou com a feliz participação da Berliner Philharmoniker.
Notando que nem a aclamação popular, nem os inúmeros prêmios, nem os milhões de dólares adicionados à sua conta bancária lhe eram suficientes para a escrita, Gabriel então percebeu que estava se desviando demasiadamente de seu caminho. No vigésimo oitavo ano de produção do romance, ele decidiu que era necessária uma completa reviravolta em sua vida, de forma que foi imediatamente a uma loja próxima e adquiriu acetona, carvão, tinta a óleo e telas. Repetiu os procedimentos de estudo e prática e, no trigésimo terceiro ano, foi destaque tanto no Moma quanto no Tate.
O que, evidentemente, não se deu sem seus contratempos: teve que recusar o convite para participar em uma campanha publicitária de televisores Sony, porque, conforme afirmou em japonês irrepreensível (aprendido como forma de inspiração e ampliação de horizontes linguísticos) ao exasperado representante de marketing da empresa, isso atrasaria o término de seu livro, que, afinal, era seu principal propósito.
Após similares incursões ao teatro, cinema, arquitetura e escultura, Gabriel chegou mesmo a inventar novas modalidades artísticas, utilizando-se de meios e linguagens nunca antes concebidas. Aos oitenta e oito anos, teve um enorme monumento em sua homenagem erguido na plataforma espacial Tiangong e celebrações foram realizadas pelo mundo nas ocasiões de seus aniversários de noventa, noventa e cinco e cem anos.
Quando faleceu, aos cento e quatro anos, uma editora alemã conseguiu os direitos de publicação de seu romance, consistindo em uma capa em que figurava apenas seu nome e três folhas quase completamente em branco, com duas ou três palavras espalhadas de forma aparentemente aleatória em cada uma. Os jornais do mundo todo noticiaram com tristeza a ocorrência e ressaltaram o afinco de seus estudos, seus contínuos esforços nos mais variados campos do saber e, acima de tudo, o empenho irrestrito à literatura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário