A portuguesa terminou sua história e imediatamente retornou ao silêncio
de antes, olhando calmamente para o mar distante, embora a noite já
tivesse se fechado, impedindo que se visse qualquer coisa. Durante algum
tempo, eu não pude fazer mais do que acompanhá-la, mudo, enquanto
pensava no que ela me havia dito. Eu havia escutado a tudo com grande
naturalidade e, mesmo depois, não duvidava de nada. Imagino, é claro,
que a coisa toda pareça absurda a quem lê este diário, mas qualquer um
que ouvisse a história da boca de Maria saberia que aquela só podia ser a
verdade.
Na verdade, naquele momento, eu sequer sentia haver razão para
estranhamento. Apenas levantei-me, portanto, e saí arrastando os pés em
direção à casa em que estava hospedado, ouvindo o ruído das ondas e
pensando na enorme tristeza que me havia dominado.
No dia seguinte, quando o sol se pôs, quis me distanciar das ruas por
onde costumava passear e deixei que meus pés cuidassem de me levar para
onde bem entendessem. Havia tanto de extraordinário naquela ilha que eu
me sentia seguro de que, fosse aonde fosse, acabaria por me deparar com
algo que me valesse a noite. E não havia andado por mais de quinze
minutos quando algo me chamou a atenção.
Alguns metros à minha frente, dois homens tentavam consolar um terceiro,
que urrava aos prantos. Este se contorcia, gritava e dava murros no
chão, num desconsolo absolutamente teatral, mas a situação ganhava ares
cômicos, mesmo, pelo fato de o chorão ser um homem gigante, decerto
acima dos dois metros de altura e não muito menor de ombro a ombro.
Seu rosto enorme parecia uma ilha, perdido em meio às ondas de seus
cabelos compridos e barba desgrenhada, e ele repetia insistentemente as
mesmas palavras, que mais tarde descobri serem um nome: Maud Thyra.
Como não entendesse o que ele dizia, me aproximei de um dos homens que o
acodiam e que falava um inglês curioso, mas razoavelmente
compreensível. Perguntei por quê o homem chorava, e ele me disse que
esse espetáculo tragicômico se repetia todos os anos, no equinócio.
A resposta, é claro, apenas aumentou minha curiosidade, de forma que o
pressionei para que falasse mais. O sujeito não apresentou muita
resistência. Sentou-se em um muro e, balançando alegremente as pernas,
contou-me a história do grandalhão.
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Mar, 16
terça-feira, 2 de outubro de 2012
Mar, 15 - A história da portuguesa
Maria cresceu em uma
vila próxima a Lisboa. Eram sete famílias instaladas em volta de um
riacho, a meio caminho do mar, se sustentando da pequena produção
de subsistência e da venda de azeitonas e carne de carneiro para os
comerciantes que passavam por lá. A vila ficava em uma rota bastante
utilizada por quem cruzava os prados e era próxima o bastante de
outros povoados para que o comércio e a vida dos moradores fossem
razoavelmente agitados. Havia crianças e cães sempre correndo,
havia as compotas da dona Luzia, havia os banhos na água gelada do
riacho e, acima de tudo, havia Teodoro Barbosa.
Teodoro era o mais
novo de cinco irmãos e o único ainda solteiro, se bem que não por
muito tempo: estava prometido, já, para Maria. Desde que Maria tinha
três anos, data em que sua irmã mais velha morreu de uma febre, ela
sabia que ia casar com o Teo e, agora que chegava perto dos dezesseis
anos, a ideia era tudo em que conseguia pensar.
Evidentemente,
os dois nunca haviam realmente conversado. Maria o via às vezes
passando em direção aos pastos, enquanto ela mesma ajudava a regar
os legumes que a família plantava em frente à sacada do casarão.
Depois, à tarde, ela ficava à janela misturando a massa para a
alheira ou temperando a carne para a linguiça ou mexendo a panela de
ensopado até que ele voltasse para casa, suado e cansado, mas com a
mesma radiância. Então, ele diminuía um pouco o passo, virava a
cabeça de leve, como se sem querer, e sorria pra ela, fazendo-a
encher-se de vergonha e se esconder pra dentro da cozinha.
Mas
então o pai de Maria organizou um jantar em sua casa e chamou os
Barbosa e anunciou na vila que aquela noite tinha festa. Maria e a
mãe colheram laranjas e fizeram bolo. O irmão dela e sua esposa
abriram garrafas de vinho. Os pais das duas casas acertaram o dote e
marcaram a data. E nesse dia Maria e Teo viraram noivos.
Eles
foram felizes, juntos. Havia fartura nas terras ao redor do Tejo ---
o Nilo português, como se dizia então --- e os dois se amavam e se
entendiam bem. Teo era forte como um touro, de peito largo e braços
firmes; Maria entregava um filho após o outro, todos varões, gordos
e saudáveis.
Mesmo
assim, quando Teo partia com as sacolas penduradas nos ombros pela
manhã e seguia em direção ao cais, onde negociaria com os
marinheiros que por ali passassem, oferecendo-lhes laranjas,
azeitonas e carne salgada em troca de peixe, arroz e temperos
trazidos de longe, Maria julgava ler qualquer coisa em seus olhos.
Não era algo que ela pudesse definir com precisão, mas estava lá:
uma espécie de opacidade distraída, como se se perdessem em sonhos
sobre o que haveria além.
E
então, a febre chegou. Não trazida por algum vírus novo e letal,
mas pelas notícias de Lisboa: Portugal saía ao mar.
Primeiro,
chegaram relatos vagos. À Índia, diziam, e ao Novo Mundo, fosse
isso o que fosse. Depois, a descoberta de um novo continente foi se
confirmando nos relatos dos mercadores e em suas histórias de terras
selvagens habitadas por homens nus e adeptos do canibalismo e
repletas de animais exóticos e ferozes. Logo, não se falava em
outra coisa.
A
Maria, tudo isso parecia bárbaro e horrível, mas Teo tinha uma
opinião absolutamente contrária sobre os relatos. A América era
para ele a promessa do Eldorado, da prosperidade e de um futuro
brilhante. Para ele, cruzar o oceano era de uma vez, um dever
patriótico e uma oportunidade imperdível de cumprir sua missão no
mundo (nesses dias, ele vinha falando muito nesses termos).
Com
o tempo, a ideia foi se consolidando em sua cabeça. O dinheiro que
ele obteria em um ano seria suficiente, ele pensava, para dar
prosperidade à familia toda. Haveria tanto ouro na América, tantas
pedras e outras tantas maravilhas...que bastaria ir à cata e contar
os lucros. Não pensava nas aventuras ou nas índias de pele queimada
e carne rija. Essas coisas jamais lhe ocorreram. Teodoro pensava,
então, como pensara sempre, exclusivamente em Maria e nos filhos.
Queria enriquecê-los, dar-lhes presentes. Talvez mandar o
primogênito para estudar em Coimbra. Fosse o que fosse que sua
família precisasse, Teo queria dar-lhe, e para isso, pensava,
precisaria da América.
Durante
algum tempo, ele não fez nada. Continuou trabalhando, negociando com
os mercadores, voltando para casa à tarde, tratando Maria e os
filhos com o mesmo carinho. Mas a ideia não lhe saía da cabeça. O
mar o chamava.
Um
dia, definiu os planos, juntou uma mala e foi para a capital. Ficaria
um ano fora e voltaria com riquezas bastantes para que a família
pudesse ficar tranquila até ele morrer, talvez depois.
Maria
chorou quando ele lhe contou isso e chorou quando o viu partir e
chorou muitas vezes depois, mas nunca tentou impedi-lo nem duvidou de
que ele voltaria. Eles se amavam demais para isso.
Um
ano se passou e as notícias vindas das colônias eram raras e vagas.
Maria imaginava os monstros que assombravam o Atlântido e tremia
pelo marido. À noite, era visitada por pesadelos sobre naufrágios
ou sobre os povos bárbaros que recepcionavam os portugueses na
América, impondondo-lhes todo tipo de sofrimento.
Durante
o dia, porém, trabalhava. Os filhos cresciam, as plantações
vingavam, o comércio ia bem e, entretida nesses assuntos, Maria
gastava os dias, esperando que a manhã seguinte a acordasse com os
gritos de Teodoro, anunciando sua chegada. Passaram-se outros tantos
dias, e então um mês, sem que viesse qualquer notícia do regresso.
Outro mês veio e se foi, e então mais um e mais outro. Quando o
segundo ano desde a partida do marido chegava perto de se completar,
Maria já havia se habituado à solidão, embora nunca, nunca tivesse
cogitado a possibilidade de ele não voltar. Ele disse que voltaria e
Teodoro não mentiria para ela. Eles se amavam demais para isso.
E
então, em um dia como qualquer outro, atracou no cais um barco de
mercadores de Santarém. Eles desceram na cidade aos gritos,
aparentemente embriagados. Um dos homens, com uma barba preta que
escondia toda a metade do rosto, parecia liderar a bagunça.
Uns
homens da vila se zangaram, umas mulheres fizeram, instintivamente, o
sinal da cruz. Mas Maria correu de encontro ao grupo e se atirou
sobre o homem barbudo e sentiu Teodoro abraçá-la de volta.
Teo
trouxera dinheiro, como prometido, mas muito menos do que o
anunciado. Se tivesse trabalhado no campo durante aquele tempo, era
certo que teria juntado mais. Mesmo assim, parecia convencido de que
a viagem valia a pena. Se apenas tivesse dado mais sorte, murmurava,
sem concluir a frase. Mas agora eu já sei como fazer... Agora vai
ser melhor.
Maria
não tentou dissuadi-lo, porque não era dada a dispêndios inúteis
de energia. Qualquer um que ouvisse Teodoro falando do mar sabia que
nada iria convencê-lo a ficar em terra firme. Assim, ele voltou a
embarcar esta e tantas outras vezes. Quando a hora chegou, pegou o
primogênito e o levou consigo, prometendo que faria o mesmo com o
segundo filho na viagem seguinte.
De
repente, Maria se percebia parte de uma família de marinheiros.
Quando voltavam, os meninos, cada vez mais homens, relatavam os
perigos por quê passaram, os piratas de quem escaparam, as terras
que conheceram. E quando partiam, era com isso que Maria sonhava, à
noite, antes de acordar suada e ofegante de susto.
As
viagens duravam meses e, em cada uma, partia um filho a mais. Quando
todos atingiram idade suficiente, e quando já não havia mais
crianças, Maria ficou sozinha. Ela sofria, é claro, mas não de
abandono; era só a danada da saudade, que não sabia, como Maria,
que a distância era passageira. Eventualmente, marido e filhos
voltariam, disso não havia dúvida. Maria, pelo menos, não
duvidava. Ela apenas se deixava ficar no cais, o olhar perdido além
da rebentação. Esperando.
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