terça-feira, 2 de outubro de 2012

Mar, 15 - A história da portuguesa

Maria cresceu em uma vila próxima a Lisboa. Eram sete famílias instaladas em volta de um riacho, a meio caminho do mar, se sustentando da pequena produção de subsistência e da venda de azeitonas e carne de carneiro para os comerciantes que passavam por lá. A vila ficava em uma rota bastante utilizada por quem cruzava os prados e era próxima o bastante de outros povoados para que o comércio e a vida dos moradores fossem razoavelmente agitados. Havia crianças e cães sempre correndo, havia as compotas da dona Luzia, havia os banhos na água gelada do riacho e, acima de tudo, havia Teodoro Barbosa.
Teodoro era o mais novo de cinco irmãos e o único ainda solteiro, se bem que não por muito tempo: estava prometido, já, para Maria. Desde que Maria tinha três anos, data em que sua irmã mais velha morreu de uma febre, ela sabia que ia casar com o Teo e, agora que chegava perto dos dezesseis anos, a ideia era tudo em que conseguia pensar.
Evidentemente, os dois nunca haviam realmente conversado. Maria o via às vezes passando em direção aos pastos, enquanto ela mesma ajudava a regar os legumes que a família plantava em frente à sacada do casarão. Depois, à tarde, ela ficava à janela misturando a massa para a alheira ou temperando a carne para a linguiça ou mexendo a panela de ensopado até que ele voltasse para casa, suado e cansado, mas com a mesma radiância. Então, ele diminuía um pouco o passo, virava a cabeça de leve, como se sem querer, e sorria pra ela, fazendo-a encher-se de vergonha e se esconder pra dentro da cozinha.
Mas então o pai de Maria organizou um jantar em sua casa e chamou os Barbosa e anunciou na vila que aquela noite tinha festa. Maria e a mãe colheram laranjas e fizeram bolo. O irmão dela e sua esposa abriram garrafas de vinho. Os pais das duas casas acertaram o dote e marcaram a data. E nesse dia Maria e Teo viraram noivos.

Eles foram felizes, juntos. Havia fartura nas terras ao redor do Tejo --- o Nilo português, como se dizia então --- e os dois se amavam e se entendiam bem. Teo era forte como um touro, de peito largo e braços firmes; Maria entregava um filho após o outro, todos varões, gordos e saudáveis.
Mesmo assim, quando Teo partia com as sacolas penduradas nos ombros pela manhã e seguia em direção ao cais, onde negociaria com os marinheiros que por ali passassem, oferecendo-lhes laranjas, azeitonas e carne salgada em troca de peixe, arroz e temperos trazidos de longe, Maria julgava ler qualquer coisa em seus olhos. Não era algo que ela pudesse definir com precisão, mas estava lá: uma espécie de opacidade distraída, como se se perdessem em sonhos sobre o que haveria além.
E então, a febre chegou. Não trazida por algum vírus novo e letal, mas pelas notícias de Lisboa: Portugal saía ao mar.
Primeiro, chegaram relatos vagos. À Índia, diziam, e ao Novo Mundo, fosse isso o que fosse. Depois, a descoberta de um novo continente foi se confirmando nos relatos dos mercadores e em suas histórias de terras selvagens habitadas por homens nus e adeptos do canibalismo e repletas de animais exóticos e ferozes. Logo, não se falava em outra coisa.
A Maria, tudo isso parecia bárbaro e horrível, mas Teo tinha uma opinião absolutamente contrária sobre os relatos. A América era para ele a promessa do Eldorado, da prosperidade e de um futuro brilhante. Para ele, cruzar o oceano era de uma vez, um dever patriótico e uma oportunidade imperdível de cumprir sua missão no mundo (nesses dias, ele vinha falando muito nesses termos).
Com o tempo, a ideia foi se consolidando em sua cabeça. O dinheiro que ele obteria em um ano seria suficiente, ele pensava, para dar prosperidade à familia toda. Haveria tanto ouro na América, tantas pedras e outras tantas maravilhas...que bastaria ir à cata e contar os lucros. Não pensava nas aventuras ou nas índias de pele queimada e carne rija. Essas coisas jamais lhe ocorreram. Teodoro pensava, então, como pensara sempre, exclusivamente em Maria e nos filhos. Queria enriquecê-los, dar-lhes presentes. Talvez mandar o primogênito para estudar em Coimbra. Fosse o que fosse que sua família precisasse, Teo queria dar-lhe, e para isso, pensava, precisaria da América.

Durante algum tempo, ele não fez nada. Continuou trabalhando, negociando com os mercadores, voltando para casa à tarde, tratando Maria e os filhos com o mesmo carinho. Mas a ideia não lhe saía da cabeça. O mar o chamava.
Um dia, definiu os planos, juntou uma mala e foi para a capital. Ficaria um ano fora e voltaria com riquezas bastantes para que a família pudesse ficar tranquila até ele morrer, talvez depois.
Maria chorou quando ele lhe contou isso e chorou quando o viu partir e chorou muitas vezes depois, mas nunca tentou impedi-lo nem duvidou de que ele voltaria. Eles se amavam demais para isso.

Um ano se passou e as notícias vindas das colônias eram raras e vagas. Maria imaginava os monstros que assombravam o Atlântido e tremia pelo marido. À noite, era visitada por pesadelos sobre naufrágios ou sobre os povos bárbaros que recepcionavam os portugueses na América, impondondo-lhes todo tipo de sofrimento.
Durante o dia, porém, trabalhava. Os filhos cresciam, as plantações vingavam, o comércio ia bem e, entretida nesses assuntos, Maria gastava os dias, esperando que a manhã seguinte a acordasse com os gritos de Teodoro, anunciando sua chegada. Passaram-se outros tantos dias, e então um mês, sem que viesse qualquer notícia do regresso. Outro mês veio e se foi, e então mais um e mais outro. Quando o segundo ano desde a partida do marido chegava perto de se completar, Maria já havia se habituado à solidão, embora nunca, nunca tivesse cogitado a possibilidade de ele não voltar. Ele disse que voltaria e Teodoro não mentiria para ela. Eles se amavam demais para isso.

E então, em um dia como qualquer outro, atracou no cais um barco de mercadores de Santarém. Eles desceram na cidade aos gritos, aparentemente embriagados. Um dos homens, com uma barba preta que escondia toda a metade do rosto, parecia liderar a bagunça.
Uns homens da vila se zangaram, umas mulheres fizeram, instintivamente, o sinal da cruz. Mas Maria correu de encontro ao grupo e se atirou sobre o homem barbudo e sentiu Teodoro abraçá-la de volta.
Teo trouxera dinheiro, como prometido, mas muito menos do que o anunciado. Se tivesse trabalhado no campo durante aquele tempo, era certo que teria juntado mais. Mesmo assim, parecia convencido de que a viagem valia a pena. Se apenas tivesse dado mais sorte, murmurava, sem concluir a frase. Mas agora eu já sei como fazer... Agora vai ser melhor.

Maria não tentou dissuadi-lo, porque não era dada a dispêndios inúteis de energia. Qualquer um que ouvisse Teodoro falando do mar sabia que nada iria convencê-lo a ficar em terra firme. Assim, ele voltou a embarcar esta e tantas outras vezes. Quando a hora chegou, pegou o primogênito e o levou consigo, prometendo que faria o mesmo com o segundo filho na viagem seguinte.
De repente, Maria se percebia parte de uma família de marinheiros. Quando voltavam, os meninos, cada vez mais homens, relatavam os perigos por quê passaram, os piratas de quem escaparam, as terras que conheceram. E quando partiam, era com isso que Maria sonhava, à noite, antes de acordar suada e ofegante de susto.

As viagens duravam meses e, em cada uma, partia um filho a mais. Quando todos atingiram idade suficiente, e quando já não havia mais crianças, Maria ficou sozinha. Ela sofria, é claro, mas não de abandono; era só a danada da saudade, que não sabia, como Maria, que a distância era passageira. Eventualmente, marido e filhos voltariam, disso não havia dúvida. Maria, pelo menos, não duvidava. Ela apenas se deixava ficar no cais, o olhar perdido além da rebentação. Esperando.

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