1.
No dia
18 de maio, então no terceiro dia das minhas férias, postei no
Facebook a informação de que estávamos a 80km do Itaú mais
próximo. Na ocasião, estávamos em Cumuruxatiba e a agência em
questão era a de Teixeira de Freitas.
Cinco
pessoas “curtiram” a atualização de status, certamente
interpretando-a corretamente como uma referência à distância que
me separava de qualquer lembrança do meu trabalho. Num campo menos
metafórico, porém, estar a 80km do Itaú significava não poder
sacar dinheiro sem viajar 160km, em uma região em que praticamente
nenhum estabelecimento aceitava cartão. A situação se agravou
quando fomos para Corumbau (mais 60km, em estrada de terra) e,
posteriormente, a Caraíva (mais uma meia hora de bugue e uma
travessia de canoa).
Nosso
plano era queimar um dia pegando um ônibus para Arraial d'Ajuda
(saindo às 06:20, isso mesmo, às 06:20) para sacar dinheiro (e
comer um picolé), mas felizmente compartilhamos essa ideia ingrata
com a dona da pousada em que estávamos (a Pousada Lagoa --- aliás
recomendadíssima) e ela propôs algo melhor: ela iria para Porto
Seguro na sexta e voltaria no sábado; poderíamos depositar o valor
que quiséssemos na conta dela e ela traria em dinheiro de lá.
Parecia pouco usual, mas resolvia nosso problema, então fizemos.
Só
que no domingo, quando íamos embora, a internet havia caído e a
máquina do cartão de crédito não funcionava. A dona da pousada
sabia que tínhamos dinheiro o bastante para pagar o que devíamos,
visto que ela havia pessoalmente providenciado o saque, e sabia
também que se o déssemos em pagamento, ficaríamos sem nada para os
dias seguintes, voltando ao dilema anterior. Então, ela propôs que
fôssemos embora sem pagar e depositássemos o valor depois, quando
tivéssemos internet. “Mas a gente só vai voltar para São Paulo
no fim da próxima semana”, protestamos, advogando contra nossa
causa. “Não temos como garantir que teremos internet antes disso!”
Ela disse que tudo bem, que pagássemos quando desse. E fomos.
O
mesmo se repetiu na pousada em que dormimos na noite seguinte, em
Corumbau, visto que a queda da internet aparentemente afetou a região
toda. No entanto, pularei o relato para uns três dias depois, em
Itaúnas, quando eu entrei em uma sorveteria (a sorveteria do Saulo,
aquela com o sorvete gigante na frente --- aliás, recomendadíssima)
disposto a pagar com uma nota de R$100 por um picolé de milho verde
que custava R$1. Insurpreendentemente, o próprio Saulo disse que não
teria como trocar o dinheiro. Quando eu fiz menção de sair, porém,
ele me impediu: “Aqui, ninguém passa vontade. Leva o picolé e
paga depois.”
Em
comparação com todo o nosso consumo na pousada em Caraíva e com o
pernoite em Corumbau, o fiado de um picolé de R$1 provavelmente
parece pouco impressionante, mas as três histórias me alegraram em
igual intensidade, e a confiança imotivada que todo mundo demonstrou
por mim ao longo da viagem certamente ficará entre os pontos que
mais me agradaram nessas férias.
2.
De
Itaúnas, partimos para Belo Horizonte. Passamos o dia inteiro na
estrada, demos dinheiro para dois grupos de colegiais que faziam
pedágio no meio da BR (provando que Vanessão estava errada) e nos
desculpamos com os dois grupos seguintes, por termos esgotado nossos
trocados. Em um determinado momento, acho que uns duzentos
quilometros Minas adentro, certamente a mais de 80km de qualquer
coisa, Itaú ou não, topamos com uma mulher pedindo carona.
Era
uma cena um pouco inusitada, a moça cheia de malas em uma divisão
da estrada, longe de qualquer coisa. Como ela estava num ponto em que
a estrada se dividia em três divisões possíveis, parada bem ali no
meio, dava a impressão de que iria para qualquer lado que fosse.
Não
parei.
Existem
muitos motivos, normalmente ligados à segurança, para não dar
carona a alguém na estrada. De algum modo, porém, eu não acho que
eu tenha me sentido realmente ameaçado por uma mulher cheia de malas
em um rincão perdido entre Minas e o Espírito Santo.
(Poucos
metros depois, um outro sujeito fez menção de pedir carona, mas
esse parecia não ter decidido se queria mesmo ir para algum lugar ou
se estava bem, ali. Fiquemos na mulher.)
Apesar
de tudo, ainda é possível racionalizar. Ela poderia ter uma arma
com ela. Com aquele tanto de bagagem, ela poderia ter um arsenal ---
se bobear, ela podia até ter algum capanga escondido na mala maior.
Talvez (e a gente vive lendo histórias assim) ela fosse parte de uma
quadrilha que, escondida ali perto, confiava na aparência inocente
de uma mulher cheia de malas para assaltar os motoristas desavisados
(ainda que essa estratégia pareça fraca, considerando quão poucos
carros devem passar por aquela encruzilhada). Diacho, ela estava numa
encruzilhada: vai que era o próprio coisa-ruim, em carne, osso e
malvadeza?
Tudo
isso é perfeitamente possível, provável, até. (Não.)
Mas,
sei lá: nem a crença (digamos) nisso impede que eu me aborreça por
não ter parado. Na verdade, acho que eu sempre preferi acreditar
que, caso a falência das boas ações seja mesmo inevitável, eu
seria a vítima bem intencionada antes de ser o cético que, por
inação, minaria também a fé alheia.
Agora,
eu sei.
3 comentários:
Adorei, fi.
E, de qualquer forma, acho que parar pra dar carona é, realmente, muito arriscado. Eu não pararia. On the other hand, já deixei pra receber por consultas depois, na confiança, e sempre deu certo. São coisas diferentes. Não vale o risco.
Dedéu, gentileza se paga com gentileza e confiança idem. Mas escolher para quem e como devolvemos é demonstração de sabedoria e não de falta de fé. Confiar no instinto é algo importante. Levar em conta a informação que temos também é. Pode apostar que, sendo de sua natureza, em muitas circunstancias que nem se lembre, você já fez por merecer o que recebeu durante a viagem. Sua alma é generosa (coisa de família), mas preferimos vc de volta em casa e a fulana parada no meio da estrada. Tudo como deveria ser. Não dá pra postar foto junto com textos e contos? Eu sempre ilustro mentalmente o que leio seu, mas é coisa de autor deixar por conta da minha pobre imaginação ou o blog não deixa postar? Bjs
O blog deixa, eu é que não sei tirar foto...
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