quinta-feira, 24 de março de 2011

Viajante


Aí este cara veio. Tipo, do passado. Um viajante do tempo e tal. Uma hora ele não tava lá e depois, estava!
E o que isso significa?
Que além de viajar no tempo, ele viaja no espaço, também.
Ah. E aí?
Aí ele contou coisas do passado. Ele tinha vindo de vinte anos antes e tal. Falou de coisas de que lembrávamos, todo mundo riu muito.
Nossa, e sobre o futuro?
Ele disse que não foi lá, ainda, mas que vai em breve.
Cara?
Quê?
Esse cara aí...
Que tem?
Quanto tempo ele levou pra vir do passado?
Como assim?
A viagem dele de vinte anos atrás pra cá. Quanto tempo ela demorou?
Porra, cara. Vinte anos, lógico!
Puto.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O amor em tempos de internet

Até que um dia, o e-mail não chegou. Deu quarta, quinta, sexta e nada. Ele esperou o fim de semana acabar tentando segurar a ansiedade, mas a segunda-feira também não trouxe nada. Mais dois, três dias – será que valia a pena escrever de novo, reiterar o que dissera dias antes, supor que houvesse ocorrido algum problema nos POP, SMTP ou o que for? Tanto fazia: ela não respondeu mais.
Queria poder achá-la no tuíter, facebook, messengers, qualquer coisa, mas só a conhecia por nick, o e-mail não trazia nada no google, não tinham conhecidos em comum. Tudo o que havia era um histórico de trocas de e-mail e agora uma pergunta sem resposta, uma espera sem fim, um rompimento quieto.
Silêncio, silêncio, silêncio: todas as possibilidades do mundo. Nos primeiros dias, podia ser que fosse uma viagem. Mas duas, três semanas e...
Teria morrido? Podia bem ser, afinal, pra sumir assim, depois de tanto tempo, tantas... promessas? Ele se endireitou. Certamente, era possível. E sendo, convinha chorar. Mas e se não fosse? Seria ridículo chorar a morte de alguém porque a tal pessoa mudou seu e-mail ou porque foi pega pelo filtro anti-spam ou porque está sem internet em casa por qualquer razão.
Ou não seria? Que diferença faria para ele saber que ela estava viva? Aliás, saber que Maria qualquer coisa, ou Renata de não sei o quê (ou, talvez, e igualmente irrelevante, Daniel Feitosa de Lins) estava viva, porque ela, mesmo, aquele nick retirado de um seriado japonês, aquela personalidade meio inconstante, às vezes esquecida de como costumava camuflar sua escrita, às vezes mais sincera do que deveria, ela estava morta e enterrada e continuaria assim enquanto não enviasse um e-mail novo.
Se se está disposto a chorar a morte de um eu virtual (digamos) assim, era melhor estar pronto para fazê-lo de verdade, e não fingi-lo para chorar a eventual morte de seu avatar de carne e osso. Devia, portanto, chorar, ficar aborrecido por alguns dias, usar do luto etc. Também convinha que aquele a chorar fosse seu nick, seu e-mail etc e não o ele ali, plantado em frente ao computador, alt-tabeando o navegador e algum dos jogos pré-instalados no sistema operacional.

E de repente, estamos todos cantarolando qualquer coisa e chorando o fim dos endereços IPv4 e comemorando o uso de hexadecimais.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Isso passa. São os hormônios, é essa fase da vida, não se preocupem. Passa. Desde sobrevivido à tentativa de suicídio aos 16 anos, Fernando cresceu às voltas com os problemas passageiros, as dificuldades de idade, a ânsia por algo de definitivo. O vestibular, com a dupla dificuldade escolhesforço, passou. A desistência do curso de medicina já no terceiro ano, a angústia antes de mudar de vez para a engenharia, o ter que convencer aos outros e a si, passaram. Passaram os anos mais difíceis, a casa vazia, a comida de delivery, passaram as horas extras, até.
O primeiro casamento, com a namorada que o fizera trocar de faculdade, passou. A infância do primeiro filho, o segundo e o terceiro apartamento, também, como passaram mulheres, amigos, as noites em claro por qualquer razão (até a lembrança desses problemas passou).
Um dia, acordou e tinha oitenta anos e sentiu o peito fraco e as pernas bambas. Foi a neta mais nova quem dirigiu para o hospital. É só uma crise, o doutor falou. Isso passa.
E passou.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Mezzo a mezzo (a hora do chá)

Olha, você sabe que eu me surpreendi com isso tudo? Com o quanto não é diferente? Ela se virou sem saber se entendia ou não e tornando necessária a complementação: sabe? As salas, o banheiro, tudo é... direito. Eu achava, assim, que seria meio velho, sujo, sei lá. Boa surpresa com a FFLCH.

Embora seja um hábito talvez de fraqueza ou limitação imaginativa, trazer elementos do cotidiano para um texto é a melhor forma de evidenciar a relação dúbia entre vida e literatura: usa-se aquela como instrumento desta e esta como instrumento daquela.

Ela me chamou de besta e fomos embora; estava fazendo frio e chovendo, mas a proximidade aquecia, fazia bem. Não é muito, claro, dividir um guarda-chuva, oferecer um doce, compartilhar um segredo, mas quando se está lá, fingindo que o que se quer é fugir da chuva ou ser legal ou desabafar, nessas horas é que se percebe o quanto pesam essas coisas todas.

É difícil, às vezes, usar a primeira pessoa, mas é nessas horas que ela é mais bem-vinda. Pode parecer bobagem, não sei se parece, acho que sim, mas esse tipo de escolha me soa sempre muito mais relevante do que uma questão de concordância. A primeira pessoa sou eu e ela é importante, às vezes, pra mostrar que sou sempre eu, embora nunca seja – se eu não consigo explicar, é melhor ainda.

Andando tão perto, talvez seja natural sincronizar os passos, mas eu não posso deixar de pensar nisso como algo importante. A dança para pular as poças de água e evitar as partes mais acidentadas do calçadão é tão bela quanto qualquer outra e a gente tendo que ficar perto assim, pra aproveitar o guarda-chuva – algum dia eu vou lembrar disso como nosso primeiro tango?

Eu escrevo, portanto, na primeira pessoa, e isso significa o mundo para mim, porque me força a acreditar em tudo. Mas o leitor também receberá o texto assim, em primeira pessoa, e também ele será forçado a acreditar. Não é apenas uma ligação autor-obra-público, mas um compromisso mais importante: eu sou o narrador e o leitor também o é. Nós dois contamos a história e somos a mesma pessoa.

As escadas e as risadas, todas acabam e nós ficamos aqui, entre a calçada e a rua, entre um ponto de ônibus e meu carro estacionado no bolsão. Nós paramos sabendo que ali era a hora de ruptura, de separação e eu achei que ela também não queria aquilo. Seria idiota sugerir uma carona. Seria? Você vai pra lá, não?, ela disse. Não, não. Hoje eu estou de ônibus, menti.

E no entanto, não é a mesma história, não é a mesma pessoa. Se fosse, talvez eu não precisasse estar aqui, me justificando, me esforçando tanto pra que você acredite sem, no entanto, acreditar. Se fosse, talvez eu nem precisasse mentir que minto.

Metade de mim ficou meia hora esperando no ponto com mais cem ou mil outras pessoas, torcendo para o ônibus dela chegar antes pra eu poder ir correndo pro estacionamento, ao invés de ter que entrar num ônibus, pagar os três reais do Kassab e descer logo pra voltar andando no escuro da USP até meu carro. A outra metade estava sozinha com ela e torcia para seu ônibus não chegar nunca, para aquilo demorar pra sempre.

A banalidade das nossas ações cotidianas é o campo mais fértil e perigoso da ficção e é por isso que não serve completamente aos meus propósitos. Algum dia, as outras pessoas verão que os livros de memória não merecem maior crédito do que os de fantasia medieval. Acho que entendo onde a ideia de metaverdade falha: ela sugere que a ficção seja entendida como algo que verse sobre a verdade (ainda que o faça com verdades) ou como algo que à verdade remeta. Não é assim; é verdade, só, como qualquer outra. Antes de assassinar tudo o que eu fiz até aqui (em prol da verdade!), lanço um último alento para que o plot twist não seja visto como uma surpresa planejada ou uma fuga da tal banalidade ou como algo de que deveria emergir uma reflexão moral qualquer. É só verdade.

Meu ônibus chegou primeiro. O tiau foi um beijo na bochecha morno e minha cabeça se enchendo de dúvidas e de serás. No fim, fui de ônibus o caminho todo e só desci quase já em casa. O carro que se danasse e o motorista me poupou os três reais porque meninas bonitas devem descer sempre pela frente.