sexta-feira, 4 de março de 2011

Mezzo a mezzo (a hora do chá)

Olha, você sabe que eu me surpreendi com isso tudo? Com o quanto não é diferente? Ela se virou sem saber se entendia ou não e tornando necessária a complementação: sabe? As salas, o banheiro, tudo é... direito. Eu achava, assim, que seria meio velho, sujo, sei lá. Boa surpresa com a FFLCH.

Embora seja um hábito talvez de fraqueza ou limitação imaginativa, trazer elementos do cotidiano para um texto é a melhor forma de evidenciar a relação dúbia entre vida e literatura: usa-se aquela como instrumento desta e esta como instrumento daquela.

Ela me chamou de besta e fomos embora; estava fazendo frio e chovendo, mas a proximidade aquecia, fazia bem. Não é muito, claro, dividir um guarda-chuva, oferecer um doce, compartilhar um segredo, mas quando se está lá, fingindo que o que se quer é fugir da chuva ou ser legal ou desabafar, nessas horas é que se percebe o quanto pesam essas coisas todas.

É difícil, às vezes, usar a primeira pessoa, mas é nessas horas que ela é mais bem-vinda. Pode parecer bobagem, não sei se parece, acho que sim, mas esse tipo de escolha me soa sempre muito mais relevante do que uma questão de concordância. A primeira pessoa sou eu e ela é importante, às vezes, pra mostrar que sou sempre eu, embora nunca seja – se eu não consigo explicar, é melhor ainda.

Andando tão perto, talvez seja natural sincronizar os passos, mas eu não posso deixar de pensar nisso como algo importante. A dança para pular as poças de água e evitar as partes mais acidentadas do calçadão é tão bela quanto qualquer outra e a gente tendo que ficar perto assim, pra aproveitar o guarda-chuva – algum dia eu vou lembrar disso como nosso primeiro tango?

Eu escrevo, portanto, na primeira pessoa, e isso significa o mundo para mim, porque me força a acreditar em tudo. Mas o leitor também receberá o texto assim, em primeira pessoa, e também ele será forçado a acreditar. Não é apenas uma ligação autor-obra-público, mas um compromisso mais importante: eu sou o narrador e o leitor também o é. Nós dois contamos a história e somos a mesma pessoa.

As escadas e as risadas, todas acabam e nós ficamos aqui, entre a calçada e a rua, entre um ponto de ônibus e meu carro estacionado no bolsão. Nós paramos sabendo que ali era a hora de ruptura, de separação e eu achei que ela também não queria aquilo. Seria idiota sugerir uma carona. Seria? Você vai pra lá, não?, ela disse. Não, não. Hoje eu estou de ônibus, menti.

E no entanto, não é a mesma história, não é a mesma pessoa. Se fosse, talvez eu não precisasse estar aqui, me justificando, me esforçando tanto pra que você acredite sem, no entanto, acreditar. Se fosse, talvez eu nem precisasse mentir que minto.

Metade de mim ficou meia hora esperando no ponto com mais cem ou mil outras pessoas, torcendo para o ônibus dela chegar antes pra eu poder ir correndo pro estacionamento, ao invés de ter que entrar num ônibus, pagar os três reais do Kassab e descer logo pra voltar andando no escuro da USP até meu carro. A outra metade estava sozinha com ela e torcia para seu ônibus não chegar nunca, para aquilo demorar pra sempre.

A banalidade das nossas ações cotidianas é o campo mais fértil e perigoso da ficção e é por isso que não serve completamente aos meus propósitos. Algum dia, as outras pessoas verão que os livros de memória não merecem maior crédito do que os de fantasia medieval. Acho que entendo onde a ideia de metaverdade falha: ela sugere que a ficção seja entendida como algo que verse sobre a verdade (ainda que o faça com verdades) ou como algo que à verdade remeta. Não é assim; é verdade, só, como qualquer outra. Antes de assassinar tudo o que eu fiz até aqui (em prol da verdade!), lanço um último alento para que o plot twist não seja visto como uma surpresa planejada ou uma fuga da tal banalidade ou como algo de que deveria emergir uma reflexão moral qualquer. É só verdade.

Meu ônibus chegou primeiro. O tiau foi um beijo na bochecha morno e minha cabeça se enchendo de dúvidas e de serás. No fim, fui de ônibus o caminho todo e só desci quase já em casa. O carro que se danasse e o motorista me poupou os três reais porque meninas bonitas devem descer sempre pela frente.

Nenhum comentário: