O cigarro está deixando o riso dele amarelo. Às vezes, penso que vou pegar todos os maços de cigarro dele, todos os maços do mundo e amassar um por um, molhar tudo, não deixar secar nunca mais. Aí ele nunca mais me olharia pelo vão da porta, entrando de madrugada e me sorrindo aquele sorriso amarelo e morto, aqueles dentes amarelos, os pelos amarelos.
Nossos beijos têm gosto de café ou de álcool, nosso sexo tem cheiro de maconha, nossas conversas anestesiadas pelos calmantes e eu tenho vontade de pular sobre ele, agarrar-lhe o pescoço e sacodi-lo da poltrona, gritando Acorde!, acorde seu grande filho-da-puta!, eu estou aqui, está vendo?, sou eu, eu, eu! Mas eu tenho medo, medo de que se o fizesse ele se deixasse sacodir, os olhos vidrados e perdidos, a boca meio aberta ou meio fechada (uma questão de otimismo?) e soltando aquele zumbido asqueroso que ele faz às vezes no lugar das palavras.
No começo, quando nos viciamos em estar bêbados, em estar altos, em estar dopados, era bom, porque era... pelos motivos certos. A causa pela consequência etc, tomar uísque para ficar bêbado e não porque gostássemos de uísque. Eu gosto de acreditar que nunca mudei, mas ele se acostumou ao gosto amargo, à fumaça escura, aos venenos da rotina, tanto quanto se acostumou a me ter aqui e a esse sorriso estampado amarelo nessa falta de amar e de elo.
De vez em quando me dá vontade de contar tudo pra ele, sobre mim, sobre você, sobre todos os que riem dele pelas costas. Mas, de novo, o medo de que seja tarde demais, de que não faça diferença.
sexta-feira, 20 de maio de 2011
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Don't tell me the truth about love
Imagine-a como uma menina que dorme cercada de bichos de pelúcia, que os penteia e coloca numa mesa de bonecas a pretexto de tomarem chá. E imagine-se como um pinguim que se perdeu no Atlântico e veio parar nas praias do Brasil ou como um cachorro viralata que foi pedir comida na porta errada.
As crianças – todo mundo é meio criança, nessas horas –, elas não sabem muito bem como agir. Às vezes é curiosidade, às vezes é desatenção, medo, nervosismo... Mas na maioria das vezes... Eu diria que na maioria das vezes é mesmo amor. A menina encontra um animal e acha que é como os outros, de pelúcia. E o animal também não entende um aperto mais forte, um movimento exagerado, um grito inesperado.
Os dois se encontram sem querer, se estranham sem querer. E no fim, um sempre se machuca.
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Texto de um e-mail que nunca será enviado
Prezada X,
Recebi seu e-mail hoje pela manhã e...
Olha, eu queria, também, que fosse assim. Do jeito que você quer, sem tirar nem por. Não porque concorde com sua proposta ou porque me interesse ver minha empresa incorrendo em um risco enorme (embora, vá lá, mais ou menos bem embasado), mas porque seria uma solução jurídica, seria resolver a questão com conceitos que a gente encontra lá no Código Civil, com todas as letras. N-E-G-L-I-G-Ê-N-C-I-A. I-M-P-R-U-D-Ê-N-C-I-A. I-M-P-E-R-Í-C-I-A.
Veja bem, eu já anunciei aos quatro cantos minha inaptidão ao Direito (muito mais do que ela merecia, aliás), mas eu consigo ver, juro que consigo, a beleza e a... grandeza do Direito. Mas no fim, acho que todos nós sabemos que é isso, não? Acho que você, aí, deve entender ainda melhor do que eu: é bonito, é bonito, mas não é a beleza que nos vai pro dinheiro no bolso, é?
Não assino.
Passar bem.
Recebi seu e-mail hoje pela manhã e...
Olha, eu queria, também, que fosse assim. Do jeito que você quer, sem tirar nem por. Não porque concorde com sua proposta ou porque me interesse ver minha empresa incorrendo em um risco enorme (embora, vá lá, mais ou menos bem embasado), mas porque seria uma solução jurídica, seria resolver a questão com conceitos que a gente encontra lá no Código Civil, com todas as letras. N-E-G-L-I-G-Ê-N-C-I-A. I-M-P-R-U-D-Ê-N-C-I-A. I-M-P-E-R-Í-C-I-A.
Veja bem, eu já anunciei aos quatro cantos minha inaptidão ao Direito (muito mais do que ela merecia, aliás), mas eu consigo ver, juro que consigo, a beleza e a... grandeza do Direito. Mas no fim, acho que todos nós sabemos que é isso, não? Acho que você, aí, deve entender ainda melhor do que eu: é bonito, é bonito, mas não é a beleza que nos vai pro dinheiro no bolso, é?
Não assino.
Passar bem.
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Às vezes, entrando em um estabelecimento com o fôlego falto e ainda sob a casaca molhada da chuva de fora, Beto se vê obrigado a abaixar-se e reatar os cadarços encharcados. Nessas horas, se você passar ao lado dele perto o bastante, ele erguerá os olhos e fitará seu rosto de baixo, vassalo, um joelho apoiado no chão e o outro na altura do peito, as roupas feitas imprestáveis pela chuva, a água escorrendo pelo rosto, o cabelo caído sobre a testa. Olhando-o de cima, seco, o guarda-chuva como cetro, você pode, pelo mais breve dos momentos, achar que há alguma hierarquia envolvida nisso tudo, e talvez haja, mesmo, talvez tudo faça sentido quando chove.
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