sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Batida de asas de borboletas e o estreito caminho das grandes verdades humanas


Algo o incomodava.
Podia ser a escuridão absoluta que absolutamente escurecia naquele absolutamente escuro corredor. Podia ser o mero fato de estar ali, tomado de uma só vez refém e guardião da moça que deveria ter sido apenas mais uma vítima, indo de encontro a Kim Jon-Il, seu ex-empregador e atual inimigo. Podia ser o tilim-toc-tilim que Najibah fazia ao chutar, com a perna de pau, um objeto qualquer que ela achara ao longo do corredor e que, inexplicavelmente, não perdia na escuridão.
Fosse por quê fosse, Samuel Matias descontava seu incômodo falando sem parar.

Algo a incomodava.
Podia ser a escuridão absoluta que absolutamente escurecia naquele absolutamente escuro corredor. Podia ser o fato de ter perdido tudo o que tinha, inclusive uma perna, e de ter tido que se unir a seu algoz para ter qualquer esperança de alcançar a almejada Vingança. Podia ser o maldito objeto que ela não parava de chutar com sua perna de pau, fazendo tilim-toc-tilim – mesmo quando ela tentava andar no curso mais aleatório possível, na compreensível expectativa de que isso a faria errá-lo. Ou podia ser o fato de que Samuel Matias falava sem parar.

...e então eu cheguei à Coreia do Norte, onde fui apresentado a ele pela primeira vez. E ele simplesmente disse para mim: Voe por aí, despeje cobre derretido ou o metal que mais lhe aprazer sobre os vilarejos, divirta-se. E eu pensei: Oras, por que não?, e...

Quanto tempo fazia que andavam? Najibah havia tentado contar seus passos ao longo do corredor, mas perdeu a conta quando o tilim-toc-tilim começou a lhe irritar demasiadamente. Por que Jim Jong-Il estaria em um lugar como esse? Certamente era seguro, mas algo parecia errado.

...mas claro que as crianças tinham gritos mais agudos, então eu acabava dando alguma preferência a elas, veja bem, por questões estéticas, apenas, já que no mais, era totalmente imparcial, palavra!...

Park, o homem gordo que os liderava, se fazia saber apenas pelo som dos passos. Ela prestava atenção. Não havia nenhuma irregularidade no andar dele, pelo contrário. Era firme, decidido, embora não fosse valente. Além disso, ele fedia a medo e, numa situação dessas, medo indicava honestidade.

...e no outro dia ele já estava animado novamente, então me disse: Voe para a Índia e de lá para o Paquistão e eu disse Paquistão? e ele disse Sim, para Peshawar e eu disse oras, claro, por que não? e...

Toda a situação era um aborrecimento completo, ainda mais porque a perna de pau lhe doía, mas finalmente Najibah avistava ao longe indícios de iluminação. Ela estancou.
O que você disse?
Hein?
Sobre o Paquistão. O que Kim Jong-Il lhe pediu?
Para ir da Índia para Peshawar, porque lá...
Não.
Não?
Não. Ele não disse. Ele não diria isso.
Por que não?
Porque ele gosta de cinema. Se você fosse da Índia para Peshawar, você teria que fazer um pouso forçado e ir para Shangri-la.
É?
Definitivamente.
Então ele queria que eu caísse? Porque eu não caí, e...
Não, ele não queria nada, na verdade...
Ela se abaixou, tateou o chão. Suas mãos encontraram a peça de metal, o tilim de seus tocs. À pouca luz que agora havia no túnel, Najibah examinou o objeto. Era o Spirit of Ecstasy.
Samuel, ela disse, enquanto Park a chutava para o chão e imobilizava o outro, é uma armadilha.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Tenebrosa, assombrosa e espantosa caçada ao querido líder

Samuel Matias correu para trás de um pilar e sentiu a bala passar zunindo a poucos centímetros de seu braço esquerdo. Sem olhar, ele disparou três tiros na direção de origem da bala itinerante e continuou em direção a um corredor escuro. À sua frente, Najibah segurava uma pistola com a mão esquerda enquanto estancava um sangramento com a mão direita e fazia toc-toc-toc com a perna de pau.

Eles estavam juntos havia três semanas. Ao longo deste tempo, Samuel realizou cento e oitenta e nove tentativas de fuga, todas elas resultando em sua inexorável captura e em demonstrações convincentes, por parte de Najibah, de que enfrentar norte-coreanos armados era uma perspectiva menos dolorosa do que continuar tentando fugir (Samuel tinha, no fim das contas, alguma dificuldade para assimilar conceitos), de forma que agora ele já não procurava mais por portas nos quartéis-generais inimigos que lembrassem saídas de serviço.
Ao invés disso, ele seguia Najibah, dando-lhe cobertura e matando centenas de norte-coreanos todos os dias, o que, no mais, também não lhe era muito menos divertido do que sobrevoar povoados despejando ferro sobre camponeses. Durante estes vinte dias, eles haviam invadido quase trinta postos militares, matado todas as pessoas lá dentro e (em geral, mas nem sempre, antes) conseguido informações que os levassem mais perto de finalmente encararem Kim Jong-Il frente a frente.
Agora, ambos corriam em mais um desses quartéis, Najibah empenhada em seguir em frente e Samuel preocupado em mantê-los vivos. Najibah fez uma curva repentina, entrando em uma sala grande, com dezenas de militares, que Samuel eliminou com apenas quatro disparos. Najibah olhou para ele e sorriu, deixando-o pensativo enquanto seguiam em frente, abrindo a última sala inexplorada.
Espere, ela disse, quando ele entrou com a arma a postos. Na sala, havia apenas uma mesa de madeira escura, atrás da qual estava sentado um homem rotundo, suado, de olhos expremidos e respiração nervosa.
Precisamos chegar a Kim Jong-Il, disse Najibah, indicativa.
Não me matem!, disse o homem, imperativo.
Talvez não o matemos, disse Samuel, subjuntivo (e também mentiroso), se você colaborar.
Está bem, está bem (começavam a se repetir), disse o homem. Eu os levo até ele.
Najibah ficou atônita por algum tempo. Nos leva até ele?, perguntou. Você não vai nos dar uma dica em forma de charada ou coisa do tipo, como tem ocorrido até agora? Vai realmente nos levar até ele?
O homem, que, por praticidade narrativa, adianto se chamar Park, praguejou diante de sua falta de criatividade, mas confirmou: Sim, levo.
Erguendo-se, Park empurrou a mesa e revelou um alçapão.
De fato, disse, Kim Jong-Il se encontra a poucos minutos daqui.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Quando eu vi o mar, era o último dia do ano e de dezembro. Havia duas meninas atrás de mim, eu não as via porque elas estavam atrás de mim, mas eram duas meninas porque tinham vozes de meninas, e elas falavam comigo mesmo sem eu as estar vendo. Uma me dizia: "Marina, olhe lá, um navio", e eu me divertia porque não me chamo Marina, me chamo José, e não sei por que ela me chamava assim (devia ser porque eu não havia dito meu nome de verdade), mas ainda assim eu olhava e via o navio e era bonito, mesmo, vê-lo assim, refletindo o resto de luz do sol. A outra, tadinha, era ainda mais confusa, dizia: "É mesmo, Alice, e logo ali vai outro", e eu fazia esforço pra não rir, que também não chamo Alice.
As duas ficaram horas e horas, ali, me dizendo as coisas mais absurdas sobre o céu e sobre como em breve haveria fogos e sobre como o tempo estava bom. Conforme a praia enchia, mais gente se apertava na areia, algumas à minha frente, de costas, outras dos meus lados ou do lado das duas meninas que falavam comigo. Essas outras pessoas também me diziam todo tipo de coisa, me diziam "Olha, mãe (mas eu não sou mãe de ninguém, é claro), um passarinho (mas era um morcego, mas quando os morcegos voam bem depressa, no escuro, quem poderia dizer que não são passarinhos?)", ou "Aqueles bolinhos, juro por Deus, não me fizeram bem", ou até "Me dá mais um pouco dessa cerveja", embora eu não tivesse cerveja nenhuma, não soubesse de bolinhos nenhuns, então eu ria, ria.
Acho que foi a melhor noite de 31 do mundo, com tanta gente ali, e eu só fiquei triste por um minutinho, quando alguém disse "Olha ali, um velhinho rindo sozinho", e eu fiquei chateado de pensar nesse velhinho, coitado, sem ninguém pra falar com ele como todo mundo falava comigo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Dê-me seu coração e eu lhe darei cinquenta e três facadas

Samuel Matias tinha uma espécie muito particular de medo de aviões: apesar de passar a maior parte das suas horas despertas voando, e de encontrar grande prazer nesta atividade, lhe provocava arrepios a mera ideia de permanecer dentro de uma aeronave no solo. Isto não é natural, diria ele a qualquer um que lhe indagasse os motivos, acaso houvesse no mundo quem lhe indagasse qualquer coisa. Por isso, tinha o costume de gastar os poentes à procura de locais abertos em que pudesse pousar, em geral em campos próximos às grandes cidades, e passar a noite, dormindo na grama à luz do céu e sob a proteção das asas negras do boing.
Encontrava-se assim o nosso herói quando lhe arranca do sono o toque suave de uma mão em seu ombro. Seus olhos levam algum tempo para se ajustar à luz do sol antes que ele perceba, diante de si, o sorriso terrível da jovem que a ele se dirigia. Somente alguns minutos depois, já imobilizado e amarrado, ele viria a perceber que ela mancava.

Não lhe agradava muito o sabor do sangue escorrendo para a boca, e também era um pouco incômodo enxergar com os olhos inchados, mas o que o aborrecia mais era a claustrofobia qualificada de estar no avião pousado. À sua frente, Najibah, tirava um prazer vingativo do desconforto de sua vítima, enquanto sacolejava um bastão de ferro entre as pernas do homem.
Não que fizesse alguma diferença, mas algo nela demandava uma explicação para o ocorrido, de forma que ela perguntou a ele, afinal, o que levava um sujeito a cruzar o planeta para derramar chumbo derretido em povoados que nunca lhe haviam ofendido.
Diga-me, disse ela, e então eu arrancarei seu coração.
A consequência inevitável da demanda tornava um pouco menos tentadora a ideia de dar-lhe uma resposta, de modo que, a fim de dar-lhe convicção, Najibah fê-la acompanhar por algumas pancadas certeiras do bastão, até que Samuel respondesse em gritos agudos que faziam pouca jus ao conteúdo das palavras: Culpe Kim Jong-Il.
Embora não houvesse nada em nenhum de seus passados possíveis que justificasse tal fato, Najibah era uma pessoa estranhamente politizada para uma camponesa cujas belezas módicas e (mais recentemente) a debilidade de uma das pernas eram compensadas pelo esforço incansável no arado e (mais recentemente) na busca por um único homem, a quem dera o nome de Duque de Chumbo. Diante da revelação, porém, uma nova vendeta se anunciava, de forma que ela abaixou o bastão e declarou ao homem a seus pés:
Você me ajudará a chegar a ele. E então eu arrancarei seus corações.