Maria e Ike não foram casos excepcionais. Em cada canto da ilha, eu me deparava com uma história mais fantástica. Ouvi relatos sobre conquistas persas, batalhas contra feras marinhas, naufrágios. De repente, aquilo se tornou uma obsessão, como se eu fosse um colecionador de contos.
Em algum momento, Sílvia foi embora, me deixando para trás. Ela deve ter tentado me chamar --- eu realmente acredito que sim ---, mas, imerso naquelas histórias, eu não dei por isso. Era natural que fosse assim: aquela ilha não era o lugar dela, mas eu nunca poderia ir embora.
Com o tempo, virei mais um morador de lá. Criei uma rotina, construí uma casa para mim. Um dia, um jovem encostou um barco no píer, olhou assombrado para aquelas terras não mapeadas (o que teria acontecido com Sílvia?) e saiu fazendo perguntas. Eventualmente, ele veio até mim e me perguntou como eu havia ido parar ali.
E eu lhe contei sobre Anita e sobre o Dani, e eu lhe contei sobre a
solidão e sobre Sílvia. E enquanto ele me ouvia, incrédulo, eu lhe
contei sobre o mar.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Mar, 19 - A história do norueguês
Ike nascera mesmo na
Noruega e de fato fora jovem para a Inglaterra. Também era verdade
que lutava como um herói da mitologia, o corpo e a mente parecendo
terem sido feitos para o embate. Era verdade até que sonhava com um
barco, como era verdadeiro o relato de como, após parecer condenado,
conseguiu um dos saxões no pântano. Depois, aparentemente, é que
as coisas não haviam sido bem como o relatado.
De posse do navio --- que,
ao contrário do que me fora dito, de acordo com esta versão ainda
carecia de um nome --- o próximo passo era ter uma tripulação. Os
soldados que o seguiam talvez fossem os melhores conhecedores de
metal e sangue, mas era preciso ter por perto quem conhecesse as
águas e os ventos para se navegar.
Assim, Ike reuniu homens.
Ele excursionou por meses
através de diversas vilas de noruegueses instalados na Inglaterra,
perguntando em tavernas por qualquer um que entendesse do mar.
Encontrou e recrutou homens fortes com talento para manejar os remos
e as velas, jovens ambiciosos dispostos a se submeter ao trabalho
duro no convés em troca das promessas de ouro e navegadores
experientes que conseguiam adivinhar para onde sopraria o vento. E
então, havia o Velho Dick.
O ancião já havia
passado em muito a idade de partir atrás de aventura, mas não houve
alma em sua vila que não o apontasse como o maior marujo que já
existiu. Diziam que não havia mar que o velho não desbravasse,
costa que o assustasse ou inimigo que o enganasse numa batalha em
alto mar. Ademais, apareceu diante de Ike com uma disposição que
inviabilizava qualquer possibilidade de negativa e com um rapazola de
catorze ou quinze anos --- o rosto imberbe enrolado por um pano
tornava difícil precisar --- que prometia a força que faltava ao
pai. O gigante riu, bateu amigavelmente no braço do menino e mandou
que subissem logo à bordo.
O tempo, porém, provou
que o jovem tinha pouquíssimo a oferecer no convés. Era fraco e
desengonçado, incapaz de atar cordas ou erguer caixas. Além disso,
tinha uma curiosidade que o afastava dos trabalhadores braçais,
ocupados demais para conversar, exceto quando se sentavam à noite em
roda.
Mas não é dizer, também,
que os dois foram um fardo para a embarcação. O Velho Dick tinha
uma força inacreditável e uma disposição incondizente com sua
idade. Também parecia conhecer absolutamente todos os segredos de um
navio e da arte de cruzar o mar. E quanto ao rapazola, também não
gostava do ócio. Se lhe faltava o talento para o serviço pesado,
lhe sobrava inteligência e audácia. Ele, portanto, preferia passar
seu tempo ao lado de Ike.
E, no comando, o impúbero
demonstrava jeito. Palpitava sobre rotas, enxergava passagens com a
habilidade de um falcão, lia as nuvens, os pássaros e os ventos
como se fossem escritos em uma língua que só ele dominasse. Se o
navio de Ike era um monstro dos oceanos, capaz de derrotar qualquer
adversário, o filho do Velho Dick certamente merecia crédito por
isto.
Um dia, quando navegavam
de volta dos mares do norte, Ike quis evitar a costa escocesa,
navegando por águas profundas, mas o jovem insistiu que o tempo
mudaria e que não haveria escocês no mundo que seria do que a
tempestade que viria a cair. Ike defendeu seu ponto ainda por algum
tempo, mas então abaixou a cabeça e concedeu e todos assistiram com
assombro à tormenta que se abatia, enquanto passavam sem maiores
percalços pelas águas rasas do litoral da Escócia.
Quando chegaram a terras
inglesas, todos foram a um pub e Ike comprou cerveja para todos, em
celebração a estarem vivos. Ele ergueu sua caneca tantas vezes que
mal conseguia andar até os barris para se servir de áis bebida, mas
não deixou de notar que o herói daquela noite não estava
bebendo.
Após algum tempo, o filho do Velho Dick levantou-se e saiu do salão, andando sozinho em meio à escuridão. Ike bebeu o resto de sua cerveja de um trago e então o seguiu.
Após algum tempo, o filho do Velho Dick levantou-se e saiu do salão, andando sozinho em meio à escuridão. Ike bebeu o resto de sua cerveja de um trago e então o seguiu.
No meio da noite, o
imberbe era reconhecível por sua silhueta fina e pequena, metade do
tamanho de qualquer homem de sua idade, sentada no cais. Apesar de
ser noite, mantinha os panos enrolados na cabeça. Estava em completo
silêncio e olhava o mar como se fosse seu único amigo. Ike
sentou-se ao seu lado.
Naquele momento, algo
muito estranho aconteceu. Ike sabia que o impúbere estava chorando,
embora não lhe visse as lágrimas, mas não se incomodou com isso.
Ele pôs a mão sobre os ombros da criança, que estremeceu, ameaçou
fugir, mas acabou ficando.
"Qual seu nome verdadeiro?", o gigante perguntou. "Menino" era o apelido oficial usado por todos, mas Ike sabia que não poderia continuar a usá-lo.
"Maud", respondeu a garota. Ela se virou para ele, chorando.
"Quer uma cerveja, Maud?"
"Dá azar ter uma mulher a bordo."
"Não é o que tem parecido. Eu sou muito mais capaz de afundar este navio, pelo visto." Ele não sabia, mas estava sendo profético. Maud riu e os dois se levantaram. Contar tudo para os outros seria um problema, mas nem de longe era o maior dilema com que Ike tinha que lidar.
"Qual seu nome verdadeiro?", o gigante perguntou. "Menino" era o apelido oficial usado por todos, mas Ike sabia que não poderia continuar a usá-lo.
"Maud", respondeu a garota. Ela se virou para ele, chorando.
"Quer uma cerveja, Maud?"
"Dá azar ter uma mulher a bordo."
"Não é o que tem parecido. Eu sou muito mais capaz de afundar este navio, pelo visto." Ele não sabia, mas estava sendo profético. Maud riu e os dois se levantaram. Contar tudo para os outros seria um problema, mas nem de longe era o maior dilema com que Ike tinha que lidar.
Dias depois, de fato, Ike
se meteu em uma luta contra as frotas de Alfredo. Era equinócio e o
navio, rebatizado em homenagem à garota, lançou-se ao combate, mas
Ike de fato não era o mesmo. O relato deste segundo inglês repetia
os sintomas apontados pelo primeiro: a nau estava lenta, perdida,
indecisa e insegura. O diagnóstico, porém, divergia.
Ike não havia perdido a
mão, mas a cabeça.
De repente, ele tinha
alguém à bordo que se sentia no dever de proteger. Simplesmente não
conseguia atacar com a determinação de costume. Na tentativa de se
manter protegido, acabou se expondo. Depois de incontáveis vitórias,
o Maud Thyra foi derrotado. Ike sobreviveu, o que talvez tenha sido
sua maldição. Os membros da tripulação foram separados e ninguém
sabe ao certo o que aconteceu com cada um deles.
Desde então, no
equinócio, o gigante lembra destes acontecimentos e chora, não pela
derrota ou pelo navio, mas pelo que de mais importante o mar lhe
tirou.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
A história de Y.
Y. defendia a extinção das segregações baseadas em gênero. Ele era
homem, branco, não-pobre e, até onde se sabia, heterossexual, o que o
colocava em uma posição confortável na sociedade, mas um dia saiu às
ruas revelando --- não por meio de um discurso acalorado, o que seria
considerado adequado pelas mais variadas castas de nossa sociedade, mas
através de uma saia frisada --- seu amor pelo crossdress: um Ed Wood com
talento, dir-se-ia. O mundo das artes foi tomado de assalto.
Nos dias que se seguiram, jornais reportaram o fato com manchetes alarmantes acompanhadas da foto de Y. em um vestidinho tomara-que-não-caia estampado e de depoimentos do padeiro, do jornaleiro, dos vizinhos: não imaginávamos nada, sempre nos pareceu um sujeito tranquilo, sempre nos pareceu um cara normal. A resposta da parcela engajada da população ao tom conservador das matérias foi ainda mais barulhenta, o que alimentou um debate acalorado na mídia impressa e nas redes sociais.
Passado algum tempo, consolidou-se a ideia de que Y. era só um cara que gostava de roupas de seda e não queria nada apertando seu entrepernas, o que era bastante compreensível para a maioria dos homens, embora estes não o admitissem publicamente. Tudo parecia assentado até um dia, quando Y. se envolveu em um incidente ao tentar usar o banheiro feminino de um restaurante. O evento resultou no primeiro debate público de que tenho conhecimento da questão de divisão de gêneros em banheiros públicos no Brasil, de forma que mesmo o desconforto no momento (e o prolongamento do desejo de mijar) acabaram revertidos para o Bem, de certa forma.
Contudo, a experiência de Y. não parou por aí. Em algum momento aí no meio, houve a revelação de que Y. não era um heterossexual "vestido de mulher", mas sim um bissexual-em-termos --- mas, diante de todo o resto, a notícia não surpreendeu ninguém. Ocorreu que, dia desses, chamaram atenção para o fato: Y. não apenas trocou as calças por saias, num movimento reverso à Revolução Feminina, mas também passou a portar barbeado rente, cabelo longo, maquiagem. Depilava o corpo todo (in-tei-ri-nho), usava produtos de beleza, se perfumava. Pegava homens. Veio a constatação: em sua crítica aos papeis baseados no gênero, Y. acabou por criar uma fantasia de mulher que adotava todos os aspectos que a sociedade por ele criticada atribuía a ela. A personagem que ele criou se submetia às imposições estéticas criadas pela sociedade machista, era heterossexual-em-termos, usava o banheiro considerado adequado ao seu gênero etc.
Y. percebeu, então, que para alcançar seus reais intentos, precisaria se transformar em uma mulher que não usasse roupas consideradas tipicamente femininas, não se depilasse, não usasse para si mesma a flexão feminina das palavras. Deixou a barba crescer, comprou cuecas, se livrou da cera de depilar.
Mas isso não era o suficiente. Não bastava deixar de obedecer a estereótipos, era preciso subvertê-los. Como mulher moderna, Y. assinou o pay-per-view do futebol, passou a coçar o saco em público e a cuspir no chão. E não parou por aí.
Passadas algumas semanas, Y. podia ser encontrado gritando obscenidades para as mulheres que passavam na rua. Familiares afirmavam tê-lo ouvido citar posts do Testosterona no almoço de Páscoa e três testemunhas juraram que ele usou a expressão "macho alfa" em ao menos duas ocasiões. Y estava fora de controle.
À misoginia, aliou a homofobia e, por que não?, o racismo. Passava madrugadas na internet pesquisando novos comportamentos ultrajantes para colocar em prática.
Em resumo, Y. havia se transformado em um verdadeiro monstro, quando um colega antropólogo e psicanalista mencionou o fato de que ele incorria no mesmo erro do início de sua empreitada, apenas invertendo-o. Percebendo horrorizado em quê se transformara, Y. correu para sua casa, tirou às pressas o macacão de lumberjack e sentiu, pela primeira vez em meses, o toque suave de um vestido de algodão em sua pele.
Desde então, Y. nunca mais ligou para o que os outros pensavam.
Nos dias que se seguiram, jornais reportaram o fato com manchetes alarmantes acompanhadas da foto de Y. em um vestidinho tomara-que-não-caia estampado e de depoimentos do padeiro, do jornaleiro, dos vizinhos: não imaginávamos nada, sempre nos pareceu um sujeito tranquilo, sempre nos pareceu um cara normal. A resposta da parcela engajada da população ao tom conservador das matérias foi ainda mais barulhenta, o que alimentou um debate acalorado na mídia impressa e nas redes sociais.
Passado algum tempo, consolidou-se a ideia de que Y. era só um cara que gostava de roupas de seda e não queria nada apertando seu entrepernas, o que era bastante compreensível para a maioria dos homens, embora estes não o admitissem publicamente. Tudo parecia assentado até um dia, quando Y. se envolveu em um incidente ao tentar usar o banheiro feminino de um restaurante. O evento resultou no primeiro debate público de que tenho conhecimento da questão de divisão de gêneros em banheiros públicos no Brasil, de forma que mesmo o desconforto no momento (e o prolongamento do desejo de mijar) acabaram revertidos para o Bem, de certa forma.
Contudo, a experiência de Y. não parou por aí. Em algum momento aí no meio, houve a revelação de que Y. não era um heterossexual "vestido de mulher", mas sim um bissexual-em-termos --- mas, diante de todo o resto, a notícia não surpreendeu ninguém. Ocorreu que, dia desses, chamaram atenção para o fato: Y. não apenas trocou as calças por saias, num movimento reverso à Revolução Feminina, mas também passou a portar barbeado rente, cabelo longo, maquiagem. Depilava o corpo todo (in-tei-ri-nho), usava produtos de beleza, se perfumava. Pegava homens. Veio a constatação: em sua crítica aos papeis baseados no gênero, Y. acabou por criar uma fantasia de mulher que adotava todos os aspectos que a sociedade por ele criticada atribuía a ela. A personagem que ele criou se submetia às imposições estéticas criadas pela sociedade machista, era heterossexual-em-termos, usava o banheiro considerado adequado ao seu gênero etc.
Y. percebeu, então, que para alcançar seus reais intentos, precisaria se transformar em uma mulher que não usasse roupas consideradas tipicamente femininas, não se depilasse, não usasse para si mesma a flexão feminina das palavras. Deixou a barba crescer, comprou cuecas, se livrou da cera de depilar.
Mas isso não era o suficiente. Não bastava deixar de obedecer a estereótipos, era preciso subvertê-los. Como mulher moderna, Y. assinou o pay-per-view do futebol, passou a coçar o saco em público e a cuspir no chão. E não parou por aí.
Passadas algumas semanas, Y. podia ser encontrado gritando obscenidades para as mulheres que passavam na rua. Familiares afirmavam tê-lo ouvido citar posts do Testosterona no almoço de Páscoa e três testemunhas juraram que ele usou a expressão "macho alfa" em ao menos duas ocasiões. Y estava fora de controle.
À misoginia, aliou a homofobia e, por que não?, o racismo. Passava madrugadas na internet pesquisando novos comportamentos ultrajantes para colocar em prática.
Em resumo, Y. havia se transformado em um verdadeiro monstro, quando um colega antropólogo e psicanalista mencionou o fato de que ele incorria no mesmo erro do início de sua empreitada, apenas invertendo-o. Percebendo horrorizado em quê se transformara, Y. correu para sua casa, tirou às pressas o macacão de lumberjack e sentiu, pela primeira vez em meses, o toque suave de um vestido de algodão em sua pele.
Desde então, Y. nunca mais ligou para o que os outros pensavam.
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