Y. defendia a extinção das segregações baseadas em gênero. Ele era
homem, branco, não-pobre e, até onde se sabia, heterossexual, o que o
colocava em uma posição confortável na sociedade, mas um dia saiu às
ruas revelando --- não por meio de um discurso acalorado, o que seria
considerado adequado pelas mais variadas castas de nossa sociedade, mas
através de uma saia frisada --- seu amor pelo crossdress: um Ed Wood com
talento, dir-se-ia. O mundo das artes foi tomado de assalto.
Nos
dias que se seguiram, jornais reportaram o fato com manchetes alarmantes
acompanhadas da foto de Y. em um vestidinho tomara-que-não-caia
estampado e de depoimentos do padeiro, do jornaleiro, dos vizinhos: não
imaginávamos nada, sempre nos pareceu um sujeito tranquilo, sempre nos
pareceu um cara normal. A resposta da parcela engajada da população ao
tom conservador das matérias foi ainda mais barulhenta, o que alimentou
um debate acalorado na mídia impressa e nas redes sociais.
Passado
algum tempo, consolidou-se a ideia de que Y. era só um cara que gostava
de roupas de seda e não queria nada apertando seu entrepernas, o que
era bastante compreensível para a maioria dos homens, embora estes não o
admitissem publicamente. Tudo parecia assentado até um dia, quando Y.
se envolveu em um incidente ao tentar usar o banheiro feminino de um
restaurante. O evento resultou no primeiro debate público de que tenho
conhecimento da questão de divisão de gêneros em banheiros públicos
no Brasil, de forma que mesmo o desconforto no momento (e o
prolongamento do desejo de mijar) acabaram revertidos para o Bem, de
certa forma.
Contudo, a experiência de Y. não parou por aí. Em
algum momento aí no meio, houve a revelação de que Y. não era um
heterossexual "vestido de mulher", mas sim um bissexual-em-termos ---
mas, diante de todo o resto, a notícia não surpreendeu ninguém. Ocorreu
que, dia desses, chamaram atenção para o fato: Y. não apenas trocou as
calças por saias, num movimento reverso à Revolução Feminina, mas também
passou a portar barbeado rente, cabelo longo, maquiagem. Depilava o
corpo todo (in-tei-ri-nho), usava produtos de beleza, se perfumava.
Pegava homens. Veio a constatação: em sua crítica aos papeis baseados no
gênero, Y. acabou por criar uma fantasia de mulher que adotava todos os
aspectos que a sociedade por ele criticada atribuía a ela. A personagem
que ele criou se submetia às imposições estéticas criadas pela
sociedade machista, era heterossexual-em-termos, usava o banheiro
considerado adequado ao seu gênero etc.
Y. percebeu, então, que
para alcançar seus reais intentos, precisaria se transformar em uma
mulher que não usasse roupas consideradas tipicamente femininas, não se
depilasse, não usasse para si mesma a flexão feminina das palavras.
Deixou a barba crescer, comprou cuecas, se livrou da cera de depilar.
Mas
isso não era o suficiente. Não bastava deixar de obedecer a
estereótipos, era preciso subvertê-los. Como mulher moderna, Y. assinou o
pay-per-view do futebol, passou a coçar o saco em público e a cuspir no
chão. E não parou por aí.
Passadas algumas semanas, Y. podia ser
encontrado gritando obscenidades para as mulheres que passavam na rua.
Familiares afirmavam tê-lo ouvido citar posts do Testosterona no almoço
de Páscoa e três testemunhas juraram que ele usou a expressão "macho
alfa" em ao menos duas ocasiões. Y estava fora de controle.
À
misoginia, aliou a homofobia e, por que não?, o racismo. Passava
madrugadas na internet pesquisando novos comportamentos ultrajantes para
colocar em prática.
Em resumo, Y. havia se transformado em um
verdadeiro monstro, quando um colega antropólogo e psicanalista
mencionou o fato de que ele incorria no mesmo erro do início de sua
empreitada, apenas invertendo-o. Percebendo horrorizado em quê se
transformara, Y. correu para sua casa, tirou às pressas o macacão de
lumberjack e sentiu, pela primeira vez em meses, o toque suave de um
vestido de algodão em sua pele.
Desde então, Y. nunca mais ligou para o que os outros pensavam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário