segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Mar, 19 - A história do norueguês


Ike nascera mesmo na Noruega e de fato fora jovem para a Inglaterra. Também era verdade que lutava como um herói da mitologia, o corpo e a mente parecendo terem sido feitos para o embate. Era verdade até que sonhava com um barco, como era verdadeiro o relato de como, após parecer condenado, conseguiu um dos saxões no pântano. Depois, aparentemente, é que as coisas não haviam sido bem como o relatado.
De posse do navio --- que, ao contrário do que me fora dito, de acordo com esta versão ainda carecia de um nome --- o próximo passo era ter uma tripulação. Os soldados que o seguiam talvez fossem os melhores conhecedores de metal e sangue, mas era preciso ter por perto quem conhecesse as águas e os ventos para se navegar.
Assim, Ike reuniu homens.
Ele excursionou por meses através de diversas vilas de noruegueses instalados na Inglaterra, perguntando em tavernas por qualquer um que entendesse do mar. Encontrou e recrutou homens fortes com talento para manejar os remos e as velas, jovens ambiciosos dispostos a se submeter ao trabalho duro no convés em troca das promessas de ouro e navegadores experientes que conseguiam adivinhar para onde sopraria o vento. E então, havia o Velho Dick.
O ancião já havia passado em muito a idade de partir atrás de aventura, mas não houve alma em sua vila que não o apontasse como o maior marujo que já existiu. Diziam que não havia mar que o velho não desbravasse, costa que o assustasse ou inimigo que o enganasse numa batalha em alto mar. Ademais, apareceu diante de Ike com uma disposição que inviabilizava qualquer possibilidade de negativa e com um rapazola de catorze ou quinze anos --- o rosto imberbe enrolado por um pano tornava difícil precisar --- que prometia a força que faltava ao pai. O gigante riu, bateu amigavelmente no braço do menino e mandou que subissem logo à bordo.
O tempo, porém, provou que o jovem tinha pouquíssimo a oferecer no convés. Era fraco e desengonçado, incapaz de atar cordas ou erguer caixas. Além disso, tinha uma curiosidade que o afastava dos trabalhadores braçais, ocupados demais para conversar, exceto quando se sentavam à noite em roda.
Mas não é dizer, também, que os dois foram um fardo para a embarcação. O Velho Dick tinha uma força inacreditável e uma disposição incondizente com sua idade. Também parecia conhecer absolutamente todos os segredos de um navio e da arte de cruzar o mar. E quanto ao rapazola, também não gostava do ócio. Se lhe faltava o talento para o serviço pesado, lhe sobrava inteligência e audácia. Ele, portanto, preferia passar seu tempo ao lado de Ike.
E, no comando, o impúbero demonstrava jeito. Palpitava sobre rotas, enxergava passagens com a habilidade de um falcão, lia as nuvens, os pássaros e os ventos como se fossem escritos em uma língua que só ele dominasse. Se o navio de Ike era um monstro dos oceanos, capaz de derrotar qualquer adversário, o filho do Velho Dick certamente merecia crédito por isto.
Um dia, quando navegavam de volta dos mares do norte, Ike quis evitar a costa escocesa, navegando por águas profundas, mas o jovem insistiu que o tempo mudaria e que não haveria escocês no mundo que seria do que a tempestade que viria a cair. Ike defendeu seu ponto ainda por algum tempo, mas então abaixou a cabeça e concedeu e todos assistiram com assombro à tormenta que se abatia, enquanto passavam sem maiores percalços pelas águas rasas do litoral da Escócia.
Quando chegaram a terras inglesas, todos foram a um pub e Ike comprou cerveja para todos, em celebração a estarem vivos. Ele ergueu sua caneca tantas vezes que mal conseguia andar até os barris para se servir de áis bebida, mas não deixou de notar que o herói daquela noite não estava bebendo.
Após algum tempo, o filho do Velho Dick levantou-se e saiu do salão, andando sozinho em meio à escuridão. Ike bebeu o resto de sua cerveja de um trago e então o seguiu.
No meio da noite, o imberbe era reconhecível por sua silhueta fina e pequena, metade do tamanho de qualquer homem de sua idade, sentada no cais. Apesar de ser noite, mantinha os panos enrolados na cabeça. Estava em completo silêncio e olhava o mar como se fosse seu único amigo. Ike sentou-se ao seu lado.
Naquele momento, algo muito estranho aconteceu. Ike sabia que o impúbere estava chorando, embora não lhe visse as lágrimas, mas não se incomodou com isso. Ele pôs a mão sobre os ombros da criança, que estremeceu, ameaçou fugir, mas acabou ficando.
"Qual seu nome verdadeiro?", o gigante perguntou. "Menino" era o apelido oficial usado por todos, mas Ike sabia que não poderia continuar a usá-lo.
"Maud", respondeu a garota. Ela se virou para ele, chorando.
"Quer uma cerveja, Maud?"
"Dá azar ter uma mulher a bordo."
"Não é o que tem parecido. Eu sou muito mais capaz de afundar este navio, pelo visto." Ele não sabia, mas estava sendo profético. Maud riu e os dois se levantaram. Contar tudo para os outros seria um problema, mas nem de longe era o maior dilema com que Ike tinha que lidar.
Dias depois, de fato, Ike se meteu em uma luta contra as frotas de Alfredo. Era equinócio e o navio, rebatizado em homenagem à garota, lançou-se ao combate, mas Ike de fato não era o mesmo. O relato deste segundo inglês repetia os sintomas apontados pelo primeiro: a nau estava lenta, perdida, indecisa e insegura. O diagnóstico, porém, divergia.
Ike não havia perdido a mão, mas a cabeça.
De repente, ele tinha alguém à bordo que se sentia no dever de proteger. Simplesmente não conseguia atacar com a determinação de costume. Na tentativa de se manter protegido, acabou se expondo. Depois de incontáveis vitórias, o Maud Thyra foi derrotado. Ike sobreviveu, o que talvez tenha sido sua maldição. Os membros da tripulação foram separados e ninguém sabe ao certo o que aconteceu com cada um deles.
Desde então, no equinócio, o gigante lembra destes acontecimentos e chora, não pela derrota ou pelo navio, mas pelo que de mais importante o mar lhe tirou.

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