segunda-feira, 25 de junho de 2012

Mar, 5

Nos primeiros anos, rodamos o mundo juntos. Fotografamos ruínas submersas ao sul da Itália e navios naufragados na Nova Zelândia, publicamos um artigo sobre a migração de sardinhas ao sul da Índia, ajudamos uma equipe da National Geographic em uma expedição pelos mares árticos e não desgrudamos um do outro por um minuto. Já havia se tornado meu instinto apontar ansioso para qualquer espécime que eu encontrasse em um mergulho, a fim de que Anita pudesse vê-lo também, e já nem me assustava tanto ao sentir, de repente, algo roçando minhas costas, tão acostumado fiquei com os carangueijos e estrelas-do-mar que ela apanhava e punha, sorrateira, em cima de mim.
Quando a pedi em casamento, o fiz debaixo da água em uma viagem a St. Malo, porque não há lugar mais romântico que a França. Estava ajoelhado a seis metros de profundidade e a via distorcida pela lente dos óculos e pelas bolhas que minha respiração soltava. Eu lhe ofereci a aliança, mas, ao invés me oferecer o dedo anelar, ela estendeu o dedão: sinalizando que queria subir à superfície.
Lá, retiramos a máscara e eu estava morrendo de medo. Ela me olhou e me chamou de idiota.
"Eu...", balbuciei.
"Como eu vou falar que sim”, ela perguntou, “embaixo d'água?"
Dois anos depois, veio o Dani.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Mar, 4


Maria Anita era uma moçambicana de pais portugueses, pele escura e olhos miúdos, com uma tatuagem de cavalo marinho nas costas que ela quase nunca escondia. Havia passado boa parte da vida em Lisboa, onde terminara a faculdade de biologia semanas antes de voltar à África. Parecia sempre fora de lugar: muito donzela, quando nos acampamentos e muito selvagem, quando na cidade.
Era dela a voz que me chamou do jipe, mas não era ela quem guiava: Sebastião, um preto grande com um enorme sorriso dominava o volante e, como eu logo percebi, o fazia com muito pouca destreza. Os dois estavam fazendo uma pesquisa sobre a vida costeira na região, mas, se é que me disseram o assunto específico do estudo, eu já não me lembro qual era. De todo modo, estavam acampados com mais cinco pessoas a pouco mais de dois quilômetros de minha equipe e insistiram muito para que eu me juntasse a eles naquela noite, para o jantar.
Fomos todos do meu acampamento, levando um violão e duas garrafas de vinho que vínhamos guardando. Sentamos todos no chão, bebemos no gargalo e comemos ensopado direto da cumbuca. Depois, quando alguém começava a dedilhar uma música, Sebastião pediu licença, levantando-se e dizendo que precisava ligar para a esposa. Eu sorri ao ouvir aquilo, entornei um gole de vinho e fui sentar mais perto de Anita.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Mar, 3


Deitei de barriga para cima e fiquei assim. Minha respiração foi voltando ao normal aos poucos, minha cabeça foi deixando de rodar e o chão foi se fazendo sentir mais sólido sob minhas costas. Eu estava vivo.
Depois de algum tempo, minha boca ficou muito seca, por causa do sal, que também fazia meu corpo coçar e meus olhos arderem. O sol também me queimava, de forma que, relutantemente, juntei minhas forças e me levantei. Estava na praia, mas não havia mais que uns poucos metros de areia e, ao meu redor, só via pedras e o mar. À minha esquerda, havia o penhasco: um chapado de seis ou sete metros de altura que me separava do acampamento. Eu teria que dar um jeito de voltar pra lá, mas de cara percebi que escalar o morro não seria uma opção: ele era íngreme, a rocha parecia pouco confiável e eu estava em frangalhos. Nadar ao redor do rochedo também estava descartado. O mar já havia deixado bem claro que não estava para brincadeiras e eu sabia bem que não devia abusar da sorte. Restava, portanto, caminhar ao redor do morro, até encontrar um caminho por onde passar.
Foi o que fiz, ou o que comecei a fazer, já que nem bem havia andado duzentos metros quando um jipe se aproximou, espalhando poeira por toda a parte e parando ao meu lado. Chacoalhava tanto que parecia a ponto de desmontar e soltava uma fumaça escura que me deixou um pouco ressentido: me aborrecia ver um veículo a diesel circulando em meio a um paraíso selvagem como aquele. No entanto, uma voz feminina me perguntou num português cheio de sotaque se eu estava perdido e eu engoli minhas críticas àquele carro e respondi que não estava extamente perdido, mas que uma carona seria muito benvinda.
Anos depois, eu ainda me lembraria de como o mar me havia jogado naquela praia, no lugar e no momento exato para que aquilo acontecesse, e eu pensaria em tudo o que o mar me dera e em como ele havia sido sempre generoso comigo.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Mar, 2


Acho que eu sempre acreditei que morreria dentro da água. Atirado contra alguma pedra, afogado por ter me deixado agarrar por um polvo, envenenado pelas pinças peçonhentas de algum crustáceo, enfim, fosse como fosse. Por isso, quando as ondas se revoltaram e me arremessaram na costa de um penhasco durante um mergulho no litoral de Moçambique, eu fui tomado por uma serenidade fúnebre. Mesmo assim, agarrei-me como pude a um coral, sentindo minhas mãos se rasgarem. Fiz o que consegui para me segurar, mas a maré me puxava de volta, me cegava os olhos, me roubava o fôlego. Administrando minhas forças entre a necessidade de erguer a cabeça acima da água e de atar os braços à parede rochosa do penhasco, consegui como que por milagre me firmar entre duas pedras. Vi que a água ao meu redor estava vermelha de sangue e eu sentia vagamente alguma dor nos membros arranhados, mas o frio e a adrenalina me anestesiavam. Respirei, procurei me apoiar melhor e me ergui.
As ondas ainda batiam com força, de modo que fiquei por algum tempo parado, concentrado apenas em não ser atirado novamente contra as pedras. Meus braços ardiam, meus olhos ardiam, minha boca estava cheia de água e sal. De repente, senti vontade de gritar. Eu estava vivo.