Naquele
dia, no corredor da faculdade de Biologia, eu acreditei que Sílvia
pudesse ter visto algo de maravilhoso, mas sabia que era improvável
que a Ilha fosse tão inacreditável quanto ela pretendia fazer
parecer. A superfície dos oceanos já foi bem explorada e há algum
consenso no sentido de que os mistérios ainda inexplicados acerca do
mar se concentram em suas profundezas, de modo que soava improvável
que uma bióloga recém formada pudesse ter encontrado uma ilha com
as características descritas por ela e que nunca tivesse sido alvo de
estudos nos campos da geopolítica, oceanografia e --- porque, e era
isto o que a levara a falar comigo, haveriam também animais de
espécies incríveis, além da estranha combinação de culturas ---
biólogos marinhos. No entanto, já não aguentava a inação das
aulas teóricas e precisava de algo que me entretivesse enquanto Dani
não voltava. Assim, considerei que seria fácil me afastar da
faculdade por algumas semanas, se o fizesse em virtude de um estudo
acadêmico, respondi positivamente à proposta de Sílvia e parti com
ela de volta para o mar.
segunda-feira, 30 de julho de 2012
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Mar, 9
Sentada
na madeira do pequeno cais, enrolada em todos os panos de sua saia, a
portuguesa parecia a própria imagem da tristeza. Foi a primeira
pessoa que vi, quando a lancha contornou a encosta sul da ilha e
desligou o motor, deixando-se deslizar preguiçosa até a praia. Uma semana já havia se passado desde aquele dia e a mulher parecia não ter se
movido desde então.
Sílvia
me explicou que chegara à ilha por acaso, enquanto acompanhava um
grupo de golfinhos de focinho de garrafa. A princípio, chegou a
pensar que o lugar não era nem mesmo habitado, até que encontrou
aquela mesma praia onde,
dias antes, descêramos da lancha.
Lá, surpreendeu-se ao encontrar um povoado com não menos que cinco mil pessoas. Havia
casas de madeiras construídas sobre a areia da praia, casas de pedra
nas encostas, casas de alvenaria ao redor da ruela principal e casas
improvisadas com a lata dos cascos de barcos.
As
pessoas que habitavam a ilha não eram menos variadas. Como a mulher
triste do cais, havia outras tantas portuguesas, mas também havia
holandeses, espanhois, ingleses, noruegueses, árabes (iranianos,
talvez?). Era uma babilônia em que se falavam todas as línguas, se
vestiam todas as roupas, se serviam todas as comidas.
Era
uma vila que, sob qualquer ótica, não fazia sentido.
sábado, 21 de julho de 2012
Mar, 8
Àquela altura, todas as pessoas que me importavam estavam distantes e
de alguma forma haviam trocado a minha companhia pela do oceano. Eu comecei a
sonhar que estava com Anita nos mares da Tailândia ou que fazia parte de
aventuras fantásticas em Atlântida ou na companhia de Ishmael ou do Capitão
Nemo.
Meu único conforto eram as aulas na universidade, mas o exercício
teórico me satisfazia cada vez menos. Entre o momento em que as aulas pararam,
no meio de dezembro e o começo do ano letivo seguinte, no começo de março, eu
não passei mais que cinco dias em casa: viajei quase todo o tempo, de Natal à
Ilha do Mel, com paradas em
João Pessoa , Ilhéus, Morro de São Paulo, Abrolhos, Vitória,
Cabo Frio, Paraty, Ubatuba (chovia),
Ilha Bela e na Barra do Una.
Quando voltei à universidade, fui interpelado pela Sílvia, uma ex-aluna
que, apressada, me puxou o braço num corredor e perguntou se poderíamos
conversar.
quinta-feira, 19 de julho de 2012
Mar, 7
Aos
dezessete anos, Dani terminou o colegial e eu lhe dei um ano de
folga, para viajar. Ele podia ter ido aos Estados Unidos ou o Canadá,
como a maioria de seus colegas, mas escolheu ir para o Havaí. Lá,
ele faria bicos em restaurantes e bares, mas, essencialmente,
surfaria. Ele me perguntou cheio de timidez se eu concordava com
isso, já quase num tom de desculpas. Minha resposta foi um relato da
ocasião em que eu e a mãe dele havíamos passado três meses em
Honolulu estudando a importância das tartarugas para a cultura
havaiana. Assim, meses depois, ele partiu e eu fiquei sozinho. Era a
primeira vez, desde aquela noite num acampamento em Moçambique, que
eu não tinha ninguém.
Anita
não havia desaparecido; ela aparecia sempre que estava na cidade
para ver Dani e relatar suas últimas viagens. Quando isso acontecia,
saíamos os três para jantar, tomávamos um vinho e ela quase sempre
passava a noite comigo, pelos velhos tempos. Eu não era inocente a
ponto de pensar que ela não tinha seus outros homens, mas em seus
relatos ela sempre tinha a cortesia de não os mencionar.
Mas
naquela noite, quando me deitei e pensei que o Daniel estava em um
avião indo para o outro lado do mundo, eu me senti completa e
irremediavelmente sozinho. O mar dá, eu pensei antes de dormir, e o
mar tira.
terça-feira, 17 de julho de 2012
Mar, 6
De
repente, as coisas ficaram complicadas. O Daniel precisava ir para a
escola, precisava de uma casa definitiva e, acima de tudo, precisava
dos dois pais vivos. Uma criança simplesmente não combinava com
nosso estilo de vida. Ao mesmo tempo, eu também me apavorei. Agora,
se o mar viesse me cobrar o que lhe devia, eu teria muito a perder.
Então, chamei Anita para uma conversa e expliquei que, a partir de
então, as coisas tinham que mudar. A gente precisava se assentar.
Conseguir
um emprego na universidade não foi difícil. Tínhamos toneladas de
material publicado, indicações de biólogos do mundo todo e
conhecimento de sobra sobre a matéria. Dar aulas também foi mais
fácil do que eu havia previsto, já que os alunos disputavam a tapas
as vagas em minhas aulas e prestavam atenção a cada detalhe do que
eu dizia, perguntando sempre por detalhes de minhas viagens e das
coisas que eu havia visto. Não havia a emoção de explorar o
oceano, mas era um trabalho gratificante e eu era muito bom nele.
Para
Anita, porém, não foi tão fácil. Ela tinha igual prestígio entre
os alunos, mas não compartilhava do meu entusiasmo com a vida
acadêmica. Aborrecia-se com facilidade, perdia a paciência com os
alunos mais lentos e, ao chegar em casa, demonstrava um cansaço de
dar pena. Era carinhosa e preocupada comigo e com o Dani, mas não
era difícil notar que aquela vida não servia pra ela. Não levou
muito para eu perceber que acabaria por perdê-la.
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