sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Sobre as cataratas

Sábado passado a gente foi ao lado brasileiro das cataratas e eu escrevi um relato sobre o passeio de bote e tudo o mais, mas a intermitência da internet da Claro não me deixou postar e agora acho que já não faria sentido. De todo modo, cinco dias depois, finalmente viemos para o lado argentino, completando nossa visita ao Iguaçu. Eu diria que os passeios se complementam e que ambos são obrigatórios, mas é impossível não comparar.
Entre outras diferenças, como o trenzinho argentino,  muito mais charmoso que os ônibus elétricos brasileiros ("No Brasil, a prioridade é sempre o transporte rodoviário", observou o sujeito no banco da frente), está o tamanho do parque: o de Puerto Iguazu é bem maior que o de Foz e inclui três opções de trilha.
A primeira é o Paseo Superior, certamente menos interessante que a trilha brasileira. As cachoeiras são incríveis e é fantástico vê-las de cima, mas a visão panorâmica que se tem do Brasil é mais impressionante. A segunda trilha, o Circuito Inferior, nos levou para mais perto, e é preciso um pouco de nacionalismo para dizer que esta e a brasileira se equivalem.
E então, tem a Garganta del Diablo.
Se eu tivesse postado meu primeiro relato, vocês saberiam que eu achei que as quedas d'água eram um negócio imensurável, capaz de colocar qualquer coisa em perspectiva. Também saberiam que a coisa que mais me incomodou no parque brasileiro foi a completa ausência de dinossauros (o que é um defeito da maioria dos lugares, na verdade). De um certo modo, foi bom eu não ter conseguido postar ele no dia certo.
Porque a Garganta do Diabo é um tapa na cara. 
Ela não coloca as coisas em perspectiva, porque você não poderia medir nada nessa escala. Ela não é nem exatamente bonita, porque a nuvem de água que se levanta faz com que seja difícil ver propriamente qualquer coisa. É um passeio em que se anda muito e, ao final, não se sabe bem o que fazer. Mas é um passeio necessário, nem que seja só para se ter a certeza de que algo dessa magnitude realmente existe no mundo.
Porque as cataratas parecem algo absurdo, impossível, anacrônico. Algo que poderia existir no início de tudo, quando a Terra era nova, mas não hoje. Como disse a Lari: "Aqui é capaz que tenha mesmo dinossauros". 
Deve ter.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Hoje, talvez pela primeira vez na vida, eu li, sim, provavelmente pela primeira vez na vida, eu li o obituário no jornal. 
Tinham uns poucos nomes, menos de dez, dois deles sendo enterrados no mesmo cemitério. Tinha uma mulher de oitenta e nove anos e um cara de cinquenta e nove. Um homem que deixou irmã e sobrinhos, uma senhora viúva que deixou bisnetos. A de oitenta e nove só deixou filhos, nenhum neto. Um outro tinha o comentário: amado e incomparável. 
Eu nunca, provavelmente nunca tinha lido um obituário. Eu sabia que existiam obituários, obviamente, porque existem registros de que esse tipo de coisa já existiu um dia (obituários, portanto), mas assim, ao vivo, foi a primeira vez, então eu não sabia como seria a minha reação. Pra falar a verdade, eu nem achava que eu teria uma reação. 
Mas eu tive. 
Eu fiquei triste. Não muito triste, não triste a ponto de chorar, mas suficientemente triste pra perceber que eu estava triste. Suficientemente triste para que essa tristeza se sobressaísse em relação à tristeza cotidiana, que é quase indistinta da alegria cotidiana, essa, por sua vez, uma coisa já meio indefinível. 
 Talvez eu tenha ficado um pouco triste por aquelas pessoas. Talvez especificamente pelo sujeito de cinquenta e nove anos, nem sessenta, nem nada. Ou pela octagenária sem netos, que eu imaginei decepcionada com os filhos, aqueles párias, que não legaram a ninguém a nossa miséria. Eu posso ainda, vai saber, ter ficado triste pelo outro, comentado, que foi amado e incomparável, mas agora vai à vala como todo mundo. 
Ou então eu fiquei triste pelo obituário, ele mesmo moribundo; pelo jornal de sina incerta, tendo que se reinventar como pode entre outras tecnologias, pra adiar o inevitável. 
Ou vai ver que era uma tristeza de mim, mesmo, finito como os mortos que eu lia no cadáver de um obituário, no cadáver de um jornal, no cadáver da minha sala de estar.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Brigadeiro


Estava no ponto da avenida Luciano Gualberto, esperando pelo ônibus e por uma oportunidade de tirar meus sapatos e/ou o cinto, que ambos me apertavam. A tripla espera me desviava a atenção, mas quando o casal (eu não sei se eram propriamente um casal, porque podiam ser só duas pessoas andando juntas; gosto de pensar que eram um casal) quando o casal, eu dizia, chegou oferecendo brigadeiros, eu percebi que também estava com fome.
Um dos vendedores de brigadeiro me estendeu a tigelinha, pedindo dois reais em troca. Achei caro, mas chequei rapidamente minha carteira: eu tinha dois reais, eu tinha fome.
“É um brigadeiro caseiro, de panela”, ele disse. Não sei se existe outro tipo de brigadeiro. Talvez ele também tenha pensado nisso, porque complementou, piscando um olho: “É bem puxadinho”.
Aquilo foi um trigger.
Não foi exatamente desconfiança, mas eu tinha que pensar nas minhas circunstâncias. É importante, isso aí. CI-RC-UN-ST-ÂN-CI-AS. Ei-las: ponto de ônibus, vinte e duas horas da noite. Casal desconhecido vendendo brigadeiro.
Lembre-se do que seus pais diziam. Do que os desenhos animados diziam. De João e Maria e a casa da bruxa. Por Deus: lembre-se da menina no primeiro ano SanFran, xingando a Deus e ao mundo no grupo de e-mails da classe depois de ter comido cinco fatias de brownie batizado no churrasco da turma.
E afinal, o que foi aquela piscadela acompanhando a descrição do brigadeiro? Bem puxadinho. Hmmm.
Imediatamente, pensei nas toxinas invadindo meu corpo, entrando no meu sangue, chegando ao meu cérebro. Pensei que se mordesse aquele brigadeiro, minha cabeça se abriria como um ovo do qual sai uma ave. E então a ave voaria e seria eu, voando, e o voo seria descontrolado como nos sonhos recorrentes que tenho, em que dirijo um carro sem freios e com guidão desregulado. Lutando contra o vento, eu esbarraria nas pessoas do ponto, no próprio ponto, nas árvores ao redor. Esbarraria também no poste de luz, mas nele conseguiria um impulso último, que me arremessaria para o céu aberto da noite paulistana. E então eu planaria. De lá de cima, veria as pessoas no ponto, ignorantes do que se passava. Veria o prédio da Letras e a biblioteca Brasiliana, em frente, e então logo adiante o CRUSP, o CEPE, as avenidas que levam até a cidade. Se o vento me levasse para o sul, eu veria o prédio onde trabalho, e ele estaria quase invisível, à distância, com a maioria das janelas apagadas. Eu talvez pensasse nas pessoas que mantinham as outras acesas, mas apenas muito rapidamente, pois meu voo descontrolado já me levaria para longe dali, para cima do parque, para o momumento às Bandeiras, uma estátua bonita de um episódio triste. De lá, eu talvez seguisse para casa, mas não poderia pousar, o vento me impedindo --- e além disso eu logo imaginaria, sobre a cobertura, caçadores armados de bestas e espingardas, apontando diretamente para mim. Eu saberia que nunca mais poderia voltar para lá, que não haveria segurança, e então eu bateria as asas com força, mas elas já não seriam as asas de um pássaro. Nesse momento, eu seria um avião monomotor movido por um combustível desconhecido feito de casca de eucalipto e urina de elefante. Minha hélice rodaria com potência incomparável para os aviões movidos a petróleo, mas minha fusilagem seria fraca demais para aguentar a viagem. Conforme eu sobrevoasse o interior de São Paulo, e depois o Mato Grosso, e então a Bolívia, pedaços cada vez menores de metal se desprenderiam de mim, como um quebra-cabeças ao contrário. Parafusos, pedaços de lataria, pequenas peças de chumbo (de símbolo Pb e 82 prótons) cairiam sobre o solo acelerados por uma gravidade dez vezes superior àquela que normalmente se observa no terceiro planeta do sistema solar e penetrariam profundas no chão de terra. E de cada um dos buraquinhos formados pela queda dos meus pedaços, nasceria uma árvore.
Eu pensei nisso tudo enquanto o sujeito pegava o dinheiro da minha mão, meio sem jeito, e trocava pelo doce.
“Brigado”, falou, e eu respondi baixinho, pra ninguém ouvir:
“Brigadeiro.”

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Tempo Perdido


Ocorre que, na vida, algumas coisas são simplesmente imperdoáveis. Assim, fazer um trabalho ruim é muitas vezes mais fácil do que fazer um trabalho bem feito, em que se atentou aos detalhes e em que se tentou prever as mais variantes variáveis etc. No entanto, fazer um café ruim dá o mesmo trabalho que fazer um café bom.
Por isso é que sempre fiz questão de eu mesmo cuidar da moagem dos grãos, da torra, da passagem da água, ciente e cioso de que não haveria desculpas para que o resultado final fosse demasiado aguado, demasiado amargo. Lembro-me de um comentário que me fizeram certa vez, retificando a tradição popular de que a vida seria curta demais para café ruim: a vida é, na verdade, extremamente longa, a coisa mais longa que existe, aliás, e é por isso mesmo que não devemos tolerá-la sem um bom café.

No tempo que se segue, enquanto espero o gotejar desapressado do líquido que passa pelo filtro e posteriormente enquanto dou goles pequenos e medrosos (porque tenho medo do calor, mas também porque tenho medo do fracasso) na bebida recém preparada, me passam pela cabeça os pensamentos mais variados e eu não me ocupo tanto em controlá-los quanto em formular as relações que os trouxeram. A lembrança de meus primos naquele dia, na piscina, talvez tenha derivado de uma associação entre a temperatura do líquido e o calor tranquilo do sol que nos embalava despercebido enquanto corríamos, todos crianças, pela grama. Esquentávamo-nos subindo nas jabuticabeiras e nos perseguindo, para depois jogarmo-nos na água --- e a última coisa que eu via, ainda no ar, eram meus primos gritando de alegria, e então era o frio anestesiando todos os meus poros, abafando todos os meus sentidos, e então só me sobra o gosto desse primeiro gole de café.
Quando abro os olhos, nada mais está lá: apenas a mesa da cozinha, a luz que entra pela janela. Puxo uma cadeira e só então me sento. A xícara exala um cheiro que me lembra da terra e das tardes com minha avó. Entrávamos ainda molhados pela porta grande da sala, ainda gritando e correndo, às vezes caindo, e minha avó estava na cozinha com sua xícara e não ligava para a molhaceira que fazíamos, não ligava para como a ignorávamos quando ela pedia que tomássemos cuidado para não escorregar, e então ela esquentava leite na panela e fazia com toddy pra gente, e às vezes tinha coscorão, também. Então, sentávamos pingando água nas cadeiras de madeira da cozinha, as almofadas levantadas para não molhar, e ficávamos vendo os insetos nas redes da janela enquanto minha avó tomava o café que para mim simbolizava a idade adulta, o amargo contrastando com o leite doce de chocolate que bebíamos.
Quando o sol começava a descer, nuvens infinitas de siriris voavam como que brotando do chão e seguiam algum instinto absurdo, atrás de novos lugares para infestar. A gente começava a andar com mais cuidado, porque no escuro era mais fácil pisar nas mangas caídas do chão e completamente tomadas pelas abelhas, as vespas e os marimbondos. E então o sol mergulhava no horizonte com a vermelhidão de um tiê e enchia o céu de tons de laranja como em um quadro expressionista e depois vinha o preto.
Giro o fundo do café na xícara e de repente me sinto completamente sozinho. Pela janela, vejo alguns prédios indistintos e o céu cinzento de São Paulo, que me traz uma última memória das estrelas da noite no sítio. Termino o café num último gole, levanto, deixo a xícara na pia e me deixo sentir por mais algum tempo o gosto bom que sobrevive na minha boca.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

B


Uma coisa notável, porque eu notei e suponho que muitos de vocês, também, se bem que em outras ocasiões, ou se não notaram notarão agora, espero, uma coisa notável, eu dizia, é o quanto elementos aparentemente pequenos do nosso cotidiano são importantes para a manutenção do nosso estado de satisfação --- e o quanto, mesmo que tentemos ser tolerantes, e já adianto que o sou, mesmo que tentemos ser tolerantes, ligeiras mudanças nesses elementos (os tais pequenos, aparentemente, e cotidianos) são suficientes para gerar todo tipo de transtorno.
Vocês talvez tenham percebido --- eu posso ter mencionado uma ou outra vez, mas também isso não importa muito, perceberão agora, se for o caso --- que eu costumo andar de ônibus. De um modo geral, é algo de que eu gosto, então eu pego o ônibus A na Paulista e o horário permite que ele vá rápido e pare em poucos pontos (o motorista também não perde tempo com bobagem e não deixa que faróis e pedestres atrasem minha volta da faculdade) e me deixa muito rapidamente em casa --- rapidamente para um ônibus, é claro, mas acho que é suficientemente rápido para que se possa dizer simplesmente: rapidamente.
Em uns poucos, menos de dez, talvez, uns poucos, de todo modo, minutos, portanto, o ônibus A percorre a avenida inteira, uma proeza, acho eu, e então o motorista vira à direita sem reduzir a velocidade um pouco depois da Paraíso e se embrenha em várias curvas até entrar na Rodrigues Alves e disparar rumo à Ana Rosa, cuja parada é simplesmente a mais longa da viagem, se bem que não há nada de simples nisso, porque significa que entram várias pessoas lá e surge o aperto de ter que dividir o banco, ter que dar lugar pra alguém etc. De lá, lá sendo a parada da Ana Rosa, claro está, ele desce em disparada e para na praça quatro quarteirões acima de onde eu moro, então eu pulo do ônibus quase sempre sozinho, ou então com uma ou duas pessoas que vão sempre para o outro lado, o que me deixa caminhar sozinho essas quatro quadras. E é muito bom andar, porque as ruas são muito vazias e silenciosas, não tem comércio nenhum e até o restaurante coreano está fechado, então eu consigo estar completamente comigo mesmo, pensar no que eu quiser, planejar alguma coisa. Então, é quase com decepção, ou seria com decepção se tudo isso não acontecesse tão tarde da noite e eu não tivesse que acordar cedo no dia seguinte, que eu chego em casa.
Enfim, são essas as coisas que eu faço todo dia, é claro que resumidas e por que não dizer generalizadas, passado imperfeito e tudo o mais, mas suficientes, acho, para que vocês entendam o que eu quero dizer. E o que eu quero dizer é que as menores mudanças nessas coisinhas todas, tão resumíveis e generalizáveis, podem nos deixar em completos apuros.
Vejam vocês, então, que um belo dia, o dia foi ontem, mesmo, mas vai saber quando vocês vão ler isso, então digo logo assim: um belo dia, que pode ser qualquer um, inclusive ontem, exceto que ontem o dia não foi assim tão belo (como se verá), aconteceu algo de terrível.
Pois muito bem, o que houve é que já algumas vezes eu me peguei na Paulista esperando pelo ônibus A, e ele demorando e então passavam os ônibus(es) B e C, ambos exatamente iguais entre si, verdes e tudo o mais, e diferentes do ônibus A, que é laranja e muito mais bonito. Diferentes mas com a similaridade fundamental de descerem até muito perto de casa, embora por outro caminho, a similaridade pragmática de me levarem da Paulista pra casa. Então, um belo dia (ontem), eu estava na Paulista e o A demorava e eu decidi, não assim tão repentinamente como essa frase pode fazer parecer, porque era algo que já me havia passado pela cabeça, enfim, eu decidi que pegaria quem viesse primeiro, A, B ou C, indistintamente. Pois muito bem, evidentemente não foi A: foi B (ou C; não defini muito bem qual seria qual). Fiquemos com B, que vem antes e, ademais, foi minha primeira opção. Foi B. E eu sou um cara de palavra, ou pelo menos fui nesse belo dia de ontem, e entrei no ônibus B sem olhar para trás.
Mal entrei, me arrependi.
O ônibus saiu como um búfalo descontrolado, uma força da natureza que partisse em direção a uma cidade sem que os cidadãos pudessem fazer nada: saiu a muitos quilômetros por hora, quase me derrubando no chão antes mesmo da catraca, e ainda por cima mudando de faixas e desviando de quem estivesse no caminho sem consideração alguma pelos passageiros. Sentei como pude, agarrei os braços do assento e me esqueci até de ler, preocupado apenas em chegar vivo. O ônibus era tão bruto, na verdade, ou por que não dizer?, tão vil, que seguiu vazio, vazio, sem nenhuma parada em que se enchesse de gente e utilidade como acontecia com o A.
E foi assim, vazio, que seguiu até a Vila Mariana e virou não na Rodrigues Alves, mas na Lins, e de lá foi embora sacudindo horrivelmente, atemorizando quem cogitasse atravessar a rua e me jogando pra lá e pra cá.
Depois de algum tempo, eu levantei e tive que olhar pela janela até determinar o ponto mais adequado para descer, porque não conhecia bem o percurso, que além de tudo me deixaria algumas quadras para baixo de casa, e não para cima, como acontece em A, e então eu temia passar do lugar e me perder na imensidão sombria do Ipiranga. Escolhi um ponto que me pareceu razoável (e era, mesmo) e pulei. Eu e mais ninguém.
Achei que o mundo havia se perdido em alguma calamidade temporal: não tinha mais ninguém na rua, nenhum movimento, nada. Todas as lojas estavam fechadas e de luzes apagadas. Naquele silêncio, minha cabeça se enchia de pensamentos, todos eles terríveis, presságios horríveis e projeções pavorosas do que me poderia acontecer ali, sozinho, naquela rua abandonada por Deus. Parecia um cenário de um filme de suspense.
Andei e ouvi o barulho dos meus passos e achei que aquele lugar era horrível e mal e que eu dificilmente sobreviveria ali por muito tempo. Andei mais rápido. Contabilizei meu patrimônio: um livro, um tablet, um celular. Meus sapatos quase novos. Minha vida, minha virgindade anal. Todo ele em risco, pensei. Andei mais rápido.
As ruas abaixo de casa são escuras e íngrimes. Andei sozinho por umas quatro ou cinco quadras, virei na rua de casa, toquei involuntariamente no meu bolso, checando o celular. Eu ainda contava os passos quando atravessei a rua, estendi a mão para o portão. Contava os segundos enquanto esperava que o porteiro destravasse a porta. Finalmente, com imenso alívio, e certamente por um golpe de sorte, cheguei em casa inteiro e são e, por que não dizer?, salvo.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O amor nos tempos de cólera

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até você me amar

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Em outra realidade, seria assim


Eu estava com tanto sono que, sem me dar conta, desliguei o despertador e dormi de novo. Acordei às dez pras oito, irremediavelmente atrasado. Podia me trocar correndo (tomara banho logo antes de dormir, graças a Deus, então podia economizar esse tempo) e comer qualquer coisa enquanto andava até o ponto de ônibus, mas, se bem me conhecia, nunca chegaria ao banco antes das nove. Merda.
Saí de casa de roupa social e tênis, comendo uma banana meio madura demais. Quando cheguei à avenida, vi o meu ônibus saindo do ponto, do outro lado da rua. Depois, ainda teve um pouco de trânsito na subida até o metrô. Cheguei na estação do trabalho às nove e vinte.
Um pouco antes de entrar no prédio, quando já achava que tinha conseguido me safar, vi o flash. O repórter devia trabalhar pra algum tabloide, então veio com as perguntas de sempre: "De tênis, Gabriel? A essa hora?  E essas olheiras? Ontem teve balada?"
Não tive tempo de responder, porque os seguranças, sempre tempestivos, afastaram o sujeito. "A coletiva é às onze", falou um deles. "Você pode perguntar lá."

***

Na homepage da UOL, uma manchete anunciava a provável saída de uma das nossas advogadas para o Santander. A matéria dizia que os detalhes estavam todos acertados, mas que o contrato só seria assinado depois do término de uma operação complexa em que estávamos trabalhando, a torcida podia ficar tranqüila quanto a isto. Um comentário xingava todos os advogados, indiscriminadamente, de mercenários e dizia que duvidava que fossem repor a perda à altura. Outro comentarista dizia que era assim mesmo, que a janela do meio do ano era terrível e que devíamos agradecer por a diretoria ter mantido a maior parte do elenco.
Enquanto isso, na minha frente, a tal advogada jurava de pé junto que não tinha nada resolvido quanto à sua saída, e nosso superintendente insistia para que trabalhássemos normalmente. "Esse Neto só fala bobagem, gente!", dizia, tranqüilizador. "Todo dia ele anuncia três ou quatro transferências..."
Para garantir um pouco mais de foco, minha gerente decidiu fazer uma reunião secreta, isto é: sem a presença da imprensa. Para os repórteres frustrados, repetiu o discurso dos seguranças: "Mais tarde tem coletiva. Vocês ficam sabendo dos detalhes lá."

***

Eu odiava coletivas.
A conversa sobre a venda do passe da minha colega durou para sempre. Discussões sobre cifras, datas, detalhes do contrato de trabalho. Me parecia incrível que os telespectadores pudessem se interessar por qualquer coisa parecida. "Eu não decidi nada", a menina dizia, em vão. "Meu empresário recebeu algumas propostas, mas estou feliz aqui. Tenho que pensar na minha carreira." Os repórteres a ignoravam solenemente e seguiam perguntando sobre o acerto com os espanhóis.
Finalmente esgotado o assunto, um repórter perguntou se estávamos prontos para o clássico daquela tarde: um contrato de cessão fiduciária de direitos creditórios. Tomei o microfone e falei que faríamos como minha gerente ("a professô", no jargão jurídico) tinha orientado, que havíamos treinado cláusulas de excussão extrajudicial a semana toda e que eu estava confiante. Diplomático, emendei: "Mas clássico é clássico e vice e versa."

***

Almoçamos no bandeijão para evitar os tietes na rua. Pés de frango, ricos em colágeno, mantém as articulações dos dedos firmes, propiciando a digitação perfeita; uma massa leve garante a energia para aturar horas de reunião sem o inconveniente do peso no estômago que uma carne traria; a limonada ou o suco de acerola garantem a vitamina C que previne resfriados que podem atrapalhar nosso desempenho; de sobremesa, delícia de abacaxi, porque, apesar do nome suspeito, é muito bom.

***

O contrato de cessão teve transmissão ao vivo para todo o Brasil. Uma câmera filmava a tela do computador, outra flagrava cada movimento dos meus dedos. Uma terceira câmera, fixa em meu rosto, era equipada com sensores especiais que calculavam quantas vezes eu desviava os olhos para a janela. "Alt+tab de novo", reclamou um comentarista quando eu quis checar a tirinha nova do xkcd.
"O Gabriel não está se encontrando no jogo, hoje", concordou o narrador, antes de seguir elencando estatísticas de acesso à internet, velocidade de digitação e piadinhas inoportunas.
Decidi levantar, tomar um café e passar no banheiro, o que me fez deixar a mesa por alguns minutos. Durante esse tempo, a câmera transmitiu incessantemente meu desktop inativo, substituindo meu fundo de tela (uma imagem promocional do programa de incentivo ao ciclismo do banco) por animações tridimensionais envolvendo a marca dos patrocinadores do canal de tv. 
O narrador se empolgou quando eu voltei e, antes de começar a digitar, estralei teatralmente os dedos.

***

No fim da tarde, estava encerrando umas ultimas pendências quando piscou na minha tela uma janela do programa de chat corporativo. Aproveitei que as câmeras estavam focadas em outro lugar (um advogado estava fazendo uma extensa busca de jurisprudência havia horas) para ler a mensagem, que presumia pessoal.
"Sabe essa história dos espanhóis?" perguntava a advogada objeto dos boatos.
"Sei, um saco, né?"
"É", ela confirmou, inserindo um emoticom pensativo. "Só que eu vou pra lá, mesmo..."
Manifestei minha incredulidade através de uma carinha composta por duas letras o separadas por diversos "sublinhados".
"Eu sei que não faz muito sentido, que é um retrocesso... Mas desde pequenininha eu sonhava em ir pra lá!", justificou. "Eu cresci vendo aquele time do Santander dos anos 90 jogando..."
Realmente, havia sido um grande time. Entendi que não adiantaria contrargumentar, então optei por perguntar se haveria algum evento de despedida ou coisa do tipo. Disse que sentiria a falta dela, o que provavelmente era verdade.
Pelo menos eu poderia chegar tarde, por uns dias, pois os tabloides teriam mais com que se preocupar.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Carona


1.

No dia 18 de maio, então no terceiro dia das minhas férias, postei no Facebook a informação de que estávamos a 80km do Itaú mais próximo. Na ocasião, estávamos em Cumuruxatiba e a agência em questão era a de Teixeira de Freitas.
Cinco pessoas “curtiram” a atualização de status, certamente interpretando-a corretamente como uma referência à distância que me separava de qualquer lembrança do meu trabalho. Num campo menos metafórico, porém, estar a 80km do Itaú significava não poder sacar dinheiro sem viajar 160km, em uma região em que praticamente nenhum estabelecimento aceitava cartão. A situação se agravou quando fomos para Corumbau (mais 60km, em estrada de terra) e, posteriormente, a Caraíva (mais uma meia hora de bugue e uma travessia de canoa).
Nosso plano era queimar um dia pegando um ônibus para Arraial d'Ajuda (saindo às 06:20, isso mesmo, às 06:20) para sacar dinheiro (e comer um picolé), mas felizmente compartilhamos essa ideia ingrata com a dona da pousada em que estávamos (a Pousada Lagoa --- aliás recomendadíssima) e ela propôs algo melhor: ela iria para Porto Seguro na sexta e voltaria no sábado; poderíamos depositar o valor que quiséssemos na conta dela e ela traria em dinheiro de lá. Parecia pouco usual, mas resolvia nosso problema, então fizemos.
Só que no domingo, quando íamos embora, a internet havia caído e a máquina do cartão de crédito não funcionava. A dona da pousada sabia que tínhamos dinheiro o bastante para pagar o que devíamos, visto que ela havia pessoalmente providenciado o saque, e sabia também que se o déssemos em pagamento, ficaríamos sem nada para os dias seguintes, voltando ao dilema anterior. Então, ela propôs que fôssemos embora sem pagar e depositássemos o valor depois, quando tivéssemos internet. “Mas a gente só vai voltar para São Paulo no fim da próxima semana”, protestamos, advogando contra nossa causa. “Não temos como garantir que teremos internet antes disso!” Ela disse que tudo bem, que pagássemos quando desse. E fomos.
O mesmo se repetiu na pousada em que dormimos na noite seguinte, em Corumbau, visto que a queda da internet aparentemente afetou a região toda. No entanto, pularei o relato para uns três dias depois, em Itaúnas, quando eu entrei em uma sorveteria (a sorveteria do Saulo, aquela com o sorvete gigante na frente --- aliás, recomendadíssima) disposto a pagar com uma nota de R$100 por um picolé de milho verde que custava R$1. Insurpreendentemente, o próprio Saulo disse que não teria como trocar o dinheiro. Quando eu fiz menção de sair, porém, ele me impediu: “Aqui, ninguém passa vontade. Leva o picolé e paga depois.”
Em comparação com todo o nosso consumo na pousada em Caraíva e com o pernoite em Corumbau, o fiado de um picolé de R$1 provavelmente parece pouco impressionante, mas as três histórias me alegraram em igual intensidade, e a confiança imotivada que todo mundo demonstrou por mim ao longo da viagem certamente ficará entre os pontos que mais me agradaram nessas férias.


2.

De Itaúnas, partimos para Belo Horizonte. Passamos o dia inteiro na estrada, demos dinheiro para dois grupos de colegiais que faziam pedágio no meio da BR (provando que Vanessão estava errada) e nos desculpamos com os dois grupos seguintes, por termos esgotado nossos trocados. Em um determinado momento, acho que uns duzentos quilometros Minas adentro, certamente a mais de 80km de qualquer coisa, Itaú ou não, topamos com uma mulher pedindo carona.
Era uma cena um pouco inusitada, a moça cheia de malas em uma divisão da estrada, longe de qualquer coisa. Como ela estava num ponto em que a estrada se dividia em três divisões possíveis, parada bem ali no meio, dava a impressão de que iria para qualquer lado que fosse.
Não parei.
Existem muitos motivos, normalmente ligados à segurança, para não dar carona a alguém na estrada. De algum modo, porém, eu não acho que eu tenha me sentido realmente ameaçado por uma mulher cheia de malas em um rincão perdido entre Minas e o Espírito Santo.
(Poucos metros depois, um outro sujeito fez menção de pedir carona, mas esse parecia não ter decidido se queria mesmo ir para algum lugar ou se estava bem, ali. Fiquemos na mulher.)
Apesar de tudo, ainda é possível racionalizar. Ela poderia ter uma arma com ela. Com aquele tanto de bagagem, ela poderia ter um arsenal --- se bobear, ela podia até ter algum capanga escondido na mala maior. Talvez (e a gente vive lendo histórias assim) ela fosse parte de uma quadrilha que, escondida ali perto, confiava na aparência inocente de uma mulher cheia de malas para assaltar os motoristas desavisados (ainda que essa estratégia pareça fraca, considerando quão poucos carros devem passar por aquela encruzilhada). Diacho, ela estava numa encruzilhada: vai que era o próprio coisa-ruim, em carne, osso e malvadeza?
Tudo isso é perfeitamente possível, provável, até. (Não.)
Mas, sei lá: nem a crença (digamos) nisso impede que eu me aborreça por não ter parado. Na verdade, acho que eu sempre preferi acreditar que, caso a falência das boas ações seja mesmo inevitável, eu seria a vítima bem intencionada antes de ser o cético que, por inação, minaria também a fé alheia.
Agora, eu sei.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Era difícil dormir, sonhavacordado: com a empresa, com o contrato para ser firmado com os portugueses e com a vontade de não assinar nada daquilo, largar a sociedade. Gostava do sócio, a quem não suportava. O sócio era seu melhor amigo, se conheciam desde... quando? Se conheciam desde sempre, não aguentava mais.
Rolou na cama.
A empresa era criação sua, dele e do sócio, era o negócio com que ele havia sonhado e era correspondia a tudo o que ele havia esperado. (O substantivo do verbo esperar pode ser esperança, mas também pode ser espera.)
A empresa era sua maior paixão, muito provavelmente, ele que amava como todo mundo ama, que se distraía como todo mundo e que tinha uma gama variada de interesses aos quais se dedicava tanto quanto podia, tanto quanto qualquer um poderia, mas ele havia construído aquilo junto com seu melhor amigo, a quem conhecia desde sempre, e sempre que pensava no quanto havia sido difícil chegar até ali, se enchia de orgulho.
A empresa.
Não havia nada de especialmente novo na ideia de vender tubos de PVC. Não era uma vocação e não ia mudar o mundo. Não havia nada de excepcional na empresa a não ser o fato de que eles a construíram juntos, de que eles sofreram para chegar lá.
Estava calor, melhor chutar o lençol para o pé da cama junto com o cobertor.
A alternativa era o mundo inteiro, ele nem sabia dizer o que faria se largasse a empresa, talvez o sócio penasse no começo, não era essa a questão, o sócio organizaria tudo, arrumaria alguém, não era essa a questão era: o que ele queria, afinal?, ou, melhor dizendo: o que, no fim das contas, lhe faltava?
Mas também, não estava tão quente assim, volta-se o lençol.
Os portugueses eram amigos de um conhecido do sócio, ele nunca entendeu direito por que diabos haviam vindo para o Brasil atrás de oportunidades no ramo da venda de tubos de PVC, talvez os mercados europeus, a crise etc, vieram ao Brasil e trouxeram euros e conheciam alguém que conhecia seu sócio e as coisas se encaminharam logo, até porque tudo na empresa ia bem. Era uma Oportunidade, mas também um Compromisso.
Não lhe faltava absolutamente nada, nem fazia sentido perguntar isso, ainda mais agora, ele acordava todo dia feliz, dentro dos limites da razoabilidade, evidentemente, mas de qualquer forma, feliz, ia trabalhar feliz, gostava até mesmo das coisas que desgostava, gostava depois, quer dizer, de tê-las feito. E agora os portugueses, então por que parecia tão ruim a irreversibilidade das grandes decisões e por que às vezes tinha vontade de mandar tudo para o ar e por que às vezes não aguentava o sócio? --- seu melhor amigo e se conheciam desde sempre!
Ele se lembrava de quando começaram a construir a empresa, parece que foi em outra vida, era até engraçado pensar nisso assim, àquela altura. Não faziam ideia do que estavam fazendo e não faziam ideia de como as coisas se encaminhariam, então. Naquela época, faziam as coisas pelas coisas, não havia visão nenhuma do panorama geral. Deitado na cama, ele sentia uma saudade imensa daquele tempo.
Não lhe faltava absolutamente nada e ele tinha planos incríveis, mesmo naquela época, ele se empolgava com tudo o que fariam agora, com os euros, se empolgava em planejar detalhes bobos, detalhes importantes, detalhes...
Não, estava calor, mesmo, que porra.
Queria aumentar o pessoal, queria comprar um andar inteiro do prédio ao lado para usar de estoque, já havia pensado em como faria para conciliar o custo extra e achava que assim conseguiriam produzir mais, fora o frete refletindo no preço final. Em cinco anos, achava que teriam o dobro do tamanho, ainda mais agora com os portugueses, uma oportunidade, realmente, mas também um compromisso.
A alternativa era não fazer nada disso, a alternativa não era algo muito bem definido, mas era o mundo inteiro. Ele havia viajado muitas vezes, ele, que se distraía como todo mundo, e às vezes quando estava em casa, pensava que não lhe faltava absolutamente nada, que nenhum dos lugares que havia visitado eram melhores que sua casa, mas por qualquer razão, sentia muita saudade de Paris.
Ele tinha uma gama variada de interesse, via filmes como todo mundo e havia ouvido eternamente as mensagens, tentando achar algum fator de conexão. Havia ouvido repetidamente e continuaria ouvindo e achando que deveria haver algum ponto de conexão que a gente eventualmente tem que escolher entre seguir a cabeça ou seguir o coração, deve-se sempre seguir o coração, mas nã havia ponto nenhum, conexão nenhuma: ambas as alternativas correspondiam a vontades do coração.
Rolou na cama.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Flerte

O enigma se desenrola com uma falta de pressa enervante, os elementos se repetindo e se somando num ritmo quase desanimador, mas eu, pouco habilitado  ao trabalho de detetive (em que pesem as experiências acumuladas em anos de má prática do ofício), ainda me excito com essa caça de pistas como se refletissem de fato aquilo que vemos nos filmes, que em duas horas nos conduzem da crise à captura inexorável no final. Ademais, sou um jogador.
O termo engana porque jogos são comumente associados ao lazer e à diversão, o que certamente não reflete nada do trabalho que eu desenvolvo, mas em pelo menos alguns aspectos, é preciso: trata-se de uma competição, sem a menor sombra de dúvidas, entre mim e o mistério a ser desvendado, e trata-se de um exercício regido por regras, também sem dúvidas. Há as regras no sentido mais geral, as regras legais e sobretudo éticas ou morais que limitam minhas ações, mas também há as regras próprias do jogo, aparentemente criadas de improviso por meu oponente que, neste sentido, também já é um parceiro, num sentido curioso do termo.
E há uma meta, é claro, porque num jogo, ao contrário de em uma brincadeira, a parceria não é suficiente: joga-se para ganhar e, para mim, a única vitória possível é a subjulgação de minha nêmese, sua captura e aprisionamento até que não haja esperança de fuga. Vitória para mim virá quando eu alcaçar essa sombra que persigo e trancafiá-la para sempre atrás de grades.
E quando isto acontecer, trancarei eu mesmo a fechadura e guardarei eu mesmo o portão, em vigília absoluta. E nós dois passaremos assim os anos seguintes, deglutindo em silêncio os espólios da vitória ou as lições da derrota, conforme o caso, mas de qualquer maneira, juntos, como parceiros, num sentido curioso do termo.

sábado, 27 de abril de 2013

Balada da amora que não como

No meio do caminho tinha uma amoreira
e ir trabalhar era encher-me de amora
e o mundo era bom e havia ordem –
mas a prefeitura achou por bem a poda.

A amoreira lá ficou: ainda é viva
e ainda a vejo todo dia, mas agora
me esvazia, pois só onde não alcanço
seus galhos curtos ainda se enchem de amora

E em casa, tanta fruta: tem banana
tem pêra, e até (quando tem feira)
tem ameixa – e as como, mas comê-las

é um ato de patética vileza:
como-as com a boca, mas minha mente
e meu coração estão com a amoreira

sexta-feira, 1 de março de 2013

Foi um sonho relativamente longo.

Eu sei que sonhos não são realmente mais longos ou mais curtos, sei que eles só duram alguns segundos e que, se parecem se estender por horas, é só porque essa é a impressão que deixam em nosso cérebro, mas, dentro dessa concepção muito específica de duração, que só se aplica aos sonhos, aos delírios e à vida, esse foi um sonho relativamente longo. Eu me lembro do tato, me lembro perfeitamente do som, mas não me lembro de muitas imagens: apenas do cigarro e do fogo.
Seria melhor se eu estivesse em um gramado sombreado por árvores ou em um banquinho à margem de algum rio, mas não havia cenário, não havia companhia, não havia horizonte; apenas o cigarro e o fogo. O cigarro queimava devagar. Estava na minha mão e eu sentia o papel e a palha dentro dele (não havia filtro, não era um cigarro fabricado. Também não havia o fedor de cigarro, mas um cheiro como o de pinhas na lareira.) e sentia um calor fraco nos dedos. Ele fazia o ruído baixinho e eterno de uma fogueira pequena --- o crecrec confortável, quente e ameaçador das coisas que queimam sem pressa ---, mais intenso quando eu tragava e sua luz aumentava e o papel se incendiava minusculamente entre meus dedos, mais fraco nos intervalos, quando eu me distraía e ele podia respirar.
Provavelmente, havia algo ao meu redor, algum estímulo visual qualquer, talvez vozes. Provavelmente, se eu conheço meus sonhos, havia mais gente, comigo.
Mas eu me lembro do cheiro, do tato e do som e da imagem do cigarro e do fogo, apenas.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Mar, 20 - Fim

Maria e Ike não foram casos excepcionais. Em cada canto da ilha, eu me deparava com uma história mais fantástica. Ouvi relatos sobre conquistas persas, batalhas contra feras marinhas, naufrágios. De repente, aquilo se tornou uma obsessão, como se eu fosse um colecionador de contos.
Em algum momento, Sílvia foi embora, me deixando para trás. Ela deve ter tentado me chamar --- eu realmente acredito que sim ---, mas, imerso naquelas histórias, eu não dei por isso. Era natural que fosse assim: aquela ilha não era o lugar dela, mas eu nunca poderia ir embora.
Com o tempo, virei mais um morador de lá. Criei uma rotina, construí uma casa para mim. Um dia, um jovem encostou um barco no píer, olhou assombrado para aquelas terras não mapeadas (o que teria acontecido com Sílvia?) e saiu fazendo perguntas. Eventualmente, ele veio até mim e me perguntou como eu havia ido parar ali.  
E eu lhe contei sobre Anita e sobre o Dani, e eu lhe contei sobre a solidão e sobre Sílvia. E enquanto ele me ouvia, incrédulo, eu lhe contei sobre o mar.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Mar, 19 - A história do norueguês


Ike nascera mesmo na Noruega e de fato fora jovem para a Inglaterra. Também era verdade que lutava como um herói da mitologia, o corpo e a mente parecendo terem sido feitos para o embate. Era verdade até que sonhava com um barco, como era verdadeiro o relato de como, após parecer condenado, conseguiu um dos saxões no pântano. Depois, aparentemente, é que as coisas não haviam sido bem como o relatado.
De posse do navio --- que, ao contrário do que me fora dito, de acordo com esta versão ainda carecia de um nome --- o próximo passo era ter uma tripulação. Os soldados que o seguiam talvez fossem os melhores conhecedores de metal e sangue, mas era preciso ter por perto quem conhecesse as águas e os ventos para se navegar.
Assim, Ike reuniu homens.
Ele excursionou por meses através de diversas vilas de noruegueses instalados na Inglaterra, perguntando em tavernas por qualquer um que entendesse do mar. Encontrou e recrutou homens fortes com talento para manejar os remos e as velas, jovens ambiciosos dispostos a se submeter ao trabalho duro no convés em troca das promessas de ouro e navegadores experientes que conseguiam adivinhar para onde sopraria o vento. E então, havia o Velho Dick.
O ancião já havia passado em muito a idade de partir atrás de aventura, mas não houve alma em sua vila que não o apontasse como o maior marujo que já existiu. Diziam que não havia mar que o velho não desbravasse, costa que o assustasse ou inimigo que o enganasse numa batalha em alto mar. Ademais, apareceu diante de Ike com uma disposição que inviabilizava qualquer possibilidade de negativa e com um rapazola de catorze ou quinze anos --- o rosto imberbe enrolado por um pano tornava difícil precisar --- que prometia a força que faltava ao pai. O gigante riu, bateu amigavelmente no braço do menino e mandou que subissem logo à bordo.
O tempo, porém, provou que o jovem tinha pouquíssimo a oferecer no convés. Era fraco e desengonçado, incapaz de atar cordas ou erguer caixas. Além disso, tinha uma curiosidade que o afastava dos trabalhadores braçais, ocupados demais para conversar, exceto quando se sentavam à noite em roda.
Mas não é dizer, também, que os dois foram um fardo para a embarcação. O Velho Dick tinha uma força inacreditável e uma disposição incondizente com sua idade. Também parecia conhecer absolutamente todos os segredos de um navio e da arte de cruzar o mar. E quanto ao rapazola, também não gostava do ócio. Se lhe faltava o talento para o serviço pesado, lhe sobrava inteligência e audácia. Ele, portanto, preferia passar seu tempo ao lado de Ike.
E, no comando, o impúbero demonstrava jeito. Palpitava sobre rotas, enxergava passagens com a habilidade de um falcão, lia as nuvens, os pássaros e os ventos como se fossem escritos em uma língua que só ele dominasse. Se o navio de Ike era um monstro dos oceanos, capaz de derrotar qualquer adversário, o filho do Velho Dick certamente merecia crédito por isto.
Um dia, quando navegavam de volta dos mares do norte, Ike quis evitar a costa escocesa, navegando por águas profundas, mas o jovem insistiu que o tempo mudaria e que não haveria escocês no mundo que seria do que a tempestade que viria a cair. Ike defendeu seu ponto ainda por algum tempo, mas então abaixou a cabeça e concedeu e todos assistiram com assombro à tormenta que se abatia, enquanto passavam sem maiores percalços pelas águas rasas do litoral da Escócia.
Quando chegaram a terras inglesas, todos foram a um pub e Ike comprou cerveja para todos, em celebração a estarem vivos. Ele ergueu sua caneca tantas vezes que mal conseguia andar até os barris para se servir de áis bebida, mas não deixou de notar que o herói daquela noite não estava bebendo.
Após algum tempo, o filho do Velho Dick levantou-se e saiu do salão, andando sozinho em meio à escuridão. Ike bebeu o resto de sua cerveja de um trago e então o seguiu.
No meio da noite, o imberbe era reconhecível por sua silhueta fina e pequena, metade do tamanho de qualquer homem de sua idade, sentada no cais. Apesar de ser noite, mantinha os panos enrolados na cabeça. Estava em completo silêncio e olhava o mar como se fosse seu único amigo. Ike sentou-se ao seu lado.
Naquele momento, algo muito estranho aconteceu. Ike sabia que o impúbere estava chorando, embora não lhe visse as lágrimas, mas não se incomodou com isso. Ele pôs a mão sobre os ombros da criança, que estremeceu, ameaçou fugir, mas acabou ficando.
"Qual seu nome verdadeiro?", o gigante perguntou. "Menino" era o apelido oficial usado por todos, mas Ike sabia que não poderia continuar a usá-lo.
"Maud", respondeu a garota. Ela se virou para ele, chorando.
"Quer uma cerveja, Maud?"
"Dá azar ter uma mulher a bordo."
"Não é o que tem parecido. Eu sou muito mais capaz de afundar este navio, pelo visto." Ele não sabia, mas estava sendo profético. Maud riu e os dois se levantaram. Contar tudo para os outros seria um problema, mas nem de longe era o maior dilema com que Ike tinha que lidar.
Dias depois, de fato, Ike se meteu em uma luta contra as frotas de Alfredo. Era equinócio e o navio, rebatizado em homenagem à garota, lançou-se ao combate, mas Ike de fato não era o mesmo. O relato deste segundo inglês repetia os sintomas apontados pelo primeiro: a nau estava lenta, perdida, indecisa e insegura. O diagnóstico, porém, divergia.
Ike não havia perdido a mão, mas a cabeça.
De repente, ele tinha alguém à bordo que se sentia no dever de proteger. Simplesmente não conseguia atacar com a determinação de costume. Na tentativa de se manter protegido, acabou se expondo. Depois de incontáveis vitórias, o Maud Thyra foi derrotado. Ike sobreviveu, o que talvez tenha sido sua maldição. Os membros da tripulação foram separados e ninguém sabe ao certo o que aconteceu com cada um deles.
Desde então, no equinócio, o gigante lembra destes acontecimentos e chora, não pela derrota ou pelo navio, mas pelo que de mais importante o mar lhe tirou.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A história de Y.

Y. defendia a extinção das segregações baseadas em gênero. Ele era homem, branco, não-pobre e, até onde se sabia, heterossexual, o que o colocava em uma posição confortável na sociedade, mas um dia saiu às ruas revelando --- não por meio de um discurso acalorado, o que seria considerado adequado pelas mais variadas castas de nossa sociedade, mas através de uma saia frisada --- seu amor pelo crossdress: um Ed Wood com talento, dir-se-ia. O mundo das artes foi tomado de assalto.
Nos dias que se seguiram, jornais reportaram o fato com manchetes alarmantes acompanhadas da foto de Y. em um vestidinho tomara-que-não-caia estampado e de depoimentos do padeiro, do jornaleiro, dos vizinhos: não imaginávamos nada, sempre nos pareceu um sujeito tranquilo, sempre nos pareceu um cara normal. A resposta da parcela engajada da população ao tom conservador das matérias foi ainda mais barulhenta, o que alimentou um debate acalorado na mídia impressa e nas redes sociais.
Passado algum tempo, consolidou-se a ideia de que Y. era só um cara que gostava de roupas de seda e não queria nada apertando seu entrepernas, o que era bastante compreensível para a maioria dos homens, embora estes não o admitissem publicamente. Tudo parecia assentado até um dia, quando Y. se envolveu em um incidente ao tentar usar o banheiro feminino de um restaurante. O evento resultou no primeiro debate público de que tenho conhecimento da questão de divisão de gêneros em banheiros públicos no Brasil, de forma que mesmo o desconforto no momento (e o prolongamento do desejo de mijar) acabaram revertidos para o Bem, de certa forma.
Contudo, a experiência de Y. não parou por aí. Em algum momento aí no meio, houve a revelação de que Y. não era um heterossexual "vestido de mulher", mas sim um bissexual-em-termos --- mas, diante de todo o resto, a notícia não surpreendeu ninguém. Ocorreu que, dia desses, chamaram atenção para o fato: Y. não apenas trocou as calças por saias, num movimento reverso à Revolução Feminina, mas também passou a portar barbeado rente, cabelo longo, maquiagem. Depilava o corpo todo (in-tei-ri-nho), usava produtos de beleza, se perfumava. Pegava homens. Veio a constatação: em sua crítica aos papeis baseados no gênero, Y. acabou por criar uma fantasia de mulher que adotava todos os aspectos que a sociedade por ele criticada atribuía a ela. A personagem que ele criou se submetia às imposições estéticas criadas pela sociedade machista, era heterossexual-em-termos, usava o banheiro considerado adequado ao seu gênero etc.
Y. percebeu, então, que para alcançar seus reais intentos, precisaria se transformar em uma mulher que não usasse roupas consideradas tipicamente femininas, não se depilasse, não usasse para si mesma a flexão feminina das palavras. Deixou a barba crescer, comprou cuecas, se livrou da cera de depilar.
Mas isso não era o suficiente. Não bastava deixar de obedecer a estereótipos, era preciso subvertê-los. Como mulher moderna, Y. assinou o pay-per-view do futebol, passou a coçar o saco em público e a cuspir no chão. E não parou por aí.
Passadas algumas semanas, Y. podia ser encontrado gritando obscenidades para as mulheres que passavam na rua. Familiares afirmavam tê-lo ouvido citar posts do Testosterona no almoço de Páscoa e três testemunhas juraram que ele usou a expressão "macho alfa" em ao menos duas ocasiões. Y estava fora de controle.
À misoginia, aliou a homofobia e, por que não?, o racismo. Passava madrugadas na internet pesquisando novos comportamentos ultrajantes para colocar em prática.
Em resumo, Y. havia se transformado em um verdadeiro monstro, quando um colega antropólogo e psicanalista mencionou o fato de que ele incorria no mesmo erro do início de sua empreitada, apenas invertendo-o. Percebendo horrorizado em quê se transformara, Y. correu para sua casa, tirou às pressas o macacão de lumberjack e sentiu, pela primeira vez em meses, o toque suave de um vestido de algodão em sua pele.
Desde então, Y. nunca mais ligou para o que os outros pensavam.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Autoavaliação ou Prestação de contas ao meu futuro Eu

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Tenho escrito pouco. A frase é imprecisa, se não mentirosa: tenho escrito muito, o tempo todo; só não é a que me refiro quando digo: tenho escrito pouco. Dito isto, tenho algo em andamento, já há algum tempo (desde julho do ano passado, por causa da Granta), que é uma espécie de romance de contos.
Depois da Ópera, que foi algo feito mais ou menos on the go, eu quis me organizar melhor para essas coisas e o resultado dececionante foram as True Stories and the Story of Laika Sartorelli. Talvez o fato de ser em inglês tenha sido um problema (embora não tenha sido um desafio autoimposto; foi mais ou menos sem querer que saiu assim), mas pior que isso foi ter sido pretensioso demais. Além disso, minha ideia de fazer uma história desconexa, para ser totalmente honesto, resultou em algo totalmente desconexo.
A evolução quasinatural foi a ideia de trabalhar com contos. Para ser mais preciso, capítulos de uma história só, mas que funcionem mais ou menos independentemente: algo a que eu possa me dedicar por cinco ou dez páginas e que, então, estará totalmente pronto e funcional, ainda que dependa de tantos outros contos/capítulos para formar o panorama geral do que quer que seja.
De certa forma, está funcionando, mas com a liberdade de escrever desordenadamente (um capítulo aqui, outro ali e depois decidir como tudo se relaciona) veio, obviamente, o inconveniente de que agora tudo é uma grande bagunça que talvez nunca se arrume. Acho que faz parte da brincadeira; se pelo menos eu não escrevesse tão pouco, ultimamente, isto não seria exatamente problema.
Você me diga no que é que deu.