Gabriel queria escrever um romance. Ele já havia escrito outras coisas antes, é claro: historinhas, na denominação utilizada pelos parentes mais próximos e por aqueles que possuíam qualquer dosagem de senso crítico; agora, porém, queria escrever um romance.
O procedimento é relativamente simples, ao menos no que diz respeito ao seu aspecto, digamos, braçal: adquire-se o equipamento necessário, que pode ser uma agenda telefônica e caneta ou uma área suficientemente grande de areia na praia e um pedaço de pau (no caso, optou-se por um computador), dedica-se uma quantidade suficiente de tempo e procede-se com a técnica repetitiva e mecânica de desenhar letras ou pressionar teclas. É isto o que fazem aqueles que escrevem romances e, ao fazê-lo, Gabriel não poderia ser diferenciado de nenhum de seus grandes heróis da Literatura com L maiúsculo.
No entanto, findas algumas horas e diante da página quase completamente vazia, Gabriel percebeu que a tarefa era muito menos simples do que inicialmente se lhe havia apresentado. Dispondo ainda do tempo que havia reservado em seu cronograma e no intento de atiçar a criatividade, nosso intrépido herói deu uma rápida olhada ao redor, à procura de qualquer objeto que lhe servisse de inspiração.
Ao seu lado, encostado à parede e coberto de poeira, estava o antigo violão. Um violão é um instrumento musical e, portanto, artístico; a música e a literatura são espécies diferentes de um mesmo gênero e, portanto, o empenho a uma certamente renderia seus frutos à outra. Dotado de tal convicção, Gabriel tomou o violão em suas mãos e pôs-se a dedilhar uma das raras melodias que subsistiam em sua memória. Os dedos correram sozinhos pelas cordas, engasgando-se, às vezes, mas demonstrando-se razoavelmente corretos.
Produziram um som odioso.
Gabriel percebeu-se, então, diante de um novo problema: não sabia como afinar o instrumento. Dirigiu os olhos tentados à tela do computador, em cujo canto superior esquerdo reluzia o ícone do navegador Firefox, deixado ali a postos. Um dilema moral nasceu dessa observação: havia imposto a si mesmo a restrição de não desperdiçar seu tempo de escrita na internet, vício dos vícios. No entanto, tocar o violão era, de certa forma, parte do processo de escrita, e aprender como afiná-lo era parte do processo de tocar o violão. Após alguma reflexão, consentiu em liberar-se de sua restrição, desde que fosse exclusivamente com este bom intento.
Após alguma pesquisa, porém, observou outra dificuldade: não lhe bastava simplesmente mimetizar os sons que alguns sites ofereciam, para saber que o violão estava afinado. Era preciso ir a fundo, refletir sobre a natureza das escalas musicais, sobre a razão de ser das variações microtonais etc. Não o fazer seria reduzir seu empenho musical a uma tarefa isenta de raciocínio crítico, o que obviamente contrariava as demandas mais básicas da escrita literária — e afinal, era isso o que ele estava fazendo: escrevendo.
Imergiu-se, assim, no estudo de teoria musical. Evidentemente, um dia não lhe bastou, então os dias se passaram e ele lia com olhos vidrados tudo o que podia encontrar sobre o assunto. Após quatro anos, julgou-se apto a, enfim, afinar o violão, o que de fato fez.
Terminado este primeiro passo, Gabriel pôs-se a tocar, agora com muito mais clareza e convicção, e até mesmo a compor. Sempre que lhe ocorria voltar os olhos à página em branco e talvez pressionar uma ou outra tecla, percebia que ainda não estava pronto, de forma que voltava a correr os dedos pelas cordas.
Até que, é claro, aquilo já não lhe bastava. No oitavo ano, saiu de casa apressado e comprou um contrabaixo. Depois, seguiram-lhe um sax, um piano de cauda, uma flauta doce, uma cuíca, uma gaita diatônica etc. No décimo quinto ano, após breve vislumbre do cursor que piscava impaciente na página vazia do Word, Gabriel decidiu que era hora de investir mais seriamente na literatura, motivo pelo qual comprou os mais avançados equipamentos de gravação e edição de som e sintetizou, em seu quarto, mesmo, seu primeiro álbum musical.
O sucesso desse primeiro disco fez com que um segundo fosse lançado, em obra que contou com a feliz participação da Berliner Philharmoniker.
Notando que nem a aclamação popular, nem os inúmeros prêmios, nem os milhões de dólares adicionados à sua conta bancária lhe eram suficientes para a escrita, Gabriel então percebeu que estava se desviando demasiadamente de seu caminho. No vigésimo oitavo ano de produção do romance, ele decidiu que era necessária uma completa reviravolta em sua vida, de forma que foi imediatamente a uma loja próxima e adquiriu acetona, carvão, tinta a óleo e telas. Repetiu os procedimentos de estudo e prática e, no trigésimo terceiro ano, foi destaque tanto no Moma quanto no Tate.
O que, evidentemente, não se deu sem seus contratempos: teve que recusar o convite para participar em uma campanha publicitária de televisores Sony, porque, conforme afirmou em japonês irrepreensível (aprendido como forma de inspiração e ampliação de horizontes linguísticos) ao exasperado representante de marketing da empresa, isso atrasaria o término de seu livro, que, afinal, era seu principal propósito.
Após similares incursões ao teatro, cinema, arquitetura e escultura, Gabriel chegou mesmo a inventar novas modalidades artísticas, utilizando-se de meios e linguagens nunca antes concebidas. Aos oitenta e oito anos, teve um enorme monumento em sua homenagem erguido na plataforma espacial Tiangong e celebrações foram realizadas pelo mundo nas ocasiões de seus aniversários de noventa, noventa e cinco e cem anos.
Quando faleceu, aos cento e quatro anos, uma editora alemã conseguiu os direitos de publicação de seu romance, consistindo em uma capa em que figurava apenas seu nome e três folhas quase completamente em branco, com duas ou três palavras espalhadas de forma aparentemente aleatória em cada uma. Os jornais do mundo todo noticiaram com tristeza a ocorrência e ressaltaram o afinco de seus estudos, seus contínuos esforços nos mais variados campos do saber e, acima de tudo, o empenho irrestrito à literatura.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Laura
Quando eu era pequena, eu gostava de ficar na casa da minha avó.
Era uma casa grande, mas boa para crianças pequenas (e eu sei disso porque eu era uma criança pequena). Então, eu ficava lá.
A casa tinha uma sala grande, uma cozinha grande.
Ou eu era pequena.
Mas tinha um cano de ferro verde que descia desde o andar de cima e a gente (mas só gente pequena) (e só quando ninguém estava olhando) usava para subir até o andar de cima.
Tinha uma escada, também.
Mas eu subia sempre (que ninguém estava olhando) pelo cano. Porque as gentes grandes subiam pela escada e eu era pequena e gostava mesmo era de subir pelo cano verde. E chegando lá em cima, no segundo andar, tinha a grade da janela e um muro. E o muro era perto da janela. E a janela era perto do cano de ferro verde. Então a gente subia no cano verde. E depois na janela. E depois no muro. E a janela também era verde, mas o muro era branco (mas não muito branco, porque a gente subia nele).
De lá, dava pra ir andando até o outro lado. O outro fim do muro, porque um muro tem dois lados e dois fins. Mas a gente não fazia isso.
Não.
A gente se esticava toda em cima do muro e apoiava o pé na grade da janela (que ficava perto do muro) e pisava ao mesmo tempo que puxava com a mão. Assim a gente conseguia subir no telhado da casa. Em cima da janela e do muro e do cano verde. E do segundo andar e do primeiro e das pessoas lá dentro. E a gente, que era pequena, ficava mais alta que todo mundo. A gente ficava mais alta que a minha avó e todas as outras gentes grandes.
E a gente gostava disso.
E a gente era eu.
Era uma casa grande, mas boa para crianças pequenas (e eu sei disso porque eu era uma criança pequena). Então, eu ficava lá.
A casa tinha uma sala grande, uma cozinha grande.
Ou eu era pequena.
Mas tinha um cano de ferro verde que descia desde o andar de cima e a gente (mas só gente pequena) (e só quando ninguém estava olhando) usava para subir até o andar de cima.
Tinha uma escada, também.
Mas eu subia sempre (que ninguém estava olhando) pelo cano. Porque as gentes grandes subiam pela escada e eu era pequena e gostava mesmo era de subir pelo cano verde. E chegando lá em cima, no segundo andar, tinha a grade da janela e um muro. E o muro era perto da janela. E a janela era perto do cano de ferro verde. Então a gente subia no cano verde. E depois na janela. E depois no muro. E a janela também era verde, mas o muro era branco (mas não muito branco, porque a gente subia nele).
De lá, dava pra ir andando até o outro lado. O outro fim do muro, porque um muro tem dois lados e dois fins. Mas a gente não fazia isso.
Não.
A gente se esticava toda em cima do muro e apoiava o pé na grade da janela (que ficava perto do muro) e pisava ao mesmo tempo que puxava com a mão. Assim a gente conseguia subir no telhado da casa. Em cima da janela e do muro e do cano verde. E do segundo andar e do primeiro e das pessoas lá dentro. E a gente, que era pequena, ficava mais alta que todo mundo. A gente ficava mais alta que a minha avó e todas as outras gentes grandes.
E a gente gostava disso.
E a gente era eu.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Showbiz
Desci a escada improvisada de madeira quase caindo, mas tinha gente lá, muita gente e me seguraram, me pegaram a mão e me botaram de novo no caminho (o caminho estreito entre as pessoas, o caminho que iam abrindo na minha frente com alguma truculência apesar dos Com licença, com licença!, um com licença gritado, mandado e sem opção que até é de se perguntar se é cabível, mesmo, esse termo que provém da permissão e do consentimento: licença). Os gritos das meninas e o dos homens de voz aguda se sobressaem no meio da gritaria total da multidão, então parecia que só havia adolescentes ao meu redor e eu tive que me esforçar pra não pensar que estava falando para um bando de idiotas. Que horror.
Um homem conseguiu de algum jeito entrar na minha frente. Era um sujeito tão devagar e barbudo que eu fiquei pensando em como era possível que logo ele tivesse conseguido se meter ali, mas para mim, francamente, não fazia diferença nenhuma, porque tudo era tão absurdo que esse tanto a mais ou a menos, oras, nem merecia crédito. Você tem toda a razão, ele disse com aquela voz devagar e barbuda, eu penso exatamente como você e ele batia no meu ombro (bater, não, que senão os truculentos o tirariam dali, mas ele punha as mãos dele, devagares e barbudas, no meu ombro e repetia mil vezes que eu estava certo e que era aquilo mesmo), meu Deus, que horror, me devolvam os adolescentes, se preciso for.
Me esquivei com um sorriso, porque as pessoas estão sempre dispostas a aceitar um sorriso como resposta, ainda mais quando se está tão absolutamente certo quanto eu supostamente estava, e segui sorrindo, já, pra facilitar o trabalho dos flashes e do sujeitinho de terno e cigarro que me esperava à porta e que, no dia seguinte, teria que fazer mil ligações para todos os jornais caso eu não sorrisse e dizer algo como Não era mal-humor, claro que não, era apenas um verdinho no dente que queria esconder, uma couve que sobreviveu às salivadas de duas horas e treze minutos de uma mpbzinha sem vergonha e, é claro, dizem, muita razão. Também não é, vejam bem, que eu realmente me importasse com quão facilitada seria a vida do sujeito, ainda mais que ele certamente não facilitava a minha em nada, mas àquela altura (foram duas horas de mpb da pior espécie e muita razão) já eu me sentia um barbudo vagaroso que sorri para todo mundo e diz Vocês, meus senhores, têm toda a razão, a maior razão do mundo; e não há quem possa questionar isso, pois A diz que B está certo e B defende cegamente as opiniões de A e quando C olha mais de perto, vê-C logo que porra nenhuma foi dita e que foda-se tudo isso.
Então segui sorrindo enquanto todo mundo aplaudia, faziam um verdadeiro espetáculo (aqui, autorizo expressamente que o leitor atribua à palavra qualquer sentido cabível ou incabível, inclusive aqueles não listados sob o verbete nos dicionários e já pra facilitar a vida daqueles menos imaginativos, cito: cavalo, revista, estrela (são palavras escolhidas em processo semi-dadaísta, porque sujeito a revisão em que excluí nomes próprios)), um horror, um horror, e me pareceu incrível que ninguém, nem a mais mísera puta alma tenha percebido que por mais maravilhosas e cheias de razão que tivessem sido aquelas duas horas, aquelas vinte horas, aqueles vinte anos de mpb, por mais cheias de razão, dizia, eu agora estava era descendo as escadas, quase caindo, ainda por cima e teria sido melhor, quiçá, se tivesse caído, mesmo, me acabado no chão e sido retirado de lá em uma maca, porque aí pelo menos ficaria livre dos gritos agudos e dos tapas barbudos, por Deus. Mas ninguém ligava, acho que era isso: não falta de atenção, mas falta de interesse, mesmo, e de... contato. CO-MU-NI-CA-ÇA-~O. Seja como for, todos preferiam crer na ilusão dos concertos futuros, ainda maiores, mais cheios de adolescentes e de vagarosidade barbuda, mais cheios de, com o perdão do palavrão, razão.
O que me tranquilizou.
Tanto fazia, afinal, que eu estivesse lá ou, sei lá, em um catamarã, palavra mais linda da língua portuguesa, da tamil e de todas as outras, palavra mais linda do mundo inteiro e de mil concertos de neo-mpb e de um catamarã.
O homenzinho me apressava. Eu disse que tudo bem, que ele fosse indo e que eu pegaria um ônibus, o que o fez rir honestamente e me chamar de uma figura e me conduzir discretamente (a mão direita dele se insinuando levissimamente no meu braço esquerdo) para o banco de trás da BMW, cuja porta um outro sujeito, ou talvez fosse o mesmo, já segurava aberta como seu sorriso e (eu percebi então) como o meu.
Um homem conseguiu de algum jeito entrar na minha frente. Era um sujeito tão devagar e barbudo que eu fiquei pensando em como era possível que logo ele tivesse conseguido se meter ali, mas para mim, francamente, não fazia diferença nenhuma, porque tudo era tão absurdo que esse tanto a mais ou a menos, oras, nem merecia crédito. Você tem toda a razão, ele disse com aquela voz devagar e barbuda, eu penso exatamente como você e ele batia no meu ombro (bater, não, que senão os truculentos o tirariam dali, mas ele punha as mãos dele, devagares e barbudas, no meu ombro e repetia mil vezes que eu estava certo e que era aquilo mesmo), meu Deus, que horror, me devolvam os adolescentes, se preciso for.
Me esquivei com um sorriso, porque as pessoas estão sempre dispostas a aceitar um sorriso como resposta, ainda mais quando se está tão absolutamente certo quanto eu supostamente estava, e segui sorrindo, já, pra facilitar o trabalho dos flashes e do sujeitinho de terno e cigarro que me esperava à porta e que, no dia seguinte, teria que fazer mil ligações para todos os jornais caso eu não sorrisse e dizer algo como Não era mal-humor, claro que não, era apenas um verdinho no dente que queria esconder, uma couve que sobreviveu às salivadas de duas horas e treze minutos de uma mpbzinha sem vergonha e, é claro, dizem, muita razão. Também não é, vejam bem, que eu realmente me importasse com quão facilitada seria a vida do sujeito, ainda mais que ele certamente não facilitava a minha em nada, mas àquela altura (foram duas horas de mpb da pior espécie e muita razão) já eu me sentia um barbudo vagaroso que sorri para todo mundo e diz Vocês, meus senhores, têm toda a razão, a maior razão do mundo; e não há quem possa questionar isso, pois A diz que B está certo e B defende cegamente as opiniões de A e quando C olha mais de perto, vê-C logo que porra nenhuma foi dita e que foda-se tudo isso.
Então segui sorrindo enquanto todo mundo aplaudia, faziam um verdadeiro espetáculo (aqui, autorizo expressamente que o leitor atribua à palavra qualquer sentido cabível ou incabível, inclusive aqueles não listados sob o verbete nos dicionários e já pra facilitar a vida daqueles menos imaginativos, cito: cavalo, revista, estrela (são palavras escolhidas em processo semi-dadaísta, porque sujeito a revisão em que excluí nomes próprios)), um horror, um horror, e me pareceu incrível que ninguém, nem a mais mísera puta alma tenha percebido que por mais maravilhosas e cheias de razão que tivessem sido aquelas duas horas, aquelas vinte horas, aqueles vinte anos de mpb, por mais cheias de razão, dizia, eu agora estava era descendo as escadas, quase caindo, ainda por cima e teria sido melhor, quiçá, se tivesse caído, mesmo, me acabado no chão e sido retirado de lá em uma maca, porque aí pelo menos ficaria livre dos gritos agudos e dos tapas barbudos, por Deus. Mas ninguém ligava, acho que era isso: não falta de atenção, mas falta de interesse, mesmo, e de... contato. CO-MU-NI-CA-ÇA-~O. Seja como for, todos preferiam crer na ilusão dos concertos futuros, ainda maiores, mais cheios de adolescentes e de vagarosidade barbuda, mais cheios de, com o perdão do palavrão, razão.
O que me tranquilizou.
Tanto fazia, afinal, que eu estivesse lá ou, sei lá, em um catamarã, palavra mais linda da língua portuguesa, da tamil e de todas as outras, palavra mais linda do mundo inteiro e de mil concertos de neo-mpb e de um catamarã.
O homenzinho me apressava. Eu disse que tudo bem, que ele fosse indo e que eu pegaria um ônibus, o que o fez rir honestamente e me chamar de uma figura e me conduzir discretamente (a mão direita dele se insinuando levissimamente no meu braço esquerdo) para o banco de trás da BMW, cuja porta um outro sujeito, ou talvez fosse o mesmo, já segurava aberta como seu sorriso e (eu percebi então) como o meu.
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
Notas sobre música
Na segunda metade dos anos sessenta, artistas hippies e beatniks, empolgados com a onda psicodélica, se debruçaram sobre novas tecnologias de iluminação e som e começaram a aplicá-las a novas formas de expressão. A experimentação era a regra e inúmeras bandas novas compunham músicas que, embora inspiradas pelo blues, o jazz e o que já existia do então novato rock'n'roll, não pareciam com nada que houvesse sido feito antes.
Em concertos destinados a um público muito parecido com os próprios artistas, estas bandas se extendiam por horas, tocando qualquer coisa que fosse condizente com as experiências psicodélicas experimentadas, na plateia e no palco, graças à ajuda supostamente libertadora do LSD. Uma dessas bandas, que originalmente se autodenominava um grupo de blues, fazia improvisações longuíssimas, seguindo a empolgação própria e dos ouvintes que se aglomeravam em número cada vez maior para ver seus shows.
Os músicos em questão, que eram quatro que viraram cinco e voltaram a ser quatro, tinham empregos ou estudavam (pelo menos um deles até gostava do que fazia), mas já então largaram tudo pela "carreira" musical. Mas aqueles não eram tempos de shows pequenos, e a banda em pouco tempo se "profissionalizou". O sucesso de Dark Side of the Moon jogou os quatro membros do Pink Floyd (já sem a presença de Syd Barrett) no mundo do estrelato, do dinheiro e dos mega concertos pirotécnicos em estádios lotados. Mas algo muito curioso aconteceu.
Em primeiro lugar, é notável, nos discos posteriores, um certo rancor contra este mundo. Em segundo lugar, manteve-se sempre um excesso de menções ao membro ausente. São duas coisas, à primeira vista, difíceis de explicar.
A primeira questão é ainda mais complexa do que parece. A aversão à fama é relativamente comum e poderia explicar por que uma banda que atinge tamanho sucesso faria um álbum como o The Wall, que conta a história de um rockstar depressivo. No entanto, mais relevante para a história da banda do que o conto de Pink é a alienação deste em relação ao mundo e a todos. A música Hey You é icônica desse sentimento de distância, quando o eu-lírico se dirige a um ouvinte igualmente alienado com a pergunta: Can you feel me? A idéia, aliás, se repetiria em álbuns futuros, particularmente em Wish You Were Here (album particularmente relevante para o segundo ponto a ser discutido), nas músicas Welcome to the Machine e Have a Cigar (“By the way, which one is Pink?”). A entrada da banda para a indústria fez com que ela perdesse todo o contato que tinha com seu público, ficando nas mãos de quem nem sabia os nomes de seus integrantes. O ápice dessa situação foi a cusparada disparada por Roger Waters em um fã que, em um show, não parava de gritar — para ele, não fazia diferença o que estava sendo tocado; não havia uma conversa efetiva.
Sobre Syd Barrett, o caso também me intrigava muito. Syd participou da criação da banda, é verdade, mas já não fazia parte dela quando o Pink Floyd virou o que é. Por mais que se alegue que sua influência permaneceu, é difícil dizer que aquela banda psicodélica é a mesma que se consagraria depois. Além disso, outras bandas perderam integrantes sem que se criasse tanto alarde. Em parte, foi só por causa deste mistério que eu fiz questão de me informar sobre o passado do Pink Floyd. E o que descobri é que o Syd, um cara carismático, espontâneo e vanguardista, não representa apenas algo que o Pink Floyd foi um dia, mas também algo que a banda, ao longo de sua trajetória, continuou a querer ser. É de se questionar se Syd teria suportado o que a banda virou, caso não tivesse, ele também (mas, é claro, de outro modo), se alienado.
Essa, é claro, é a história de uma banda. Mas também é a história de uma forma de se fazer música. Uma forma caracterizada pelo poder da indústria, pelas multidões, pela idolatria quase cega às estrelas. E uma história que, como a do Pink Floyd (Live 8s à parte), parece estar a ponto de terminar.
A venda de CDs não é mais o que já foi. Apesar do choro das empresas do ramo, ainda vende-se música — e não apenas música virtual —, mas é claro que este mercado vai se limitar cada vez mais, até ficar restrito a colecionadores, a gente que não sabe usar a internet ou a loucos de toda sorte. A Warner, a Universal e suas amiguinhas vão-nos dizer que esse é o fim da música, enquanto qualquer clube da Rua Augusta e suas dezenas de excelentes bandas novas vão dizer que, bem, talvez não seja pra tanto. De todo modo, porém, algo está acontecendo.
Quando não se ganhar mais dinheiro com venda de CDs, o dinheiro vai vir das apresentações ao vivo. O boom de grandes concertos e festivais no Brasil é sinal disso, e as estatísticas estão por aí. Quem quiser números pode procurar a Piauí de novembro de 2011 (vejam como aspiro à imortalidade), mas a mudança é mais ou menos óbvia. O importante mesmo são as implicações dessa mudança.
Por enquanto, mesmo com a diminuição da dependência dos artistas em relação às gravadoras, ainda há uma força muito poderosa na determinação de quem vai dar certo e quem não vai, e que é capaz de criar sucessos como o do Pink Floyd. É uma força contrária à tendência proporcionada pela internet — esta tenda a dar pouca influência a cada banda individual, mas a distribuir a atenção a um número enorme, infinito de grupos —, mas que está longe de ser moribunda, como é o caso dos CDs. Trata-se da mídia.
Ao contrário das grandes empresas de gravação e distribuição, o rádio e a TV não são grandes vilões no imaginário popular. Eles tocam as músicas que a gente conhece e ama e nem nos cobram por isso. O Queen gosta do rádio. O Dire Straits gosta (?) da MTV. Por Deus, eu não sei se sobreviveria sabendo que a Mit FM não existe mais.
É por isso que me dói dizer isso, mas o rádio também vai morrer. Pode ser que demore anos, décadas, mas o que a gente conhece como rádio não vai sobreviver. E, é claro, a TV vai segui-lo de perto. Mídias de caminho único, em que o espectador é mudo (ou, no máximo, contribui “mandando sua programação discando para 7777-7777!”) não podem durar no nosso mundo. Elas são um resquício de um tempo morto, são algo que a gente guarda por pura nostalgia ou, no máximo, por comodismo. Como aquele quadro renascentista ou qualquer outro bibelô anacrônico de que não conseguimos nos desfazer. Mas um dia a gente vai seguir em frente, ou então nossos filhos e netos, que não terão o mesmo carinho por essas velharias, o farão por nós. E, como os quadros renascentistas, um dia essas mídias serão peças de museu.
Nesse dia, a história da música dos superstars terá acabado — salvo, é claro, pelo Live 8 ocasional. Dizer isso pode machucar os sentimentos de alguém, então vou fazê-lo logo: nunca mais teremos outros Beatles. Nunca mais. Nunca mais teremos o mundo inteiro cantando a mesma música, gostando do mesmo cantor, idolatrando a mesma celebridade musical.
E não se engane: essa vai ser a melhor coisa que vai acontecer para a música nos últimos cento e tantos anos. Porque, se não teremos mais uma oligarquia em que alguns poucos músicos encantam milhões de fãs, teremos milhões de músicos encantando dezenas de fãs. A música vai ser aquilo que ela nasceu para ser: a mais pessoal das experiências coletivas. Será comunicação de verdade, como era quando nasceu, nas rodas pequenas, imagino, em volta da fogueira. E o mais lindo de tudo é que isso ocorrerá de duas formas completamente diferentes — opostas, até. Por um lado, teremos uma experiência individual coletivizada: a pessoa que ouve uma mp3 em casa, mas que a compartilha com os amigos ou com desconhecidos pela internet. De outro lado, uma experiência coletiva — os concertos, as festas — serão individualizadas, à medida em que o músico poderá olhar nos olhos de quem está à sua frente, falar-lhe diretamente. Nunca mais haverá um Pink Floyd que fature milhões, mas também nunca mais se precisará cuspir em alguém que, da primeira fileira, pareça distante a ponto de não poder sentir o cantor.
Em concertos destinados a um público muito parecido com os próprios artistas, estas bandas se extendiam por horas, tocando qualquer coisa que fosse condizente com as experiências psicodélicas experimentadas, na plateia e no palco, graças à ajuda supostamente libertadora do LSD. Uma dessas bandas, que originalmente se autodenominava um grupo de blues, fazia improvisações longuíssimas, seguindo a empolgação própria e dos ouvintes que se aglomeravam em número cada vez maior para ver seus shows.
Os músicos em questão, que eram quatro que viraram cinco e voltaram a ser quatro, tinham empregos ou estudavam (pelo menos um deles até gostava do que fazia), mas já então largaram tudo pela "carreira" musical. Mas aqueles não eram tempos de shows pequenos, e a banda em pouco tempo se "profissionalizou". O sucesso de Dark Side of the Moon jogou os quatro membros do Pink Floyd (já sem a presença de Syd Barrett) no mundo do estrelato, do dinheiro e dos mega concertos pirotécnicos em estádios lotados. Mas algo muito curioso aconteceu.
Em primeiro lugar, é notável, nos discos posteriores, um certo rancor contra este mundo. Em segundo lugar, manteve-se sempre um excesso de menções ao membro ausente. São duas coisas, à primeira vista, difíceis de explicar.
A primeira questão é ainda mais complexa do que parece. A aversão à fama é relativamente comum e poderia explicar por que uma banda que atinge tamanho sucesso faria um álbum como o The Wall, que conta a história de um rockstar depressivo. No entanto, mais relevante para a história da banda do que o conto de Pink é a alienação deste em relação ao mundo e a todos. A música Hey You é icônica desse sentimento de distância, quando o eu-lírico se dirige a um ouvinte igualmente alienado com a pergunta: Can you feel me? A idéia, aliás, se repetiria em álbuns futuros, particularmente em Wish You Were Here (album particularmente relevante para o segundo ponto a ser discutido), nas músicas Welcome to the Machine e Have a Cigar (“By the way, which one is Pink?”). A entrada da banda para a indústria fez com que ela perdesse todo o contato que tinha com seu público, ficando nas mãos de quem nem sabia os nomes de seus integrantes. O ápice dessa situação foi a cusparada disparada por Roger Waters em um fã que, em um show, não parava de gritar — para ele, não fazia diferença o que estava sendo tocado; não havia uma conversa efetiva.
Sobre Syd Barrett, o caso também me intrigava muito. Syd participou da criação da banda, é verdade, mas já não fazia parte dela quando o Pink Floyd virou o que é. Por mais que se alegue que sua influência permaneceu, é difícil dizer que aquela banda psicodélica é a mesma que se consagraria depois. Além disso, outras bandas perderam integrantes sem que se criasse tanto alarde. Em parte, foi só por causa deste mistério que eu fiz questão de me informar sobre o passado do Pink Floyd. E o que descobri é que o Syd, um cara carismático, espontâneo e vanguardista, não representa apenas algo que o Pink Floyd foi um dia, mas também algo que a banda, ao longo de sua trajetória, continuou a querer ser. É de se questionar se Syd teria suportado o que a banda virou, caso não tivesse, ele também (mas, é claro, de outro modo), se alienado.
Essa, é claro, é a história de uma banda. Mas também é a história de uma forma de se fazer música. Uma forma caracterizada pelo poder da indústria, pelas multidões, pela idolatria quase cega às estrelas. E uma história que, como a do Pink Floyd (Live 8s à parte), parece estar a ponto de terminar.
A venda de CDs não é mais o que já foi. Apesar do choro das empresas do ramo, ainda vende-se música — e não apenas música virtual —, mas é claro que este mercado vai se limitar cada vez mais, até ficar restrito a colecionadores, a gente que não sabe usar a internet ou a loucos de toda sorte. A Warner, a Universal e suas amiguinhas vão-nos dizer que esse é o fim da música, enquanto qualquer clube da Rua Augusta e suas dezenas de excelentes bandas novas vão dizer que, bem, talvez não seja pra tanto. De todo modo, porém, algo está acontecendo.
Quando não se ganhar mais dinheiro com venda de CDs, o dinheiro vai vir das apresentações ao vivo. O boom de grandes concertos e festivais no Brasil é sinal disso, e as estatísticas estão por aí. Quem quiser números pode procurar a Piauí de novembro de 2011 (vejam como aspiro à imortalidade), mas a mudança é mais ou menos óbvia. O importante mesmo são as implicações dessa mudança.
Por enquanto, mesmo com a diminuição da dependência dos artistas em relação às gravadoras, ainda há uma força muito poderosa na determinação de quem vai dar certo e quem não vai, e que é capaz de criar sucessos como o do Pink Floyd. É uma força contrária à tendência proporcionada pela internet — esta tenda a dar pouca influência a cada banda individual, mas a distribuir a atenção a um número enorme, infinito de grupos —, mas que está longe de ser moribunda, como é o caso dos CDs. Trata-se da mídia.
Ao contrário das grandes empresas de gravação e distribuição, o rádio e a TV não são grandes vilões no imaginário popular. Eles tocam as músicas que a gente conhece e ama e nem nos cobram por isso. O Queen gosta do rádio. O Dire Straits gosta (?) da MTV. Por Deus, eu não sei se sobreviveria sabendo que a Mit FM não existe mais.
É por isso que me dói dizer isso, mas o rádio também vai morrer. Pode ser que demore anos, décadas, mas o que a gente conhece como rádio não vai sobreviver. E, é claro, a TV vai segui-lo de perto. Mídias de caminho único, em que o espectador é mudo (ou, no máximo, contribui “mandando sua programação discando para 7777-7777!”) não podem durar no nosso mundo. Elas são um resquício de um tempo morto, são algo que a gente guarda por pura nostalgia ou, no máximo, por comodismo. Como aquele quadro renascentista ou qualquer outro bibelô anacrônico de que não conseguimos nos desfazer. Mas um dia a gente vai seguir em frente, ou então nossos filhos e netos, que não terão o mesmo carinho por essas velharias, o farão por nós. E, como os quadros renascentistas, um dia essas mídias serão peças de museu.
Nesse dia, a história da música dos superstars terá acabado — salvo, é claro, pelo Live 8 ocasional. Dizer isso pode machucar os sentimentos de alguém, então vou fazê-lo logo: nunca mais teremos outros Beatles. Nunca mais. Nunca mais teremos o mundo inteiro cantando a mesma música, gostando do mesmo cantor, idolatrando a mesma celebridade musical.
E não se engane: essa vai ser a melhor coisa que vai acontecer para a música nos últimos cento e tantos anos. Porque, se não teremos mais uma oligarquia em que alguns poucos músicos encantam milhões de fãs, teremos milhões de músicos encantando dezenas de fãs. A música vai ser aquilo que ela nasceu para ser: a mais pessoal das experiências coletivas. Será comunicação de verdade, como era quando nasceu, nas rodas pequenas, imagino, em volta da fogueira. E o mais lindo de tudo é que isso ocorrerá de duas formas completamente diferentes — opostas, até. Por um lado, teremos uma experiência individual coletivizada: a pessoa que ouve uma mp3 em casa, mas que a compartilha com os amigos ou com desconhecidos pela internet. De outro lado, uma experiência coletiva — os concertos, as festas — serão individualizadas, à medida em que o músico poderá olhar nos olhos de quem está à sua frente, falar-lhe diretamente. Nunca mais haverá um Pink Floyd que fature milhões, mas também nunca mais se precisará cuspir em alguém que, da primeira fileira, pareça distante a ponto de não poder sentir o cantor.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Júlio Marins, atualmente com trinta e quatro anos, não tem um labrador nem um grande aquário marinho em seu apartamento duplex. Sequer tem um apartamento duplex. Em qualquer projeção que já fizera em toda a sua vida, mesmo naquelas feitas na véspera de seu último aniversário, Júlio sempre se vira aos trinta e quatro anos em um duplex, com um labrador e um grande aquário marinho com as mais escabrosas espécies de crustáceos e moluscos que pudesse encontrar.
Durante sua infância, Júlio notou um fenômeno metereológico até o momento inexplicado pela ciência mas que o perseguiu desde então: todos os seus bons desempenhos em avaliações eram precedidos por pequenas catástrofes climáticas, que envolveram ventanias mais ou menos controláveis e tempestades de verão, chegando ao Furacão Catarina, na data de divulgação de sua última nota antes da formatura em uma faculdade particular de Santa Catarina e culminando nas enchentes de 2008, ano em que concluiu seu mestrado em Comunicações. No campo profissional, sua sorte não era muito melhor e Júlio, já treinado para observar essas coincidências, rapidamente reparou que todas as bonificações, promoções e aumentos recebidos em seus dias como redator de uma revista de entretenimento corresponderam à morte de um grande ídolo ou de algum familiar — o que, em parte, explica sua atual atuação como free-lancer, bem como a ausência de um duplex, um labrador e um aquário em sua vida.
Sua maior sina, no entanto, são os assuntos do coração. Cada uma das mulheres que Júlio amou conseguiram, de alguma forma, machucar-lhe de uma forma que o fazia sentir-se destruído, torturado, assassinado.
Nada disso, porém, o desanima. "Vá lá que para cada passo à frente, dou também um para trás", diz. "Mas nunca parei de dançar".
Durante sua infância, Júlio notou um fenômeno metereológico até o momento inexplicado pela ciência mas que o perseguiu desde então: todos os seus bons desempenhos em avaliações eram precedidos por pequenas catástrofes climáticas, que envolveram ventanias mais ou menos controláveis e tempestades de verão, chegando ao Furacão Catarina, na data de divulgação de sua última nota antes da formatura em uma faculdade particular de Santa Catarina e culminando nas enchentes de 2008, ano em que concluiu seu mestrado em Comunicações. No campo profissional, sua sorte não era muito melhor e Júlio, já treinado para observar essas coincidências, rapidamente reparou que todas as bonificações, promoções e aumentos recebidos em seus dias como redator de uma revista de entretenimento corresponderam à morte de um grande ídolo ou de algum familiar — o que, em parte, explica sua atual atuação como free-lancer, bem como a ausência de um duplex, um labrador e um aquário em sua vida.
Sua maior sina, no entanto, são os assuntos do coração. Cada uma das mulheres que Júlio amou conseguiram, de alguma forma, machucar-lhe de uma forma que o fazia sentir-se destruído, torturado, assassinado.
Nada disso, porém, o desanima. "Vá lá que para cada passo à frente, dou também um para trás", diz. "Mas nunca parei de dançar".
terça-feira, 4 de outubro de 2011
Fim: Justiça em dois atos
Samuel Matias conseguiu, graças ao oportuno alerta de Najibah, esquivar-se de Park, quando este o atacou. Um tiro na têmpora fez o serviço, mas Samuel achou por bem disparar trinta e nove outras vezes para assegurar a morte do homem.Do fim do corredor, onde a luz fraca tremulava, ouviu-se a movimentação de centenas de milhares de homens.
Vamos!, gritou Samuel.
Najibah ainda não havia se adequado inteiramente à recente adição de um toco de madeira a seu corpo, mas correu como se tivesse três pernas,ao invés de apenas uma (o que significa que não corria tão bem quanto alguém que tivesse apenas duas). Deslizando ao fazer curvas pelo corredor outrora retilínio, ela manteve-se o tempo todo ao lado de Samuel, mesmo quando as balas zuniam a centímetros de seus corpos. Só muito depois é que notariam que estavam de mãos dadas.
Muito depois, depois de terem notado que estavam de mãos dadas, e depois inclusive de terem desdado as mãos, Samuel e Najibah se encontraram enfim em segurança, diante de uma fogueira nas montanhas áridas norte-coreanas.
O que faremos agora?, perguntou Samuel, que comia marshmallows. Como espeto, ele usava uma lasca da perna de pau de Najibah.
Najibah girava em suas mãos a pequena estatueta, a Spirit of Ecstasy, que de alguma forma ela continuara a chutar mesmo enquanto corria desesperadamente dos tiros.
Vamos para casa.
A sua casa? Ou a minha? E neste caso, você quer dizer o avião ou o Brasil? Porque eu bem que gostaria de um clima tropical...
A minha casa.
Você se refere àquela que eu carbonizei com chumbo quente?
Sim. Não, não, me refiro a Brunei!
Na medida em que era possível não guardar rancores de alguém que havia incendiado sua cidade, assassinado seus conhecidos e parentes e causado a amputação de sua perna, Najibah não guardava rancores de Samuel. Não agora, após tanto tempo e quando sua presença quente era a única que a afastava do frio do inverno coreano...
Você vem comigo?, ela perguntou, escondendo a ansiedade de sua voz na mensagem de que ele agora possuía uma escolha.
Samuel comeu um marshmallow demoradamente, com o olhar perdido.
É claro, ele disse. É claro que eu vou.
Em 1998, era comum a visitantes encontrar o sultão Hassanal Bolkiah debruçado sobre um automóvel em sua luxuosa garagem. Agora, porém, ele não se debruçava para esfregar alguma imperfeição da lavagem ou para admirar seu próprio reflexo, mas para manter-se o mais longe possível da faca que Najibah lhe pressionava contra a garganta.
Kim Jong-Il gosta de cinema, ela disse.
Samuel concordou com a cabeça, de forma encorajadora, mas o sultão não parecia entender a importância de tal fato ou sua relação com a proximidade daquela lâmina.
Ele nunca mandaria Samuel voar da Índia para Peshawar, ela explicou, porque ele saberia que isso seria uma repetição da trama de Horizonte Perdido. Ele saberia que o avião haveria de cair.
Mesmo o avião não tendo caído, disse Samuel, prestativo.
B-bom para ele, balbuciou o sultão.
Você, por outro lado, não gosta de cinema, Najibah continuou. Por outro lado (nessa hora, ela sacou a estatueta de metal), gosta da Rolls Royce, não?
Chutando Hassanal para o lado, ela encaixou a estatueta no buraco em cima do capô do automóvel. De repente, Samuel entendeu tudo.
Isso tudo foi um plano do sultão!, ele bradou. Ele me contratou, passando-se por Kim Jong-Il e aproveitando-se da minha incapacidade crônica de diferenciar qualquer um que não seja caucasiano, para atacar vilarejos da região. A intenção era atrair a atenção da mídia para tais atrocidades, o que levaria milionários do mundo todo, inclusive o Bill Gates, a realizar generosas doações às vítimas. Hassanal Bolkiah, assim, consolidar-se-ia mais uma vez como o homem mais rico do mundo. Era o plano perfeito.
Dizendo isso, Samuel rapidamente tomou a faca de Najibah. Em um único golpe, arrancou a cabeça do sultão, abriu sua barriga, introduziu a cabeça lá e costurou tudo de novo.
Ele estendeu a mão para Najibah.
Vamos para casa, disse, puxando-a.
Como todo casal que se encontra em meio a uma perseguição repleta de assassinatos, Samuel e Najibah tiveram suas dúvidas e suas brigas, mas resolveram-nas com uma viagem à praia.
Em Ubatuba, ambos recostavam-se à sombra de um chapéu de sol, enquanto as costas ardiam na areia quente. Najibah inclinou-se para o lado, fitando por baixo do chapéu de abas largas o rosto de Samuel.
Era isso o que você queria?, perguntou.
Isso e nada mais.
Então, está pronto?
Samuel virou-se para ela, sério, e pegou-lhe as mãos.
Najibah, ele disse, eu estou pronto para dar-lhe meu amor irrestrito. Você é dona do meu coração.
Poucos jornais noticiaram o caso. O paradeiro de Najibah é desconhecido.
Vamos!, gritou Samuel.
Najibah ainda não havia se adequado inteiramente à recente adição de um toco de madeira a seu corpo, mas correu como se tivesse três pernas,ao invés de apenas uma (o que significa que não corria tão bem quanto alguém que tivesse apenas duas). Deslizando ao fazer curvas pelo corredor outrora retilínio, ela manteve-se o tempo todo ao lado de Samuel, mesmo quando as balas zuniam a centímetros de seus corpos. Só muito depois é que notariam que estavam de mãos dadas.
Muito depois, depois de terem notado que estavam de mãos dadas, e depois inclusive de terem desdado as mãos, Samuel e Najibah se encontraram enfim em segurança, diante de uma fogueira nas montanhas áridas norte-coreanas.
O que faremos agora?, perguntou Samuel, que comia marshmallows. Como espeto, ele usava uma lasca da perna de pau de Najibah.
Najibah girava em suas mãos a pequena estatueta, a Spirit of Ecstasy, que de alguma forma ela continuara a chutar mesmo enquanto corria desesperadamente dos tiros.
Vamos para casa.
A sua casa? Ou a minha? E neste caso, você quer dizer o avião ou o Brasil? Porque eu bem que gostaria de um clima tropical...
A minha casa.
Você se refere àquela que eu carbonizei com chumbo quente?
Sim. Não, não, me refiro a Brunei!
Na medida em que era possível não guardar rancores de alguém que havia incendiado sua cidade, assassinado seus conhecidos e parentes e causado a amputação de sua perna, Najibah não guardava rancores de Samuel. Não agora, após tanto tempo e quando sua presença quente era a única que a afastava do frio do inverno coreano...
Você vem comigo?, ela perguntou, escondendo a ansiedade de sua voz na mensagem de que ele agora possuía uma escolha.
Samuel comeu um marshmallow demoradamente, com o olhar perdido.
É claro, ele disse. É claro que eu vou.
Em 1998, era comum a visitantes encontrar o sultão Hassanal Bolkiah debruçado sobre um automóvel em sua luxuosa garagem. Agora, porém, ele não se debruçava para esfregar alguma imperfeição da lavagem ou para admirar seu próprio reflexo, mas para manter-se o mais longe possível da faca que Najibah lhe pressionava contra a garganta.
Kim Jong-Il gosta de cinema, ela disse.
Samuel concordou com a cabeça, de forma encorajadora, mas o sultão não parecia entender a importância de tal fato ou sua relação com a proximidade daquela lâmina.
Ele nunca mandaria Samuel voar da Índia para Peshawar, ela explicou, porque ele saberia que isso seria uma repetição da trama de Horizonte Perdido. Ele saberia que o avião haveria de cair.
Mesmo o avião não tendo caído, disse Samuel, prestativo.
B-bom para ele, balbuciou o sultão.
Você, por outro lado, não gosta de cinema, Najibah continuou. Por outro lado (nessa hora, ela sacou a estatueta de metal), gosta da Rolls Royce, não?
Chutando Hassanal para o lado, ela encaixou a estatueta no buraco em cima do capô do automóvel. De repente, Samuel entendeu tudo.
Isso tudo foi um plano do sultão!, ele bradou. Ele me contratou, passando-se por Kim Jong-Il e aproveitando-se da minha incapacidade crônica de diferenciar qualquer um que não seja caucasiano, para atacar vilarejos da região. A intenção era atrair a atenção da mídia para tais atrocidades, o que levaria milionários do mundo todo, inclusive o Bill Gates, a realizar generosas doações às vítimas. Hassanal Bolkiah, assim, consolidar-se-ia mais uma vez como o homem mais rico do mundo. Era o plano perfeito.
Dizendo isso, Samuel rapidamente tomou a faca de Najibah. Em um único golpe, arrancou a cabeça do sultão, abriu sua barriga, introduziu a cabeça lá e costurou tudo de novo.
Ele estendeu a mão para Najibah.
Vamos para casa, disse, puxando-a.
Como todo casal que se encontra em meio a uma perseguição repleta de assassinatos, Samuel e Najibah tiveram suas dúvidas e suas brigas, mas resolveram-nas com uma viagem à praia.
Em Ubatuba, ambos recostavam-se à sombra de um chapéu de sol, enquanto as costas ardiam na areia quente. Najibah inclinou-se para o lado, fitando por baixo do chapéu de abas largas o rosto de Samuel.
Era isso o que você queria?, perguntou.
Isso e nada mais.
Então, está pronto?
Samuel virou-se para ela, sério, e pegou-lhe as mãos.
Najibah, ele disse, eu estou pronto para dar-lhe meu amor irrestrito. Você é dona do meu coração.
Poucos jornais noticiaram o caso. O paradeiro de Najibah é desconhecido.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
Batida de asas de borboletas e o estreito caminho das grandes verdades humanas
Algo o incomodava.
Podia ser a escuridão
absoluta que absolutamente escurecia naquele absolutamente escuro
corredor. Podia ser o mero fato de estar ali, tomado de uma só vez
refém e guardião da moça que deveria ter sido apenas mais uma
vítima, indo de encontro a Kim Jon-Il, seu ex-empregador e atual
inimigo. Podia ser o tilim-toc-tilim que Najibah fazia ao chutar, com
a perna de pau, um objeto qualquer que ela achara ao longo do
corredor e que, inexplicavelmente, não perdia na escuridão.
Fosse por quê fosse,
Samuel Matias descontava seu incômodo falando sem parar.
Algo a incomodava.
Podia ser a escuridão
absoluta que absolutamente escurecia naquele absolutamente escuro
corredor. Podia ser o fato de ter perdido tudo o que tinha, inclusive
uma perna, e de ter tido que se unir a seu algoz para ter qualquer
esperança de alcançar a almejada Vingança. Podia ser o maldito
objeto que ela não parava de chutar com sua perna de pau, fazendo
tilim-toc-tilim – mesmo quando ela tentava andar no curso mais
aleatório possível, na compreensível expectativa de que isso a
faria errá-lo. Ou podia ser o fato de que Samuel Matias falava sem
parar.
...e então eu cheguei
à Coreia do Norte, onde fui apresentado a ele pela primeira vez. E
ele simplesmente disse para mim: Voe por aí, despeje cobre derretido
ou o metal que mais lhe aprazer sobre os vilarejos, divirta-se. E eu
pensei: Oras, por que não?, e...
Quanto tempo fazia que
andavam? Najibah havia tentado contar seus passos ao longo do
corredor, mas perdeu a conta quando o tilim-toc-tilim começou a lhe
irritar demasiadamente. Por que Jim Jong-Il estaria em um lugar como
esse? Certamente era seguro, mas algo parecia errado.
...mas claro que as
crianças tinham gritos mais agudos, então eu acabava dando alguma
preferência a elas, veja bem, por questões estéticas, apenas, já
que no mais, era totalmente imparcial, palavra!...
Park, o homem gordo que
os liderava, se fazia saber apenas pelo som dos passos. Ela prestava
atenção. Não havia nenhuma irregularidade no andar dele, pelo
contrário. Era firme, decidido, embora não fosse valente. Além
disso, ele fedia a medo e, numa situação dessas, medo indicava
honestidade.
...e no outro dia ele
já estava animado novamente, então me disse: Voe para a Índia e de
lá para o Paquistão e eu disse Paquistão? e ele disse Sim, para
Peshawar e eu disse oras, claro, por que não? e...
Toda a situação era
um aborrecimento completo, ainda mais porque a perna de pau lhe doía,
mas finalmente Najibah avistava ao longe indícios de iluminação.
Ela estancou.
O que você disse?
Hein?
Sobre o Paquistão. O
que Kim Jong-Il lhe pediu?
Para ir da Índia para
Peshawar, porque lá...
Não.
Não?
Não. Ele não disse.
Ele não diria isso.
Por que não?
Porque ele gosta de
cinema. Se você fosse da Índia para Peshawar, você teria que fazer
um pouso forçado e ir para Shangri-la.
É?
Definitivamente.
Então ele queria que
eu caísse? Porque eu não caí, e...
Não, ele não queria
nada, na verdade...
Ela se abaixou, tateou
o chão. Suas mãos encontraram a peça de metal, o tilim de seus
tocs. À pouca luz que agora havia no túnel, Najibah examinou o
objeto. Era o Spirit of Ecstasy.
Samuel, ela disse,
enquanto Park a chutava para o chão e imobilizava o outro, é uma
armadilha.
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Tenebrosa, assombrosa e espantosa caçada ao querido líder
Samuel Matias correu para trás de um pilar e sentiu a bala passar zunindo a poucos centímetros de seu braço esquerdo. Sem olhar, ele disparou três tiros na direção de origem da bala itinerante e continuou em direção a um corredor escuro. À sua frente, Najibah segurava uma pistola com a mão esquerda enquanto estancava um sangramento com a mão direita e fazia toc-toc-toc com a perna de pau.
Eles estavam juntos havia três semanas. Ao longo deste tempo, Samuel realizou cento e oitenta e nove tentativas de fuga, todas elas resultando em sua inexorável captura e em demonstrações convincentes, por parte de Najibah, de que enfrentar norte-coreanos armados era uma perspectiva menos dolorosa do que continuar tentando fugir (Samuel tinha, no fim das contas, alguma dificuldade para assimilar conceitos), de forma que agora ele já não procurava mais por portas nos quartéis-generais inimigos que lembrassem saídas de serviço.
Ao invés disso, ele seguia Najibah, dando-lhe cobertura e matando centenas de norte-coreanos todos os dias, o que, no mais, também não lhe era muito menos divertido do que sobrevoar povoados despejando ferro sobre camponeses. Durante estes vinte dias, eles haviam invadido quase trinta postos militares, matado todas as pessoas lá dentro e (em geral, mas nem sempre, antes) conseguido informações que os levassem mais perto de finalmente encararem Kim Jong-Il frente a frente.
Agora, ambos corriam em mais um desses quartéis, Najibah empenhada em seguir em frente e Samuel preocupado em mantê-los vivos. Najibah fez uma curva repentina, entrando em uma sala grande, com dezenas de militares, que Samuel eliminou com apenas quatro disparos. Najibah olhou para ele e sorriu, deixando-o pensativo enquanto seguiam em frente, abrindo a última sala inexplorada.
Espere, ela disse, quando ele entrou com a arma a postos. Na sala, havia apenas uma mesa de madeira escura, atrás da qual estava sentado um homem rotundo, suado, de olhos expremidos e respiração nervosa.
Precisamos chegar a Kim Jong-Il, disse Najibah, indicativa.
Não me matem!, disse o homem, imperativo.
Talvez não o matemos, disse Samuel, subjuntivo (e também mentiroso), se você colaborar.
Está bem, está bem (começavam a se repetir), disse o homem. Eu os levo até ele.
Najibah ficou atônita por algum tempo. Nos leva até ele?, perguntou. Você não vai nos dar uma dica em forma de charada ou coisa do tipo, como tem ocorrido até agora? Vai realmente nos levar até ele?
O homem, que, por praticidade narrativa, adianto se chamar Park, praguejou diante de sua falta de criatividade, mas confirmou: Sim, levo.
Erguendo-se, Park empurrou a mesa e revelou um alçapão.
De fato, disse, Kim Jong-Il se encontra a poucos minutos daqui.
Eles estavam juntos havia três semanas. Ao longo deste tempo, Samuel realizou cento e oitenta e nove tentativas de fuga, todas elas resultando em sua inexorável captura e em demonstrações convincentes, por parte de Najibah, de que enfrentar norte-coreanos armados era uma perspectiva menos dolorosa do que continuar tentando fugir (Samuel tinha, no fim das contas, alguma dificuldade para assimilar conceitos), de forma que agora ele já não procurava mais por portas nos quartéis-generais inimigos que lembrassem saídas de serviço.
Ao invés disso, ele seguia Najibah, dando-lhe cobertura e matando centenas de norte-coreanos todos os dias, o que, no mais, também não lhe era muito menos divertido do que sobrevoar povoados despejando ferro sobre camponeses. Durante estes vinte dias, eles haviam invadido quase trinta postos militares, matado todas as pessoas lá dentro e (em geral, mas nem sempre, antes) conseguido informações que os levassem mais perto de finalmente encararem Kim Jong-Il frente a frente.
Agora, ambos corriam em mais um desses quartéis, Najibah empenhada em seguir em frente e Samuel preocupado em mantê-los vivos. Najibah fez uma curva repentina, entrando em uma sala grande, com dezenas de militares, que Samuel eliminou com apenas quatro disparos. Najibah olhou para ele e sorriu, deixando-o pensativo enquanto seguiam em frente, abrindo a última sala inexplorada.
Espere, ela disse, quando ele entrou com a arma a postos. Na sala, havia apenas uma mesa de madeira escura, atrás da qual estava sentado um homem rotundo, suado, de olhos expremidos e respiração nervosa.
Precisamos chegar a Kim Jong-Il, disse Najibah, indicativa.
Não me matem!, disse o homem, imperativo.
Talvez não o matemos, disse Samuel, subjuntivo (e também mentiroso), se você colaborar.
Está bem, está bem (começavam a se repetir), disse o homem. Eu os levo até ele.
Najibah ficou atônita por algum tempo. Nos leva até ele?, perguntou. Você não vai nos dar uma dica em forma de charada ou coisa do tipo, como tem ocorrido até agora? Vai realmente nos levar até ele?
O homem, que, por praticidade narrativa, adianto se chamar Park, praguejou diante de sua falta de criatividade, mas confirmou: Sim, levo.
Erguendo-se, Park empurrou a mesa e revelou um alçapão.
De fato, disse, Kim Jong-Il se encontra a poucos minutos daqui.
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
Quando eu vi o mar, era o último dia do ano e de dezembro. Havia duas meninas atrás de mim, eu não as via porque elas estavam atrás de mim, mas eram duas meninas porque tinham vozes de meninas, e elas falavam comigo mesmo sem eu as estar vendo. Uma me dizia: "Marina, olhe lá, um navio", e eu me divertia porque não me chamo Marina, me chamo José, e não sei por que ela me chamava assim (devia ser porque eu não havia dito meu nome de verdade), mas ainda assim eu olhava e via o navio e era bonito, mesmo, vê-lo assim, refletindo o resto de luz do sol. A outra, tadinha, era ainda mais confusa, dizia: "É mesmo, Alice, e logo ali vai outro", e eu fazia esforço pra não rir, que também não chamo Alice.
As duas ficaram horas e horas, ali, me dizendo as coisas mais absurdas sobre o céu e sobre como em breve haveria fogos e sobre como o tempo estava bom. Conforme a praia enchia, mais gente se apertava na areia, algumas à minha frente, de costas, outras dos meus lados ou do lado das duas meninas que falavam comigo. Essas outras pessoas também me diziam todo tipo de coisa, me diziam "Olha, mãe (mas eu não sou mãe de ninguém, é claro), um passarinho (mas era um morcego, mas quando os morcegos voam bem depressa, no escuro, quem poderia dizer que não são passarinhos?)", ou "Aqueles bolinhos, juro por Deus, não me fizeram bem", ou até "Me dá mais um pouco dessa cerveja", embora eu não tivesse cerveja nenhuma, não soubesse de bolinhos nenhuns, então eu ria, ria.
Acho que foi a melhor noite de 31 do mundo, com tanta gente ali, e eu só fiquei triste por um minutinho, quando alguém disse "Olha ali, um velhinho rindo sozinho", e eu fiquei chateado de pensar nesse velhinho, coitado, sem ninguém pra falar com ele como todo mundo falava comigo.
As duas ficaram horas e horas, ali, me dizendo as coisas mais absurdas sobre o céu e sobre como em breve haveria fogos e sobre como o tempo estava bom. Conforme a praia enchia, mais gente se apertava na areia, algumas à minha frente, de costas, outras dos meus lados ou do lado das duas meninas que falavam comigo. Essas outras pessoas também me diziam todo tipo de coisa, me diziam "Olha, mãe (mas eu não sou mãe de ninguém, é claro), um passarinho (mas era um morcego, mas quando os morcegos voam bem depressa, no escuro, quem poderia dizer que não são passarinhos?)", ou "Aqueles bolinhos, juro por Deus, não me fizeram bem", ou até "Me dá mais um pouco dessa cerveja", embora eu não tivesse cerveja nenhuma, não soubesse de bolinhos nenhuns, então eu ria, ria.
Acho que foi a melhor noite de 31 do mundo, com tanta gente ali, e eu só fiquei triste por um minutinho, quando alguém disse "Olha ali, um velhinho rindo sozinho", e eu fiquei chateado de pensar nesse velhinho, coitado, sem ninguém pra falar com ele como todo mundo falava comigo.
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
Dê-me seu coração e eu lhe darei cinquenta e três facadas
Samuel Matias tinha uma espécie muito particular de medo de aviões: apesar de passar a maior parte das suas horas despertas voando, e de encontrar grande prazer nesta atividade, lhe provocava arrepios a mera ideia de permanecer dentro de uma aeronave no solo. Isto não é natural, diria ele a qualquer um que lhe indagasse os motivos, acaso houvesse no mundo quem lhe indagasse qualquer coisa. Por isso, tinha o costume de gastar os poentes à procura de locais abertos em que pudesse pousar, em geral em campos próximos às grandes cidades, e passar a noite, dormindo na grama à luz do céu e sob a proteção das asas negras do boing.
Encontrava-se assim o nosso herói quando lhe arranca do sono o toque suave de uma mão em seu ombro. Seus olhos levam algum tempo para se ajustar à luz do sol antes que ele perceba, diante de si, o sorriso terrível da jovem que a ele se dirigia. Somente alguns minutos depois, já imobilizado e amarrado, ele viria a perceber que ela mancava.
Não lhe agradava muito o sabor do sangue escorrendo para a boca, e também era um pouco incômodo enxergar com os olhos inchados, mas o que o aborrecia mais era a claustrofobia qualificada de estar no avião pousado. À sua frente, Najibah, tirava um prazer vingativo do desconforto de sua vítima, enquanto sacolejava um bastão de ferro entre as pernas do homem.
Não que fizesse alguma diferença, mas algo nela demandava uma explicação para o ocorrido, de forma que ela perguntou a ele, afinal, o que levava um sujeito a cruzar o planeta para derramar chumbo derretido em povoados que nunca lhe haviam ofendido.
Diga-me, disse ela, e então eu arrancarei seu coração.
A consequência inevitável da demanda tornava um pouco menos tentadora a ideia de dar-lhe uma resposta, de modo que, a fim de dar-lhe convicção, Najibah fê-la acompanhar por algumas pancadas certeiras do bastão, até que Samuel respondesse em gritos agudos que faziam pouca jus ao conteúdo das palavras: Culpe Kim Jong-Il.
Embora não houvesse nada em nenhum de seus passados possíveis que justificasse tal fato, Najibah era uma pessoa estranhamente politizada para uma camponesa cujas belezas módicas e (mais recentemente) a debilidade de uma das pernas eram compensadas pelo esforço incansável no arado e (mais recentemente) na busca por um único homem, a quem dera o nome de Duque de Chumbo. Diante da revelação, porém, uma nova vendeta se anunciava, de forma que ela abaixou o bastão e declarou ao homem a seus pés:
Você me ajudará a chegar a ele. E então eu arrancarei seus corações.
Encontrava-se assim o nosso herói quando lhe arranca do sono o toque suave de uma mão em seu ombro. Seus olhos levam algum tempo para se ajustar à luz do sol antes que ele perceba, diante de si, o sorriso terrível da jovem que a ele se dirigia. Somente alguns minutos depois, já imobilizado e amarrado, ele viria a perceber que ela mancava.
Não lhe agradava muito o sabor do sangue escorrendo para a boca, e também era um pouco incômodo enxergar com os olhos inchados, mas o que o aborrecia mais era a claustrofobia qualificada de estar no avião pousado. À sua frente, Najibah, tirava um prazer vingativo do desconforto de sua vítima, enquanto sacolejava um bastão de ferro entre as pernas do homem.
Não que fizesse alguma diferença, mas algo nela demandava uma explicação para o ocorrido, de forma que ela perguntou a ele, afinal, o que levava um sujeito a cruzar o planeta para derramar chumbo derretido em povoados que nunca lhe haviam ofendido.
Diga-me, disse ela, e então eu arrancarei seu coração.
A consequência inevitável da demanda tornava um pouco menos tentadora a ideia de dar-lhe uma resposta, de modo que, a fim de dar-lhe convicção, Najibah fê-la acompanhar por algumas pancadas certeiras do bastão, até que Samuel respondesse em gritos agudos que faziam pouca jus ao conteúdo das palavras: Culpe Kim Jong-Il.
Embora não houvesse nada em nenhum de seus passados possíveis que justificasse tal fato, Najibah era uma pessoa estranhamente politizada para uma camponesa cujas belezas módicas e (mais recentemente) a debilidade de uma das pernas eram compensadas pelo esforço incansável no arado e (mais recentemente) na busca por um único homem, a quem dera o nome de Duque de Chumbo. Diante da revelação, porém, uma nova vendeta se anunciava, de forma que ela abaixou o bastão e declarou ao homem a seus pés:
Você me ajudará a chegar a ele. E então eu arrancarei seus corações.
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
Chuva e sol
Samuel Matias era um sujeito de não muito mais que um metro e meio e com o peso aproximado de um cachorro de médio porte, mas quando ele carregava dezenas de toneladas de chumbo incandescente por sobre pequenos vilarejos do sudeste asiático, despejando-os eventualmente sobre um ou outro povoado, ninguém o diria. Ele sentia algum prazer, é claro, em ver as famílias correndo desesperada e inultilmente para fora do trajeto de seu boing preto, divertindo-se em atingir sempre aqueles que mais lhe chamavam a atenção na multidão, mas não se deixe enganar: havia muito pouco de lúdico em seu trabalho e, na verdade, tratava-se de serviço oficial e aparentemente de suma importância, embora ele nunca houvesse entendido quais os motivos exatos que levaram o governo norte-coreano a contratar um brasileiro para atirar metal quente sobre vilarejos aleatórios (pois ele tinha total discricionariedade em escolher aqueles que mais lhe aprazessem) do referido sudeste asiático. A ignorância é uma bênção, ele costumava dizer, em meio a seus rasantes flamejantes.
Em 1997, o sultão Hassanal Bolkiah, de Brunei, foi eleito o homem mais rico do mundo, superando o americano Bill Gates em patrimônio e em cuidado com o cavanhaque — que era podado meticulosamente por, presume-se, um grupo de funcionárias especificamente contratadas para este fim. A despeito das muitas críticas às suas prioridades, vindas de gente que argumentava que Gates nem sequer possuía um cavanhaque, o sultão seguia bem com sua coleção de automóveis, aviões e descaso para com a situação dos habitantes de seu sultanato.
Nessa época, vivia naquelas terras a jovem Najibah, que compensava as feições modestas com a dedicação dobrada no trabalho (dedicava-se ao cultivo de variados grãos) e no cuidado com a família. Najibah tinha poucos motivos para crer, mas jamais questionara sua fé na fortuna trazida pelos céus, ao menos até o dia em que deles vieram as gotas ferventes de metal derretido, despejadas sem aviso por um distante avião negro. Enquanto sua perna esquerda era consumida pelo calor vulcânico, Najibah pensou ter ouvido um riso ao longe. Ela, que nunca havia questionado a razão de suas mazelas e dificuldades, diante de tão deliberado ato de crueldade, jurou encontrar uma justificativa.
Em 1997, o sultão Hassanal Bolkiah, de Brunei, foi eleito o homem mais rico do mundo, superando o americano Bill Gates em patrimônio e em cuidado com o cavanhaque — que era podado meticulosamente por, presume-se, um grupo de funcionárias especificamente contratadas para este fim. A despeito das muitas críticas às suas prioridades, vindas de gente que argumentava que Gates nem sequer possuía um cavanhaque, o sultão seguia bem com sua coleção de automóveis, aviões e descaso para com a situação dos habitantes de seu sultanato.
Nessa época, vivia naquelas terras a jovem Najibah, que compensava as feições modestas com a dedicação dobrada no trabalho (dedicava-se ao cultivo de variados grãos) e no cuidado com a família. Najibah tinha poucos motivos para crer, mas jamais questionara sua fé na fortuna trazida pelos céus, ao menos até o dia em que deles vieram as gotas ferventes de metal derretido, despejadas sem aviso por um distante avião negro. Enquanto sua perna esquerda era consumida pelo calor vulcânico, Najibah pensou ter ouvido um riso ao longe. Ela, que nunca havia questionado a razão de suas mazelas e dificuldades, diante de tão deliberado ato de crueldade, jurou encontrar uma justificativa.
E, mais importante, vingança.
terça-feira, 2 de agosto de 2011
Reabilitação
Queria ir porque sabia que ela lhe fazia mais mal do que bem, sabia que mesmo os melhores momentos eram só entorpescência e que os momentos ruins qualquer dia lhe fariam enfiar o carro em um poste, talvez matar alguém. Ele não queria matar ninguém, no máximo sentia impulsos semirresistíveis de machucar, mas tinha certeza de que eventualmente aconteceria, de que era uma possibilidade real quando se encontrava com a percepção, os reflexos, a coordenação -- por vezes até a visão -- debilitados.
Mesmo agora, quando buscava com todos os recursos uma desculpa para não ir, para não largá-la, para se afundar ainda mais, continuava achando difícil se convencer de que havia qualquer motivo que o impedisse. No entanto, e de novo, interrompeu-se antes de chegar à porta, suspirou, desistiu. Talvez porque fosse fraco, é claro. Talvez porque fosse forte demais.
Mesmo agora, quando buscava com todos os recursos uma desculpa para não ir, para não largá-la, para se afundar ainda mais, continuava achando difícil se convencer de que havia qualquer motivo que o impedisse. No entanto, e de novo, interrompeu-se antes de chegar à porta, suspirou, desistiu. Talvez porque fosse fraco, é claro. Talvez porque fosse forte demais.
quarta-feira, 13 de julho de 2011
Quando tudo mais tiver acabado (não exatamente porque as coisas se esgotem, mas porque são esquecidas, são ignoradas e porque, no fim, todas as pessoas do mundo acabam por fazer algum tipo de desconstrução descartiana e pensar que as coisas, como nossas certezas, são menos sólidas que um peido), eu gosto de acreditar que eu continuarei esperando. Porque todos os segundos de todos os dias, tudo acaba e sobro eu – com medo, claro, e sem nenhuma paciência, mas quase inteiro, quase firme, esperando.
Nem que, de vez em quando, eu precise juntar as mãos sobre as orelhas e fingir o mar; nem que eu precise criar riscos idiotas – é a pressa, é a pressa –; nem que eu corra, o tempo todo, ainda que não tenha para onde ir e ainda que seja justamente da falta de direção que eu corra; não importa. Essas coisas, aguenta-se: corro, mas fico por aqui.
E se tomasse um café? Não precisa ser um café, é claro, alguma coisa qualquer que me tomasse as perguntas, que diminuísse a tristeza preguiçosa de estar triste? Fazem bem os analgésicos? Os antidepressivos? Os remédios em geral? Fazem, fazem, ou devem fazer, mas por que eu sinto que minto com um bem-estar que não é meu, ou que não deveria ser? – afinal, não merecemos mais sorrisos na vida do que lágrimas e não deve ser Correto renegarmos assim uma porcentagem tão grande das experiências que se nos destinam. Isso tudo é só mentira, embora não seja pouco. (Como eu minto, também, quando mudo de eu-literatura para eu-direito ou apenas eu-profissional, porque como é que a gente pode não mentir quando se precisa ser sério e tudo o que se quer é destruir o mundo inteiro, um monstro de cada vez?) (É diferente com o álcool, eu me engano num brado, porque o álcool não me tira o sono ou a tristeza ou a alegria; no máximo, mos ampliam.) Não, não, melhor faço se seguro tudo como vier, ainda que isso acabe comigo, é claro. Melhor, até, que acabe comigo. Corro, mas fico por aqui.
Aliás, por aqui e esperando; que o que me falta em paciência, me sobra em esperança.
terça-feira, 12 de julho de 2011
Fere-as
Volta e meia eu tenho vontade de fumar, também, de deixar pra lá meus pulmões, minha asma, e também não é que eu tenha alguma curiosidade em particular quanto ao cigarro em si, ou quanto aos efeitos dele (relaxamento? queda de apetite?), mas às vezes eu tenho muita, muita, muita vontade de falar pra alguém Com licença, vou lá fora acender um cigarro, e aí sair e tomar um ar, sabe?, claro que sabe, esquece, porque você não pode simplesmente falar Vou lá tomar uma cerveja no meio do expediente, pode?, não pode e nem teria o mesmo estilo, eu acho, de eu colocar pra tocar Rock’n’Roll Suicide, que tem tudo a ver, também, né?, e aí iria fazendo conforme a música, You pull on a finger, then another finger, then your cigarette, wowowow, e ficaria ao vento, eu e o cigarro, por um, dois minutos, é estranho eu querer isso? Seria melhor, até, se eu não precisasse do cigarro.
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Férias
Não adianta se mudar para a praia. Isso não iria mudar as coisas, não iria resolver o problema. Não é o caso de procurar uma outra realidade e se atirar a ela para sempre até que você tenha uma nova rotina, um novo tipo de cansaço de espírito, talvez, mas um espírito cansado de qualquer maneira. Não confundam, amigos, sair da mesmice com transformar algo diferente em convencional. (E que se fodam as revoluções.)
Melhor do que trabalhar com algo de que se gosta, acho, é trabalhar para algo de que se gosta, é dizer todo dia Isto é temporário, é só até eu conseguir ******. Etc. Usar a rotina para a rotina, meu Deus, isso sim é que é triste. Juntar dinheiro para construir um lar, para ter as coisas de que precisamos sempre ou até (ouve-se por aí) para começar um negócio próprio, cruzes, é de atolar a pessoa, mesmo, é de destruir um serumano. Trabalhar pra ir embora, isso sim faz algum sentido. Contanto que se volte, sempre, porque não voltar é como não ter ido.
segunda-feira, 27 de junho de 2011
Frejk de Groot, o homem mais desinteressante do mundo
Frejk de Groot, o sujeito mais desinteressante do mundo, nasceu em Flandres durante a guerra dos cem anos, fato perigosamente interessante a ser incluído nesta biografia não autorizada. Até os dez anos de idade, sua principal atividade era ensinar os cachorros do vilarejo a urinar nas frutas expostas nos mercados ou nos tonéis de cerveja mantidos destampados pelos vizinhos menos cuidadosos, dando o sabor amargo que por muito tempo seria confundido com alguma especificidade do armazenamento de Ale de alta fermentação em barris de madeira.
A partir de então, o relato de sua juventude se complica, visto que alguma incerteza entre os historiadores da época resultou em mais de cento e setenta e cinco relatos de suas mortes nos mais variados locais e nas mais distintas datas. Ele teria sido atingido por uma flecha inglesa (EINEBALD, William, Vinte dias para a vitória, 1358) quinze dias depois de morrer torturado por franceses (HINESTEIN, Friedich, Lista de flamengos mortos entre 1350 e 1450, 1454) e sete meses antes de agonizar em chamas durante o incêndio de Limburgo (GARTIER, Pierre, Como ganhamos Vlaanderen, 1818).
O fato chamou a atenção de Henrique de la Nataña, historiador catalão que desenvolvia um estudo sobre a linhagem francesa dos Tissou, especialmente quando ele notou que a totalidade destas mortes ocorreu antes do ano de 1417, data em que Frejk teria matado Guillaume Tissou às margens do rio Demer.
Aprofundando suas pesquisas, o historiador observou que as versões acerca da morte e da vida de de Groot se baseavam em relatórios semi-oficiais registrados pelo condado em que vivia nos anos entre 1400 e 1437. Tomado por uma feliz epifania, Henrique imediatamente apagou de seus estudos todas as menções ao polimorrente holandês, recitando a desventura aos amigos mais íntimos e concluindo aos risos: Frejk de Groot não passara de um escriba ambicioso e bem humorado, ansioso por ter seu nome escrito (e reescrito) nos anais da História.
Henrique de la Nataña, hoje sabemos, foi o maior difusor de versões incorretas sobre fatos históricos, o que nos enche de otimismo ao lançarmo-nos à vida e à obra do jovem flamengo.
sexta-feira, 17 de junho de 2011
Bem te vi
Mesmo que, de longe, pareça tão sem cor,
alguém me disse que a cidade, por tão bela,
devia ser pintada toda amarela.
E que bonito, que bonito se assim for:
É sempre bom saber que ela está à janela,
ainda que seja assim, ao lado de outro amor:
fica tudo muito bem, enquanto me for
possível amarela, amarela, amarela.
alguém me disse que a cidade, por tão bela,
devia ser pintada toda amarela.
E que bonito, que bonito se assim for:
É sempre bom saber que ela está à janela,
ainda que seja assim, ao lado de outro amor:
fica tudo muito bem, enquanto me for
possível amarela, amarela, amarela.
quarta-feira, 1 de junho de 2011
The Id Anticipation
“1After her parents' divorce, Virgínia went to live with her mother and (as she then believed) stepfather, whom she hated – or tried to hate – because of her sister's accusation of him having torn apart her family. Virgínia couldn't get along with her stepfather, she couldn't get along with her mother – sick and mad, lost in hallucinations interrupted only by few minutes of lucidity – and she certainly couldn't get along with her other family, that is, her father, her sisters and their close friends, Augusto, Conrado and Letícia.
It hurt her to be alone, to be excluded, to be kept out of the dance. Hence, one day, when her mother – and, as she found out, the man who was actually her real father – died, Virgínia went to live with the others, believing she'd finally be accepted as part of the group. She wasn't.
So, she went to a catholic internship school where she couldn't fit as well, but she spent some years there and believed she had grown. This is probably when she started hallucinating as well, because after that the book started to narrate how she became the centre of the dance, how she became disputed by all those who despised her before etc.
Madness or not, fact is she then let herself be led, she bent to the gale, accepting the love and the generosity of whoever was closest. And, of course, she hurt everybody in the end, she left them all out of the dance, ultimately absolving them all”.
The ending is of course the best part of the story, the part that explains all the rest and the title of the book. But it's not what matters to me (right now, that is).
Let's take an imaginary character, whom i'll name L. She lives her life normally, unaware that she was constantly being victim of her neighbors' cruellest poison: she was judged daily.
It wasn't premeditated, but it was a crime: they saw her, her habits, her clothes, her doings. They talked about it. As casually as they talked about the weather, of course, and innocently, too, but they talked and they created imaginary stories and hence, they forced her to live many misadventures of which she wasn't even aware.
It started as mere observation, but soon it grew to be more than that. With friendly tones, people would stop her on the street and say things like Be careful with those scuba diving classes, or Learning dutch is probably not going to help you with your career; you should study french, instead. L. would smile, nod and walk away, but she'd always take some of what was said in consideration. Soon, she'd start seeking those recommendations, instead of passively receiving them. She'd look for approval before every new engagement and wouldn't feel comfortable or safe if she couldn't get it.
Initially, it influenced her decisions regarding potentially dangerous activities, or those which could irreversibly affect her future, so that she'd run to her neighbors or colleagues before going to job interviews or assigning for a certain class at college. However, one day, when L. was asked out to dinner, she ran to her neighbor's door and left the phone still on, over the table. The guy on the other side wondered what was going on as she took a few minutes to pick the phone back up and reply: Pick me up at 8PM.
But dating brings serious questioning. From the outside, deciding when to say I love you may seem less relevant than choosing one's dog's name, but loving has nothing to do with the outside. Hence, L. needed support on her decisions. And, because it has nothing to do with the outside, her acquaintances failed to give them to her. She was helpless and scared; she didn't want to hurt or to be hurt. It was, thus, just natural that P. – let's name the guy this way – would assume this guiding role. Imagine how dangerous this is.
The romance went well, of course. Leading, P. was obviously very satisfied, and i do mean it in every possible way. Being lead, L. was free of worries about their future together or about the pace of their evolution as a couple. In an unnatural way, things worked out.
Outsiders, on the other hand, became a little uncomfortable with L.'s acquiescence to P.'s somewhat liberal guidance. While they still had nothing to do with love, they had much to do with pretty much everything else regarding L.'s life, and their constant criticism to her behavior put her in a situation of indecision. She willed to stick to P.'s command, for it made him happy and kept her secure, but she also feared other people's disapproval. She would commit to his wishes when they were together, only to repudiate them when apart, but she wasn't faking anything: with her judgment displaced to anyone near her, their opinion were hers, no matter how incoherent.
The incapacity to conciliate her actions made her ignore discrepancies and be oblivious to hypocrisies. She payed ever less attention to her doings and thought ever less about her actions, blowing to the wind or, to recall the metaphor, she bent to the gale. She was reed, not oak. And yet, one day, she broke.
1The quote indicates the beginning of a description full of spoilers of the book Ciranda de Pedra, by Lygia Fagundes Telles.
sexta-feira, 20 de maio de 2011
O cigarro está deixando o riso dele amarelo. Às vezes, penso que vou pegar todos os maços de cigarro dele, todos os maços do mundo e amassar um por um, molhar tudo, não deixar secar nunca mais. Aí ele nunca mais me olharia pelo vão da porta, entrando de madrugada e me sorrindo aquele sorriso amarelo e morto, aqueles dentes amarelos, os pelos amarelos.
Nossos beijos têm gosto de café ou de álcool, nosso sexo tem cheiro de maconha, nossas conversas anestesiadas pelos calmantes e eu tenho vontade de pular sobre ele, agarrar-lhe o pescoço e sacodi-lo da poltrona, gritando Acorde!, acorde seu grande filho-da-puta!, eu estou aqui, está vendo?, sou eu, eu, eu! Mas eu tenho medo, medo de que se o fizesse ele se deixasse sacodir, os olhos vidrados e perdidos, a boca meio aberta ou meio fechada (uma questão de otimismo?) e soltando aquele zumbido asqueroso que ele faz às vezes no lugar das palavras.
No começo, quando nos viciamos em estar bêbados, em estar altos, em estar dopados, era bom, porque era... pelos motivos certos. A causa pela consequência etc, tomar uísque para ficar bêbado e não porque gostássemos de uísque. Eu gosto de acreditar que nunca mudei, mas ele se acostumou ao gosto amargo, à fumaça escura, aos venenos da rotina, tanto quanto se acostumou a me ter aqui e a esse sorriso estampado amarelo nessa falta de amar e de elo.
De vez em quando me dá vontade de contar tudo pra ele, sobre mim, sobre você, sobre todos os que riem dele pelas costas. Mas, de novo, o medo de que seja tarde demais, de que não faça diferença.
Nossos beijos têm gosto de café ou de álcool, nosso sexo tem cheiro de maconha, nossas conversas anestesiadas pelos calmantes e eu tenho vontade de pular sobre ele, agarrar-lhe o pescoço e sacodi-lo da poltrona, gritando Acorde!, acorde seu grande filho-da-puta!, eu estou aqui, está vendo?, sou eu, eu, eu! Mas eu tenho medo, medo de que se o fizesse ele se deixasse sacodir, os olhos vidrados e perdidos, a boca meio aberta ou meio fechada (uma questão de otimismo?) e soltando aquele zumbido asqueroso que ele faz às vezes no lugar das palavras.
No começo, quando nos viciamos em estar bêbados, em estar altos, em estar dopados, era bom, porque era... pelos motivos certos. A causa pela consequência etc, tomar uísque para ficar bêbado e não porque gostássemos de uísque. Eu gosto de acreditar que nunca mudei, mas ele se acostumou ao gosto amargo, à fumaça escura, aos venenos da rotina, tanto quanto se acostumou a me ter aqui e a esse sorriso estampado amarelo nessa falta de amar e de elo.
De vez em quando me dá vontade de contar tudo pra ele, sobre mim, sobre você, sobre todos os que riem dele pelas costas. Mas, de novo, o medo de que seja tarde demais, de que não faça diferença.
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Don't tell me the truth about love
Imagine-a como uma menina que dorme cercada de bichos de pelúcia, que os penteia e coloca numa mesa de bonecas a pretexto de tomarem chá. E imagine-se como um pinguim que se perdeu no Atlântico e veio parar nas praias do Brasil ou como um cachorro viralata que foi pedir comida na porta errada.
As crianças – todo mundo é meio criança, nessas horas –, elas não sabem muito bem como agir. Às vezes é curiosidade, às vezes é desatenção, medo, nervosismo... Mas na maioria das vezes... Eu diria que na maioria das vezes é mesmo amor. A menina encontra um animal e acha que é como os outros, de pelúcia. E o animal também não entende um aperto mais forte, um movimento exagerado, um grito inesperado.
Os dois se encontram sem querer, se estranham sem querer. E no fim, um sempre se machuca.
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Texto de um e-mail que nunca será enviado
Prezada X,
Recebi seu e-mail hoje pela manhã e...
Olha, eu queria, também, que fosse assim. Do jeito que você quer, sem tirar nem por. Não porque concorde com sua proposta ou porque me interesse ver minha empresa incorrendo em um risco enorme (embora, vá lá, mais ou menos bem embasado), mas porque seria uma solução jurídica, seria resolver a questão com conceitos que a gente encontra lá no Código Civil, com todas as letras. N-E-G-L-I-G-Ê-N-C-I-A. I-M-P-R-U-D-Ê-N-C-I-A. I-M-P-E-R-Í-C-I-A.
Veja bem, eu já anunciei aos quatro cantos minha inaptidão ao Direito (muito mais do que ela merecia, aliás), mas eu consigo ver, juro que consigo, a beleza e a... grandeza do Direito. Mas no fim, acho que todos nós sabemos que é isso, não? Acho que você, aí, deve entender ainda melhor do que eu: é bonito, é bonito, mas não é a beleza que nos vai pro dinheiro no bolso, é?
Não assino.
Passar bem.
Recebi seu e-mail hoje pela manhã e...
Olha, eu queria, também, que fosse assim. Do jeito que você quer, sem tirar nem por. Não porque concorde com sua proposta ou porque me interesse ver minha empresa incorrendo em um risco enorme (embora, vá lá, mais ou menos bem embasado), mas porque seria uma solução jurídica, seria resolver a questão com conceitos que a gente encontra lá no Código Civil, com todas as letras. N-E-G-L-I-G-Ê-N-C-I-A. I-M-P-R-U-D-Ê-N-C-I-A. I-M-P-E-R-Í-C-I-A.
Veja bem, eu já anunciei aos quatro cantos minha inaptidão ao Direito (muito mais do que ela merecia, aliás), mas eu consigo ver, juro que consigo, a beleza e a... grandeza do Direito. Mas no fim, acho que todos nós sabemos que é isso, não? Acho que você, aí, deve entender ainda melhor do que eu: é bonito, é bonito, mas não é a beleza que nos vai pro dinheiro no bolso, é?
Não assino.
Passar bem.
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Às vezes, entrando em um estabelecimento com o fôlego falto e ainda sob a casaca molhada da chuva de fora, Beto se vê obrigado a abaixar-se e reatar os cadarços encharcados. Nessas horas, se você passar ao lado dele perto o bastante, ele erguerá os olhos e fitará seu rosto de baixo, vassalo, um joelho apoiado no chão e o outro na altura do peito, as roupas feitas imprestáveis pela chuva, a água escorrendo pelo rosto, o cabelo caído sobre a testa. Olhando-o de cima, seco, o guarda-chuva como cetro, você pode, pelo mais breve dos momentos, achar que há alguma hierarquia envolvida nisso tudo, e talvez haja, mesmo, talvez tudo faça sentido quando chove.
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Fantasmas [um texto político, prostituído, linguicenchido e nãoescolhido]
Eu já nem sei quanto tempo faz que eu percebi que sou diferente. Que eu não vejo as coisas e as pessoas do mesmo jeito que meus amigos, ou do jeito que a maioria das pessoas parece achar que eu deveria ver. Um dia eu devo ter acordado e entendido que eu tinha que fazer alguma coisa.
Desde então, eu caço fantasmas.
***
Não é tão ruim assim. Tecnicamente, eles não podem fazer nada contra você, já que não têm um corpo físico, não têm massa, não têm armas. Grosso modo, eles não podem te machucar.
Mesmo assim, eles estão sempre lá. Às vezes, no meio de um jantar em um restaurante, eu os vejo num canto, olhando sem saber se eu sei o que eles são. Às vezes eles fingem que não me viram, fingem que eu não tenho nada com eles, quando eu cruzo com eles em um parque. Nessas horas, eu preciso pedir licença para a pessoa que está comigo, deixar os talheres sobre o guardanapo ou no canto do prato, tomar mais um gole de uísque e caminhar até eles para golpeá-los com toda a boa vontade de que eu disponha.
Eu tenho algumas armas, também, claro. Álcool, em geral, mas também um cigarro fumado devagar, minha música favorita etc. Coisas assim. Eles detestam essas armas e é só usá-las direito para vê-los desmanchando e virando fumaça até sumir. Até que, é claro, um dia estarei em um restaurante ou parque ou teatro e eles virão de novo, se juntando em algum canto, se movendo como as sombras que são e esperando a hora certa pra nos apunhalar.
***
Eu comecei a levar o negócio a sério um dia, voltando pra casa. Eu saía do trabalho às 18h e voltava a pé; era um percurso de vinte e poucos minutos no máximo. Nesse dia, quando eu passei por um trecho mais escuro, eu vi uma menina vindo e uns três ou quatro fantasmas atrás dela. Eram vultos enormes, horríveis. Na hora, eu sabia exatamente o que tinha que fazer e fiz: apertei o passo e voltei logo pra casa, o coração acelerado, o suor correndo frio.
Então eu deitei na minha cama, esperei minha respiração voltar ao normal e percebi que eu queria voltar lá. Eu levantei, lavei o rosto, respirei fundo e fui.
Quando eu cheguei, não encontrei ninguém. A rua estava ainda mais escura porque alguma nuvem devia ter coberto a lua, ou porque algum vizinho devia ter apagado a luz que brilhava pela janela, mas fosse qual fosse a razão, eu não conseguia enxergar qualquer coisa a mais de quatro ou cinco metros de distância e aquilo me apavorou. Eu me arrependi de ter ido, olha só, me arrependi de verdade de ter feito algo de que eu queria me orgulhar muito.
Então eles surgiram. Milhares deles, acho. Eu nunca havia visto tantos. Eles pularam em cima de mim, esconderam toda a luz, me encheram de um medo absurdo. Eu não sei direito o que achei que fosse me acontecer, porque era um medo meio irracional, era como o medo de uma montanha-russa que sabemos ser segura ou como, sei lá, como se apaixonar.
Eu fechei os olhos, me encolhi, gritei com todo o meu fôlego e então ela veio, a mesma menina de antes. Do meio dos fantasmas, do meio do escuro do meu mundo ela veio e me puxou e a gente correu pra sempre, pra longe dali, pra um lugar qualquer com luz e que pra mim foi o lugar mais lindo do mundo.
Foi nesse dia que eu a conheci e que eu decidi que aquilo era o que eu ia fazer pra sempre: andar do lado dela fosse como fosse, caçando fantasmas.
***
A reação inicial não foi das melhores. As pessoas não aceitaram bem, no começo. Pensando bem, não aceitaram bem até agora. Meus pais, minha família próxima, os amigos mais chegados, esses não tiveram muito o que fazer além dos esperneios que lhes são habituais e, seja por boa vontade ou cansaço, acabaram entendendo.
Depois de um primeiro momento é até possível que tenham achado bom que eu tenha me encontrado, assim. Mas os outros, esses que são mais distantes e que menos deveriam se intrometer na minha vida, bem, são esses os que mais se chocam, os que me olham como se a alguma aberração da natureza ou como se eu portasse alguma insanidade incurável.
E eu até entendo, um pouco. Não gosto, mas entendo. Não deve ser fácil, afinal, para uma pessoa qualquer na farmácia ou em um órgão do governo me passar um formulário qualquer para preencher e ver lá, entre meus dados, a declaração escrita e inegável do completo absurdo, do impossível, do imoral: atividade profissional: caça de fantasmas. Paciência. É quem eu sou. É o que eu sou.
Também é óbvio que não faltaram as conversas pretensamente sérias, as orientações supostamente visantes ao meu bem. Não é uma vida fácil, eles diziam e era óbvio, você vai ter que lidar com a rejeição dos outros, com as dificuldades extras, com o preconceito.
Diziam e diziam por bem, claro; diziam com intenções boas, mas isso lá é coisa que se diga? Como se caçar fantasmas fosse algo assim que se possa abandonar a gosto, como se eu fosse chegar pra ela, a companheira que eu escolhi e fosse dizer é só você, agora, eu não gosto mais dessa coisa, desse negócio de caçar fantasmas. Não ia, claro.
Ou podia ser ainda pior e talvez eu dissesse, talvez eu abandonasse mesmo minha arte escolhida (melhor dizendo: minha arte e minha escolhida) e aí me parece que tudo seria ainda pior, que o ressentimento seria infinito, a culpa mútua e o constrangimento, também. Então, não disse nada, apenas sorri aos avisos todos, disse que agradecia as dicas, mas que agora precisava pegar minhas armas, meu maço de cigarros, minhas citações favoritas do Neruda e sair para a noite, que é onde os fantasmas vivem melhor.
***
Na nossa primeira noite fora, resolvemos começar nosso trabalho em um bar que ela conhecia. Era um lugar com fama de ser supostamente apreciado por outros como nós, mas isso não pesou demais na decisão, tendo contado mais que os coquetéis fossem bons e os preços razoáveis.
Logo depois de nos encontrarmos à porta e já enquanto nos apertávamos entre todas as outras pessoas dali, à procura de algum lugar onde sentar, eu percebi que havia uma quantidade imensa, absurda, impossível de fantasmas espalhados entre as mesas, sobre o balcão. Mais, certamente mais do que os que eu vira naquela outra noite, no escuro, e de algum jeito, eu sabia que era porque eu estava ali, porque eu estava ali com ela.
Pedimos margaritas, canapés, tudo que podíamos pra espantá-los, mas eles se juntavam de novo, se faziam lembrar. É curioso, porque quando eu explico para as pessoas, elas costumam fazer associações erradas sobre tudo isso.
Talvez seja por causa das menções ao álcool, às músicas, não sei; sei que tem gente com a tendência a achar que os fantasmas aparecem quando estamos tristes ou com medo ou sozinhos ou vulneráveis. Que fogem da alegria acéfala, da entorpecência, da irresponsabilidade ou da ausência de compromisso. Existe mesmo quem acredite que os da nossa estirpe, porque lutam contra fantasmas, sejam mais promíscuos, menos virtuosos, até, por louco que pareça, instáveis emocionalmente.
Não é, óbvio, o que acontece, como espero que esse episódio demonstre.
Estávamos, disse, num bar e nos divertíamos e eu ria com sinceridade, pois me encontrava então tão feliz quanto jamais estive. Eu havia acabado de tomar uma das decisões mais importantes e mais fáceis da minha vida, que era fazer aquilo que era meu desejo óbvio.
Não havia medo, indecisão, solidão ou vulnerabilidade que pudesse justificar aquela concentração desconcertante de fantasmas. Pelo contrário, eu poderia facilmente entregar minha vida em prol daquilo tudo que eu havia escolhido e não me custaria fazê-lo. E por certo, não havia infelicidade alguma, também.
E se assim era, por que vinham?
Vinham pelo mesmo motivo por que vêm os predadores todos: vinham porque percebiam em mim uma fraqueza que me fazia de presa.
A gente enfraquece, às vezes, ainda que estejamos felizes, ainda que saibamos estar no caminho certo. Talvez, mas isso é só uma tese, seja até mais fácil enfraquecer nesses momentos, pois são neles que temos mais a perder. E os fantasmas sabem disso. Por isso é que se juntavam no bar à nossa volta, ligando pouco para as outras pessoas (incluindo outros tantos caçadores que certamente os viam, também) ali presentes, cercando-nos, chegando cada vez mais perto. Uma hora, não restava outra coisa que pudéssemos fazer e portanto atacamos.
A luta durou, não sei, meses. Em alguns momentos, parecia que tínhamos tudo sob controle, recorríamos com facilidade a alguma máxima piegas dessas que nos chegam por e-mail ou a alguma nova comédia romântica que estreasse em nossos cinemas. Em outros, nossos recursos pareciam escassos, nossos inimigos numerosos demais, nossa resolução infundada.
Por fim, quando finalmente tivemos decretada a vitória (e era uma vitória temporária, é claro, como bem sabíamos), havíamos perdido peso, o sono, saúde. Mas era difícil se importar com isso ou com qualquer outra coisa — com os que olhavam, com os que faziam questão de não olhar, com tudo o que falavam e todos os preconceitos do mundo foram sumindo com os fantasmas enquanto estávamos ali e o mundo girava ou era ela ou eu ou nós e já não importava mais quando finalmente nos beijamos.
***
E a gente saía todas as noites. Íamos pelas ruas cantando, bebendo, nos tocando e fingindo que era sem querer. Pode-se dizer que era uma vida dura a nossa, tendo que conciliar nossas manhãs escuras com nossas madrugadas em claro, mas a verdade mesmo é que não queríamos nada que não fosse aquilo.
Nos dias – nos anos – que se seguiram, nós arriscamos nossas vidas incontáveis vezes, quando os vultos negríssimos dos fantasmas de nossa cidade nos rodeavam. Talvez uma afirmação dessas soe incoerente com meu comentário anterior de que os fantasmas, por não terem existência corpórea, não poderiam nos machucar. Não podem, mesmo, fisicamente. No entanto, eles podem destruir nossas certezas; se deixássemos, podiam destruir uma vida inteira.
Por isso que a gente caça.
Não é só pelo fato de termos a habilidade de vê-los. Se fosse, podíamos simplesmente evitá-los, com mais facilidade, inclusive, do que os evitam as demais pessoas. Caçar é uma coisa totalmente diferente, porque define-se justamente pela busca, pela perseguição, pela postura ativa de aproximação. Caçar é sair conscientemente da nossa relativa tranqüilidade, é procurar problema. É admitir que dói e não querer que pare.
***
A maioria das pessoas é igualmente atormentada por esses espíritos ruins, mas a facilidade da rotina, das atividades cotidianas, esses analgésicos todos da contemporaneidade parecem fazer com que ignorem ou finjam ignorar os episódios desses encontros. Mas existem outros como nós, que, por escolha ou falta dela, assumem suas visões e não têm vergonha de valerem-se das armas que tiverem à mão (os filmes mais chulos, as memórias mais distantes, os pássaros mais coloridos) e de usarem-nas para espantar como podem os fantasmas que virem pelo caminho.
Como nós, eles devem saber que às vezes é difícil cantar no escuro. Se assim for, então nessas horas eles provavelmente também questionam suas decisões e pensam infinitamente que teria sido muito mais fácil, muito mais incrivelmente inteligente se tivessem simplesmente seguido em suas vidas caminhos menos inversos às marés e às correntezas. Teria, talvez, sido muito mais racional.
E seria tão simples, reconhecido o engano, voltar atrás! As portas das casas estariam abertas, é claro. Mas eles não voltam, como nós não voltávamos de nossas excursões noturnas pelas ruas escuras do centro de São Paulo.
Não importava quantas vezes eu ou ela caíssemos de surpresa no escuro sem fim de ataques inimigos, sempre voltávamos sob maior influência da euforia do resgate do que do horror das horas sem luz. E o resgate vinha sempre.
Nenhuma vez que ela tenha sido pega por fantasmas eu deixei de estender a mão, sempre levando alguma inspiração qualquer que a tirasse dali. Mesmo quando meus meios eram falhos (ela não fumava, afinal, não gostava exatamente das mesmas bandas e das mesmas citações do Bandeira que eu), algo sempre dava certo, de um jeito ou de outro. E nenhuma vez que eu tenha caído e chorado e querido morrer ela deixou de se oferecer, também, trazendo tudo o que tinha e que era tudo.
No fim, caçar fantasmas era nosso próprio analgésico, acho. Nosso próprio entorpecente. Quanto mais improvável parecesse ser a fuga de uma emboscada, mais críamos que alguma coisa nos tiraria de lá. Que alguém nos tiraria de lá.
No fundo, se nem todo mundo percebe, é porque nem todo mundo se prontifica à caça de assombrações. Porque no final das contas, o que importava não era nem o álcool, nem o fumo, nem os decibéis, mas a gente, ali. Podiam vir as dores que viéssem, nós não nos abalaríamos; cem vezes nos fosse dada a opção de fugir, cem vezes resistiríamos. Essa é a coisa mais importante na vida, não é? A vontade de se machucar por alguém. Que mais importa além disso?
E não, também, sermos homens ou sermos mulheres. Somos humanos e é por isso e é só isso.
terça-feira, 12 de abril de 2011
[reciclagem] viagem no tempo
obrigada por ter vindo.
não, tudo bem. o que você queria?
bom, eu precisava falar com você. sozinhos.
ah, nossa, o que foi?
é que... eu queria que você fosse comigo pra... um lugar.
um lugar?
é. se não tiver problema.
não, acho que não. que lugar?
bom, na verdade, aqui mesmo. mas daqui a cinquenta, oitenta, daqui a cem anos.
o quê?
é, tipo, uma viagem no tempo.
sério?
sério.
e... como a gente iria?
(pausa) a gente já está indo.
quinta-feira, 24 de março de 2011
Viajante
Aí este cara veio. Tipo, do passado. Um viajante do tempo e tal. Uma hora ele não tava lá e depois, estava!
E o que isso significa?
Que além de viajar no tempo, ele viaja no espaço, também.
Ah. E aí?
Aí ele contou coisas do passado. Ele tinha vindo de vinte anos antes e tal. Falou de coisas de que lembrávamos, todo mundo riu muito.
Nossa, e sobre o futuro?
Ele disse que não foi lá, ainda, mas que vai em breve.
Cara?
Quê?
Esse cara aí...
Que tem?
Quanto tempo ele levou pra vir do passado?
Como assim?
A viagem dele de vinte anos atrás pra cá. Quanto tempo ela demorou?
Porra, cara. Vinte anos, lógico!
Puto.
Assinar:
Postagens (Atom)