quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Mar, 18

Eu havia escutado a história sem dizer nada, totalmente fascinado com o relato. Foi por pouco que não aplaudi ao final, o que, em retrospecto, poderia ter demonstrado alguma desconsideração com o sofrimento de Ike --- e não me apeteceria, mesmo, provocar o homenzarrão.
Contudo, mal o outro acabou de falar, um segundo inglês, de sotaque igualmente estranho e antigo, interveio, dedo em riste. "Não foi nada disso!", falou. Era um dos que até então amparavam Ike, e tanto na forma como o consolara antes quanto na contestação da versão relatada pelo companheiro, era nítido o quanto gostava do grandão. 

Foi, portanto, no tom de voz de quem corrige uma injustiça que narrou o seguinte conto.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Ao longo de uma música


É quando me bate a saudade das coisas que eu deixei de ser pelo caminho. Quando me pego sentado com a postura errada, olhando para a tela do computador sem realmente enxergar as palavras e ouvindo no fone o Gilberto Gil cantando sua versão do Bob Marley e eu me lembro, é claro, daqueles dias na praia (quinze anos, salvo engano) e daqueles meninos mais velhos (adultos, portanto) com o violão.
Eram os únicos momentos em que eu conseguia ficar quieto (nesse sentido, não mudei nada: sempre imensamente afetado pela hostilidade de um ambiente e igualmente por sua receptividade), olhando a rebentação e as meninas perto da fogueira, algumas de biquíni, ainda. Havíamos passado a noite inteira zanzando pelo Centrinho, tomando sorvete e mudando ocasionalmente de lugar para ver as meninas passando. Era mais ou menos a isso que se resumiam minhas férias, imaginem só. E eu diria que valeu a pena se pelo menos conseguisse me lembrar de qualquer uma delas. Enfim. De qualquer forma, só as via passando, mesmo, e então comíamos qualquer coisa e nossas amigas (que também víamos só de passagem) nos chamavam para mais perto do mar.

Um dia, choveu muito e a água passou sem tomar conhecimento do teto de um dos quartos, molhando completamente alguns dos colchões. Os adultos evidentemente não perderiam suas camas, então seríamos forçados a espalhar os colchões restantes no chão e dormirmos todos juntos. Éramos três meninos e duas meninas, ambas um pouco mais novas e absolutamente maravilhosas. Isso foi logo na hora do almoço, então nós três passamos o dia inteiro sem conseguir pensar em qualquer outra coisa. A todo momento, discutíamos como seria estarmos tão perto das meninas; os assuntos que inevitavelmente surgiriam; as vontades que elas certamente já sentiam e reprimiam, mas que, no ambiente propício, floresceriam; e, principalmente, quem de nós seria o desafortunado que ficaria de lado, sozinho, perdido. Ensaiamos movimentos, frases, formas de sussurrar. Não posso dizer quanto aos outros, mas pessoalmente, me apavorava pensar na possibilidade de chutar alguém, roncar ou peidar durante o sono.
À noite, repetimos o teatro de sempre: o Centrinho, as mudanças de mesa --- mas já nem ligávamos para quem passava, exceção feita ao tempo.
Eventualmente, as duas vieram e nos chamaram para ir à praia e, conforme havíamos deliberado previamente, acatamos e as seguimos, tendo sido vetada, por ser considerada suspeita, a ideia de negarmos o luau, propondo em seu lugar um jogo de baralho que antecipasse nosso grande momento de trunfo e glória.
Assim foi que sentamos na areia como se aquele fosse um dia absolutamente comum e olhamos a rebentação e ouvimos a música, enquanto nos perguntávamos aos cochichos se já não era tarde, se já não podíamos organizar a volta à casa. E estávamos nessa quando vimos dois rapazes deitarem o violão e sentarem do lado das meninas e conversarem com elas. Como se a gente não estivesse ali!
Eventualmente, acabamos desistindo de olhar pra escuridão fingindo indiferença e voltamos pra casa. Jogamos nós o baralho e esperamos até cairmos de sono sozinhos nos tais colchões.
Quando acordamos, elas estavam lá, com a gente. Mas aí já não adiantava mais.

Será que eu suportaria aquilo, hoje? Aquela conversa, aquelas piadas sobre a homossexualidade alheia e sobre a genitália própria? Certamente ainda gosto da areia e do mar, ainda pego caranguejos, quando posso, mas ouvir Natiruts mal interpretado à meia noite no litoral norte...
É bem provável que eu esteja melhor com a postura torta e as palavras no monitor. Mas...
Mas era uma possibilidade, não era? Mesmo agora, se eu repassar tudo o que aconteceu desde então, acho que nem consigo identificar exatamente quando foi que aquilo virou um absurdo. E também não dá pra dizer que não sejam absurdos este agora, esta camisa, estes sapatos.

Quando vim trabalhar no banco, lembrei imediatamente de dois ex-colegas de faculdade que eu sabia (ou suspeitava) que trabalhavam aqui. Já nas entrevistas, perguntei ao meu (então potencial) futuro chefe se os conhecia, mas ele nunca havia ouvido falar em nenhum dos dois. Dei de ombros, que o banco é grande, cheio de pessoas e departamentos e tudo o mais. Nenhum motivo para me admirar, evidentemente.
Mas num outro dia, já contratado, flagrei-lhes os nomes sendo mencionados numa conversa. Investiguei um pouco e matei a charada: os dois eram empregados, sim, mas não do banco em si, e sim de outra pessoa jurídica do mesmo grupo econômico: trabalhavam para um outro banco, focado em investimentos de grandes pessoas jurídicas, que foi adquirido pelo conglomerado mas manteve seus funcionários, incluindo o corpo jurídico.
Cavando um pouco mais, descobri o e-mail dos dois, e mandei minhas saudações. Eles responderam, me parabenizando pela contratação e desejando sorte, mas depois disso nunca mais nos falamos.
Passados sete meses, o funcionamento do banco começou a fazer mais sentido para mim, assim como se evidenciaram as relações entre departamentos, as disputas por orçamento e as rixas internas. Embora não houvesse hierarquia formal entre as diretorias, comecei a perceber que determinadas áreas gozavam de certos privilégios, sempre proporcionais aos lucros que elas rendiam para nossos acionistas.
O setor com o pessoal que geria os fundos tinha a melhor vista do prédio. Os gerentes dos clientes milionários tinha, nos e-mails, uma assinatura mais personalizada e, na copa, bolachas Calipso, ao invés das de água-e-sal. Meus colegas que lidam com clientes internacionais receberam computadores novos. Mas ninguém dava tanto dinheiro para o banco quanto as grandes pessoas jurídicas e suas emissões de debêntures, seus IPOs, seus M'n'As, suas operações de câmbio gerando milhões no float.
Então, nem os gestores de fundos, nem o pessoal que lidava com socialites, nem o pessoal do internacional, com suas conference-calls em línguas sortidas --- nenhum deles se comparava à equipe dos meus dois amigos. Eram eles que nos exigiam os prazos mais curtos e que mais nos condenavam por perdê-los. Eram eles que determinavam, com voto de Minerva, as datas e horários das reuniões. O banco de investimento era o panteão dentro do conglomerado, e lá só havia deuses.
Ah, como eu fui inocente, mandando aquele primeiro e-mail! Eu imagino a cara deles, ao recebê-lo. O ex-coleguinha de classe que arrumou uma vaga na cozinha e vem se gabar aos passageiros do cruzeiro. Eu imagino na cara deles o misto de divertimento e pena com que viram a animação com que eu relatava minha contratação e os imagino lançando um para o outro um olhar cúmplice.

Será que daqui a alguns anos, também vou me lembrar e... Bom, pior seria não lembrar. De todo modo, é o próprio Gil quem me conforta e diz que tudo-tudo-tudo vai dar pé.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Mar, 17 - A história do norueguês

Ike embarcou novo demais para se lembrar de qualquer paisagem norueguesa. Também não sobrou muito por lá de que se lembrar. Viajaram com ele a família toda e a esmagadora maioria dos amigos e conhecidos. Todos os bens foram empilhados em navios, todos os moradores da vila juntaram suas coisas e, aos poucos, não sobrou ninguém por lá.
Assim, quando pensava na infância, era para os campos da Inglaterra, então dominados pelos nórdicos, que ele voltava a memória. Àquela altura, o território tomado já era tão vasto que Ike praticamente não via sinais da guerra: em sua vila se plantava e se criava em paz e se falava o norueguês. Os ingleses que restavam falavam uma mistura da língua do norte com o saxão e também não devotavam lealdade ao rei britânico. Para eles, que não eram cristãos e não tinham grande apreço pelos impostos cobrados pela coroa, a vida seguia em frente.
Mas, ao sul, os combates prosseguiam, intercalando grandes conquistas com pesadas derrotas. As histórias chegavam ao norte na forma de relatos mal contados de ar fabulesco, misturando as narrativas dos grandes feitos dos comandantes noruegueses e dinamarqueses com menções a espíritos ruins e bestas vindas de outros mundos. Era impossível considerar a guerra de forma concreta, como o era esperar que ela mantivesse incólumes por muito tempo aqueles vilarejos.
Quando tudo ia bem, os viajantes chegavam com moedas e muita sede, pagando bem nas estalagens e bordéis; mas quando os ingleses viviam seu ápice e as terras do sul eram retomadas, os fugitivos vindos de lá apinhavam e alimentavam a mendicância e a criminalidade dos vilarejos. Traziam, também, a demanda constante por comida e por braços jovens e fortes, como já eram então os de Ike.
Ele já era um pouco velho para aprender como se devia o ofício da guerra, viciado já na forma alucinada e desordenada com que os meninos brigavam na rua, mas Ike logo se demonstrou um soldado talentoso e, principalmente, ambicioso. Mesmo enquanto ainda engatinhava nas linhas em que lutava, ele já sabia bem que queria ter seus próprios homens e, principalmente, seu próprio barco.
Durante seis anos, Ike lutou em diversas batalhas, obtendo vitórias significativas e, com elas, riquezas.
Eram anos em que combater era um negócio lucrativo, e, para os profissionais do ramo, nunca faltava trabalho.
Nos pântanos da Wiltshire, matou homens o bastante para comprar um punhado de terra ou um título de nobreza, mas, isso não lhe interessava: eram ambições para quem queria formar uma linhagem, e Ike não pensava em parar. Não agora.
Ao invés disso, usou o dinheiro para iniciar seu plano de ter um pequeno exército. Ike pagava bem aos homens que o seguiam e os treinava melhor, de forma que não demorou a juntar bons soldados que lhe defendessem o brasão. Um navio, contudo, parecia ser um sonho mais ambicioso.
Em primeiro lugar, eles eram caros. Ike havia juntado dinheiro, mas nem de longe tinha o suficiente para pagar pelos serviços de um bom construtor (que a madeira, arranjava-se). Em segundo lugar, tomavam tempo e exigiam muita mão de obra --- duas coisas que Ike julgava difíceis de conseguir.
Restava-lhe, no entanto, a opção de recorrer à forma alternativa de aquisição de quaisquer bens mais em voga naqueles tempos: a guerra.
Aconteceu-lhe como que por acaso. Num ataque a uma fortificação, viu-se separado do resto das forças nórdicas quando um exército saxão, surpreendendo-lhes pela retaguarda, rompeu a linha que os noruegueses voltavam aos portões do castelo. O combate os arrastou cada vez mais para longe dos companheiros e para perto das margens de um rio, deixando-os encurralados e em menor número. Nesse momento, rio acima, despontaram os mastros de duas naus saxãs, descendo as águas com mais homens para terminar aquilo que todos os indícios apresentavam como um massacre.
Mas Ike havia estudado o terreno e sabia ler as águas melhor que qualquer inglês. Manobrando seus homens como um maestro, dirigiu-se para onde as ondas indicavam a presença de bancos de areia e contornou, pela água rasa, os homens que os prensavam. Os navios não puderam chegar mais perto e seus tripulantes tinham dificuldade em arrastarem-se, com o aço que vestiam e levavam, pelo lamaçal. Enquanto isso, o exército inglês em terra firme perdera a vantagem geográfica e começava a tropeças em seus próprios mortos. Quando os homens dos navios chegaram, o fizeram sem nenhum ímpeto e sem equilíbrio, desastrados e já se sabendo em maus lençóis.
Enquanto isso, as espadas faiscavam umas contra as outras e os escudos tilintavam sobre o ruído das águas. ike ainda tinha menos homens, mas os que tinha sabiam que haviam sobrevivido ao pior e esse ânimo lhes dava forças. Resumindo uma história que já se alonga além do que devia, venceram, e aos vencedores, as naus.

Foi ao barco que Ike deu o nome de Maud Thyra. E, a princípio, Ike se demonstrou tão genial nos mares quanto o era em terra firme. Suas manobras eram mais ágeis e precisas que as de qualquer oponente, e Ike os derrotava um a um. Mas então, o impensável aconteceu.
Foi justamente no equinócio que, após navegar por seis dias, Ike e três navios aliados se depararam com as forças do rei Alfredo: seis navios apinhados de saxões raivosos. Os nórdicos logo compensaram a desvantagem numérica com o instinto natural aos combates no oceano, mas havia algo errado com Maud. A nau estava perdida, incapaz de prever as manobras dos adversários. Estava lenta. Ike parecia ter perdido a mão, e isso lhe custou caro demais. Foi cercado como um rebanho pelo cão pastor. Foi dominado, rendido e derrotado.
Os saxões o capturaram e a partir daí, a história se torna nebulosa. É certo que sofreu as piores torturas que seus captores puderam imaginar e que, de alguma forma, conseguiu fugir. Mas então, já não era o mesmo.
Parecia um fantasma, a sombra de um homem, perambulando bêbado pelas estradas litorâneas, procurando incansavelmente por seu barco. Desde então, sempre que chega o equinócio, a dor lhe ataca e ele repete sua lástima pela perda do Maud Thyra.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mar, 16

A portuguesa terminou sua história e imediatamente retornou ao silêncio de antes, olhando calmamente para o mar distante, embora a noite já tivesse se fechado, impedindo que se visse qualquer coisa. Durante algum tempo, eu não pude fazer mais do que acompanhá-la, mudo, enquanto pensava no que ela me havia dito. Eu havia escutado a tudo com grande naturalidade e, mesmo depois, não duvidava de nada. Imagino, é claro, que a coisa toda pareça absurda a quem lê este diário, mas qualquer um que ouvisse a história da boca de Maria saberia que aquela só podia ser a verdade.
Na verdade, naquele momento, eu sequer sentia haver razão para estranhamento. Apenas levantei-me, portanto, e saí arrastando os pés em direção à casa em que estava hospedado, ouvindo o ruído das ondas e pensando na enorme tristeza que me havia dominado.
No dia seguinte, quando o sol se pôs, quis me distanciar das ruas por onde costumava passear e deixei que meus pés cuidassem de me levar para onde bem entendessem. Havia tanto de extraordinário naquela ilha que eu me sentia seguro de que, fosse aonde fosse, acabaria por me deparar com algo que me valesse a noite. E não havia andado por mais de quinze minutos quando algo me chamou a atenção.
Alguns metros à minha frente, dois homens tentavam consolar um terceiro, que urrava aos prantos. Este se contorcia, gritava e dava murros no chão, num desconsolo absolutamente teatral, mas a situação ganhava ares cômicos, mesmo, pelo fato de o chorão ser um homem gigante, decerto acima dos dois metros de altura e não muito menor de ombro a ombro.
Seu rosto enorme parecia uma ilha, perdido em meio às ondas de seus cabelos compridos e barba desgrenhada, e ele repetia insistentemente as mesmas palavras, que mais tarde descobri serem um nome: Maud Thyra.
Como não entendesse o que ele dizia, me aproximei de um dos homens que o acodiam e que falava um inglês curioso, mas razoavelmente compreensível. Perguntei por quê o homem chorava, e ele me disse que esse espetáculo tragicômico se repetia todos os anos, no equinócio.
A resposta, é claro, apenas aumentou minha curiosidade, de forma que o pressionei para que falasse mais. O sujeito não apresentou muita resistência. Sentou-se em um muro e, balançando alegremente as pernas, contou-me a história do grandalhão.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Mar, 15 - A história da portuguesa

Maria cresceu em uma vila próxima a Lisboa. Eram sete famílias instaladas em volta de um riacho, a meio caminho do mar, se sustentando da pequena produção de subsistência e da venda de azeitonas e carne de carneiro para os comerciantes que passavam por lá. A vila ficava em uma rota bastante utilizada por quem cruzava os prados e era próxima o bastante de outros povoados para que o comércio e a vida dos moradores fossem razoavelmente agitados. Havia crianças e cães sempre correndo, havia as compotas da dona Luzia, havia os banhos na água gelada do riacho e, acima de tudo, havia Teodoro Barbosa.
Teodoro era o mais novo de cinco irmãos e o único ainda solteiro, se bem que não por muito tempo: estava prometido, já, para Maria. Desde que Maria tinha três anos, data em que sua irmã mais velha morreu de uma febre, ela sabia que ia casar com o Teo e, agora que chegava perto dos dezesseis anos, a ideia era tudo em que conseguia pensar.
Evidentemente, os dois nunca haviam realmente conversado. Maria o via às vezes passando em direção aos pastos, enquanto ela mesma ajudava a regar os legumes que a família plantava em frente à sacada do casarão. Depois, à tarde, ela ficava à janela misturando a massa para a alheira ou temperando a carne para a linguiça ou mexendo a panela de ensopado até que ele voltasse para casa, suado e cansado, mas com a mesma radiância. Então, ele diminuía um pouco o passo, virava a cabeça de leve, como se sem querer, e sorria pra ela, fazendo-a encher-se de vergonha e se esconder pra dentro da cozinha.
Mas então o pai de Maria organizou um jantar em sua casa e chamou os Barbosa e anunciou na vila que aquela noite tinha festa. Maria e a mãe colheram laranjas e fizeram bolo. O irmão dela e sua esposa abriram garrafas de vinho. Os pais das duas casas acertaram o dote e marcaram a data. E nesse dia Maria e Teo viraram noivos.

Eles foram felizes, juntos. Havia fartura nas terras ao redor do Tejo --- o Nilo português, como se dizia então --- e os dois se amavam e se entendiam bem. Teo era forte como um touro, de peito largo e braços firmes; Maria entregava um filho após o outro, todos varões, gordos e saudáveis.
Mesmo assim, quando Teo partia com as sacolas penduradas nos ombros pela manhã e seguia em direção ao cais, onde negociaria com os marinheiros que por ali passassem, oferecendo-lhes laranjas, azeitonas e carne salgada em troca de peixe, arroz e temperos trazidos de longe, Maria julgava ler qualquer coisa em seus olhos. Não era algo que ela pudesse definir com precisão, mas estava lá: uma espécie de opacidade distraída, como se se perdessem em sonhos sobre o que haveria além.
E então, a febre chegou. Não trazida por algum vírus novo e letal, mas pelas notícias de Lisboa: Portugal saía ao mar.
Primeiro, chegaram relatos vagos. À Índia, diziam, e ao Novo Mundo, fosse isso o que fosse. Depois, a descoberta de um novo continente foi se confirmando nos relatos dos mercadores e em suas histórias de terras selvagens habitadas por homens nus e adeptos do canibalismo e repletas de animais exóticos e ferozes. Logo, não se falava em outra coisa.
A Maria, tudo isso parecia bárbaro e horrível, mas Teo tinha uma opinião absolutamente contrária sobre os relatos. A América era para ele a promessa do Eldorado, da prosperidade e de um futuro brilhante. Para ele, cruzar o oceano era de uma vez, um dever patriótico e uma oportunidade imperdível de cumprir sua missão no mundo (nesses dias, ele vinha falando muito nesses termos).
Com o tempo, a ideia foi se consolidando em sua cabeça. O dinheiro que ele obteria em um ano seria suficiente, ele pensava, para dar prosperidade à familia toda. Haveria tanto ouro na América, tantas pedras e outras tantas maravilhas...que bastaria ir à cata e contar os lucros. Não pensava nas aventuras ou nas índias de pele queimada e carne rija. Essas coisas jamais lhe ocorreram. Teodoro pensava, então, como pensara sempre, exclusivamente em Maria e nos filhos. Queria enriquecê-los, dar-lhes presentes. Talvez mandar o primogênito para estudar em Coimbra. Fosse o que fosse que sua família precisasse, Teo queria dar-lhe, e para isso, pensava, precisaria da América.

Durante algum tempo, ele não fez nada. Continuou trabalhando, negociando com os mercadores, voltando para casa à tarde, tratando Maria e os filhos com o mesmo carinho. Mas a ideia não lhe saía da cabeça. O mar o chamava.
Um dia, definiu os planos, juntou uma mala e foi para a capital. Ficaria um ano fora e voltaria com riquezas bastantes para que a família pudesse ficar tranquila até ele morrer, talvez depois.
Maria chorou quando ele lhe contou isso e chorou quando o viu partir e chorou muitas vezes depois, mas nunca tentou impedi-lo nem duvidou de que ele voltaria. Eles se amavam demais para isso.

Um ano se passou e as notícias vindas das colônias eram raras e vagas. Maria imaginava os monstros que assombravam o Atlântido e tremia pelo marido. À noite, era visitada por pesadelos sobre naufrágios ou sobre os povos bárbaros que recepcionavam os portugueses na América, impondondo-lhes todo tipo de sofrimento.
Durante o dia, porém, trabalhava. Os filhos cresciam, as plantações vingavam, o comércio ia bem e, entretida nesses assuntos, Maria gastava os dias, esperando que a manhã seguinte a acordasse com os gritos de Teodoro, anunciando sua chegada. Passaram-se outros tantos dias, e então um mês, sem que viesse qualquer notícia do regresso. Outro mês veio e se foi, e então mais um e mais outro. Quando o segundo ano desde a partida do marido chegava perto de se completar, Maria já havia se habituado à solidão, embora nunca, nunca tivesse cogitado a possibilidade de ele não voltar. Ele disse que voltaria e Teodoro não mentiria para ela. Eles se amavam demais para isso.

E então, em um dia como qualquer outro, atracou no cais um barco de mercadores de Santarém. Eles desceram na cidade aos gritos, aparentemente embriagados. Um dos homens, com uma barba preta que escondia toda a metade do rosto, parecia liderar a bagunça.
Uns homens da vila se zangaram, umas mulheres fizeram, instintivamente, o sinal da cruz. Mas Maria correu de encontro ao grupo e se atirou sobre o homem barbudo e sentiu Teodoro abraçá-la de volta.
Teo trouxera dinheiro, como prometido, mas muito menos do que o anunciado. Se tivesse trabalhado no campo durante aquele tempo, era certo que teria juntado mais. Mesmo assim, parecia convencido de que a viagem valia a pena. Se apenas tivesse dado mais sorte, murmurava, sem concluir a frase. Mas agora eu já sei como fazer... Agora vai ser melhor.

Maria não tentou dissuadi-lo, porque não era dada a dispêndios inúteis de energia. Qualquer um que ouvisse Teodoro falando do mar sabia que nada iria convencê-lo a ficar em terra firme. Assim, ele voltou a embarcar esta e tantas outras vezes. Quando a hora chegou, pegou o primogênito e o levou consigo, prometendo que faria o mesmo com o segundo filho na viagem seguinte.
De repente, Maria se percebia parte de uma família de marinheiros. Quando voltavam, os meninos, cada vez mais homens, relatavam os perigos por quê passaram, os piratas de quem escaparam, as terras que conheceram. E quando partiam, era com isso que Maria sonhava, à noite, antes de acordar suada e ofegante de susto.

As viagens duravam meses e, em cada uma, partia um filho a mais. Quando todos atingiram idade suficiente, e quando já não havia mais crianças, Maria ficou sozinha. Ela sofria, é claro, mas não de abandono; era só a danada da saudade, que não sabia, como Maria, que a distância era passageira. Eventualmente, marido e filhos voltariam, disso não havia dúvida. Maria, pelo menos, não duvidava. Ela apenas se deixava ficar no cais, o olhar perdido além da rebentação. Esperando.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Você não me deixa chegar mais perto. Acho que faz bem, não sei, a proximidade também pode ser uma arma para você, não pode? É claro que pode, uma arma apontada para mim, bem mais do que para você. Mas a distância é pior e você me mantém longe.
Longe e sem saber o que fazer.
A música volta e eu tiro outro par, me perguntando com quem você está dançando, contra quem você se debruça, em que ombros estão suas mãos etc. Tem coisa mais ridícula do que isso? Evidentemente que não, mas a dança é esta, todo mundo dança, nós também dançamos.
Dançar! Como é que se pode dançar? Sorrir! Beber, comer, conversar etc. Quem suporta uma coisa dessas? Dançamos, a luz vacila e eu penso que poderia ser você, à minha frente: estas mãos, este algodão, este ofegar. Poderiam ser você e eu não teria como saber, neste escuro piscante. Talvez você tenha vindo devagar e em silêncio (mas não seria preciso muito silêncio, afinal de contas), deixado o outro rapaz sozinho e se colocado discretamente no lugar da minha garota. Sem que eu percebesse, você teria segurado meus ombros, ajeitado minhas mãos na sua cintura, sussurrado qualquer coisa no meu ouvido, sabendo que eu não ouviria.
De repente, eu consigo sentir a largura do seu quadril, o ritmo mais rápido de balançar, a intimidade maior com que suas mãos seguram minha nuca. Eu também me solto mais, te prendo mais, já quase nos abraçamos. Sinto seu rosto no meu. Seu cheiro.
Isso pode significar muitas coisas. Pode ser que você me tenha perdoado ou que encontrou um jeito melhor de me punir. (Imagine só as coisas em que vou pensar amanhã de manhã!) Pode significar outras muitas danças, ou pode ser que seja a última. (Dançar adeus.) Francamente, não sei se me importo. Na verdade, não consigo me obrigar a pensar nestas coisas, porque minha mente desvia sempre para você.
Por mais que eu tente levantar questionamentos, portanto, não consigo afastar a certeza de que tudo vai dar certo. De que vamos resolver tudo, de que vamos nos entender. Eu não sinto nenhum rancor na forma como você se mexe junto a mim, então eu sei. De repente, eu entendo que tudo o que se passou é de uma pequeneza, de uma insignificância... Não é nada que se compare a você ou a nós. Eu me sinto ridículo por ter levado tudo tão a sério. Por ter duvidado da gente. Problemas, todo casal tem, é óbvio, mas e daí? Já nem me lembro mesmo por quê brigamos...
Fecho meus olhos, deixo você me levar. Daqui para a frente, será sempre assim. Outras músicas vão tocar. Teremos tanto tempo...
Mas esta música acaba. No intervalo curto antes de a próxima tocar, as luzes se acendem e eu vejo um vislumbre rápido seu. A garota, ainda nos meus braços, parece ter gostado de mim; pergunta se eu quero dançar a próxima, também. Dançar! Como é que se pode dançar?

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Mar, 14


No primeiro dia, não pude resistir à tentação de ir ter com a moça sentada no cais. Me aproximei dela, sentei também e passei algum tempo em silêncio, ouvindo as ondas. Nas pedras abaixo, um carangueijo carregava um tufo de algas para um buraco, mas era atrapalhado pelo agito do mar. Acima, uma fragata ainda rondava, embora o sol já tivesse baixado e a noite em breve cobriria tudo.
Passados alguns minutos, me dirigi à mulher. Se chamava Maria e era mesmo portuguesa (até então, suspeitávamos). Falava com sotaque forte. A princípio, parecia avessa à ideia de conversarmos, mas acabou se abrindo e, então, achei que não fosse parar de falar.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Mar, 13


Depois de vinte dias na ilha, tínhamos um repertório fantástico. Havíamos fotografado centenas de espécies marítimas, muitas delas nunca avistadas em águas tropicais, e eu tinha certeza de que algumas, inclusive, figuravam nas listas de animais extintos. Juntamos páginas e páginas de anotações sobre o comportamento daqueles animais, apontando como eles haviam adaptado seus hábitos alimentares a um clima estranho ou como reagiam à coloração diferente das espécies de corais que encontravam naquele mar etc. Era material suficiente para dezenas de livros --- e certamente suficiente para a tese de doutorado de Sílvia.
Mas eu tinha coletado muito material, também, para meu outro projeto em andamento.
Jantávamos sempre juntos: comíamos ensopados de peixes, carangueijos e lagostas --- e sempre em doses enormes como nossa fome, porque também isso o mar nos dava e tirava. Mas quando regressávamos aos nossos quartos, eu pedia licença, sempre, e saía sozinho para entender aquele lugar e aquelas pessoas.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Mar, 12


Ajeitamos nossas coisas na casa de uma portuguesa que aceitou nos ceder dois quartos. Ela explicou que o maior deles pertencia ao marido e o outro ao filho, mas que não nos preocupássemos, porque nenhum dos dois parecia prestes a voltar. De fato, os quartos pareciam estar vazios há bastante tempo, dados o cheiro e as teias de aranha embaixo do estrado da cama, mas eram bons quartos e nos acomodamos melhor do que podíamos esperar.
No dia seguinte --- e nos dez dias que o seguiram ---, acordamos cedo, pegamos nosso equipamento e mergulhamos.
Ao redor daquela ilha, havia peixes que eu nunca havia visto --- o que não é dizer pouco. Os crustáceos também eram incomuns nos mares brasileiros e chegamos a ver, a uma pequena distância uns dos outros, crustáceos típicos dos mares do norte, como a lagosta europeia, convivendo com cações comuns em nossos mares. Nos rios, a mistura não era menos inusitada, com trutas dividindo o espaço, por exemplo, com guaiamuns.
Eu passava horas com Sílvia explorando aquelas águas e nunca deixávamos de nos surpreender. Mas a cada noite, eu seguia sozinho pelas ruas da ilha, e a cada caminho que explorava, percebia que, pela primeira vez, estava mais curioso com o que havia acima do nível do mar do que embaixo dele.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Mar, 11


Não existe uma sensação que se compare ao balançar de uma escuna atirando-se contra as ondas. É um gesto de bravura. Uma briga, primeiro, contra a agitação do mar e então, na crista, a vitória que se transforma em um salto, fazendo o casco flutuar por alguns instantes antes de voltar a se chocar contra a água e então repetir tudo outra vez. Exceto que não há repetição. Cada onda é nova, cada salto é diferente. Existem pessoas que consideram o balanço das pequenas embarcações nauseante, enquanto outras parecem ter grande facilidade para dormir nestas condições, como se chacoalhadas em um berço. Nenhum destes é o meu caso. Gosto é de esticar o braço para fora e sentir meus dedos tocarem, às vezes, a água salgada. Gosto de sentir meus ombros ardendo de sol e do vento que os refresca. Gosto de olhar ao longe com toda a atenção, mesmo quando me repreendem e dizem que não há nada lá. Porque há alguma coisa, há milhares de coisas: há o mar e a promessa de que um golfinho, um peixe-voador, uma tartaruga-verde ou uma revoada de fragatas pode aparecer a qualquer momento.
Foram essas as coisas que eu senti --- e não sono ou náuseas --- enquanto íamos para a Ilha.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Mar, 10


Naquele dia, no corredor da faculdade de Biologia, eu acreditei que Sílvia pudesse ter visto algo de maravilhoso, mas sabia que era improvável que a Ilha fosse tão inacreditável quanto ela pretendia fazer parecer. A superfície dos oceanos já foi bem explorada e há algum consenso no sentido de que os mistérios ainda inexplicados acerca do mar se concentram em suas profundezas, de modo que soava improvável que uma bióloga recém formada pudesse ter encontrado uma ilha com as características descritas por ela e que nunca tivesse sido alvo de estudos nos campos da geopolítica, oceanografia e --- porque, e era isto o que a levara a falar comigo, haveriam também animais de espécies incríveis, além da estranha combinação de culturas --- biólogos marinhos. No entanto, já não aguentava a inação das aulas teóricas e precisava de algo que me entretivesse enquanto Dani não voltava. Assim, considerei que seria fácil me afastar da faculdade por algumas semanas, se o fizesse em virtude de um estudo acadêmico, respondi positivamente à proposta de Sílvia e parti com ela de volta para o mar.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Mar, 9


Sentada na madeira do pequeno cais, enrolada em todos os panos de sua saia, a portuguesa parecia a própria imagem da tristeza. Foi a primeira pessoa que vi, quando a lancha contornou a encosta sul da ilha e desligou o motor, deixando-se deslizar preguiçosa até a praia. Uma semana já havia se passado desde aquele dia e a mulher parecia não ter se movido desde então.
Sílvia me explicou que chegara à ilha por acaso, enquanto acompanhava um grupo de golfinhos de focinho de garrafa. A princípio, chegou a pensar que o lugar não era nem mesmo habitado, até que encontrou aquela mesma praia onde, dias antes, descêramos da lancha. Lá, surpreendeu-se ao encontrar um povoado com não menos que cinco mil pessoas. Havia casas de madeiras construídas sobre a areia da praia, casas de pedra nas encostas, casas de alvenaria ao redor da ruela principal e casas improvisadas com a lata dos cascos de barcos.
As pessoas que habitavam a ilha não eram menos variadas. Como a mulher triste do cais, havia outras tantas portuguesas, mas também havia holandeses, espanhois, ingleses, noruegueses, árabes (iranianos, talvez?). Era uma babilônia em que se falavam todas as línguas, se vestiam todas as roupas, se serviam todas as comidas.
Era uma vila que, sob qualquer ótica, não fazia sentido.

sábado, 21 de julho de 2012

Mar, 8


Àquela altura, todas as pessoas que me importavam estavam distantes e de alguma forma haviam trocado a minha companhia pela do oceano. Eu comecei a sonhar que estava com Anita nos mares da Tailândia ou que fazia parte de aventuras fantásticas em Atlântida ou na companhia de Ishmael ou do Capitão Nemo.
Meu único conforto eram as aulas na universidade, mas o exercício teórico me satisfazia cada vez menos. Entre o momento em que as aulas pararam, no meio de dezembro e o começo do ano letivo seguinte, no começo de março, eu não passei mais que cinco dias em casa: viajei quase todo o tempo, de Natal à Ilha do Mel, com paradas em João Pessoa, Ilhéus, Morro de São Paulo, Abrolhos, Vitória, Cabo Frio, Paraty,  Ubatuba (chovia), Ilha Bela e na Barra do Una.
Quando voltei à universidade, fui interpelado pela Sílvia, uma ex-aluna que, apressada, me puxou o braço num corredor e perguntou se poderíamos conversar.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Mar, 7


Aos dezessete anos, Dani terminou o colegial e eu lhe dei um ano de folga, para viajar. Ele podia ter ido aos Estados Unidos ou o Canadá, como a maioria de seus colegas, mas escolheu ir para o Havaí. Lá, ele faria bicos em restaurantes e bares, mas, essencialmente, surfaria. Ele me perguntou cheio de timidez se eu concordava com isso, já quase num tom de desculpas. Minha resposta foi um relato da ocasião em que eu e a mãe dele havíamos passado três meses em Honolulu estudando a importância das tartarugas para a cultura havaiana. Assim, meses depois, ele partiu e eu fiquei sozinho. Era a primeira vez, desde aquela noite num acampamento em Moçambique, que eu não tinha ninguém.
Anita não havia desaparecido; ela aparecia sempre que estava na cidade para ver Dani e relatar suas últimas viagens. Quando isso acontecia, saíamos os três para jantar, tomávamos um vinho e ela quase sempre passava a noite comigo, pelos velhos tempos. Eu não era inocente a ponto de pensar que ela não tinha seus outros homens, mas em seus relatos ela sempre tinha a cortesia de não os mencionar.
Mas naquela noite, quando me deitei e pensei que o Daniel estava em um avião indo para o outro lado do mundo, eu me senti completa e irremediavelmente sozinho. O mar dá, eu pensei antes de dormir, e o mar tira.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Mar, 6


De repente, as coisas ficaram complicadas. O Daniel precisava ir para a escola, precisava de uma casa definitiva e, acima de tudo, precisava dos dois pais vivos. Uma criança simplesmente não combinava com nosso estilo de vida. Ao mesmo tempo, eu também me apavorei. Agora, se o mar viesse me cobrar o que lhe devia, eu teria muito a perder. Então, chamei Anita para uma conversa e expliquei que, a partir de então, as coisas tinham que mudar. A gente precisava se assentar.
Conseguir um emprego na universidade não foi difícil. Tínhamos toneladas de material publicado, indicações de biólogos do mundo todo e conhecimento de sobra sobre a matéria. Dar aulas também foi mais fácil do que eu havia previsto, já que os alunos disputavam a tapas as vagas em minhas aulas e prestavam atenção a cada detalhe do que eu dizia, perguntando sempre por detalhes de minhas viagens e das coisas que eu havia visto. Não havia a emoção de explorar o oceano, mas era um trabalho gratificante e eu era muito bom nele.
Para Anita, porém, não foi tão fácil. Ela tinha igual prestígio entre os alunos, mas não compartilhava do meu entusiasmo com a vida acadêmica. Aborrecia-se com facilidade, perdia a paciência com os alunos mais lentos e, ao chegar em casa, demonstrava um cansaço de dar pena. Era carinhosa e preocupada comigo e com o Dani, mas não era difícil notar que aquela vida não servia pra ela. Não levou muito para eu perceber que acabaria por perdê-la.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Mar, 5

Nos primeiros anos, rodamos o mundo juntos. Fotografamos ruínas submersas ao sul da Itália e navios naufragados na Nova Zelândia, publicamos um artigo sobre a migração de sardinhas ao sul da Índia, ajudamos uma equipe da National Geographic em uma expedição pelos mares árticos e não desgrudamos um do outro por um minuto. Já havia se tornado meu instinto apontar ansioso para qualquer espécime que eu encontrasse em um mergulho, a fim de que Anita pudesse vê-lo também, e já nem me assustava tanto ao sentir, de repente, algo roçando minhas costas, tão acostumado fiquei com os carangueijos e estrelas-do-mar que ela apanhava e punha, sorrateira, em cima de mim.
Quando a pedi em casamento, o fiz debaixo da água em uma viagem a St. Malo, porque não há lugar mais romântico que a França. Estava ajoelhado a seis metros de profundidade e a via distorcida pela lente dos óculos e pelas bolhas que minha respiração soltava. Eu lhe ofereci a aliança, mas, ao invés me oferecer o dedo anelar, ela estendeu o dedão: sinalizando que queria subir à superfície.
Lá, retiramos a máscara e eu estava morrendo de medo. Ela me olhou e me chamou de idiota.
"Eu...", balbuciei.
"Como eu vou falar que sim”, ela perguntou, “embaixo d'água?"
Dois anos depois, veio o Dani.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Mar, 4


Maria Anita era uma moçambicana de pais portugueses, pele escura e olhos miúdos, com uma tatuagem de cavalo marinho nas costas que ela quase nunca escondia. Havia passado boa parte da vida em Lisboa, onde terminara a faculdade de biologia semanas antes de voltar à África. Parecia sempre fora de lugar: muito donzela, quando nos acampamentos e muito selvagem, quando na cidade.
Era dela a voz que me chamou do jipe, mas não era ela quem guiava: Sebastião, um preto grande com um enorme sorriso dominava o volante e, como eu logo percebi, o fazia com muito pouca destreza. Os dois estavam fazendo uma pesquisa sobre a vida costeira na região, mas, se é que me disseram o assunto específico do estudo, eu já não me lembro qual era. De todo modo, estavam acampados com mais cinco pessoas a pouco mais de dois quilômetros de minha equipe e insistiram muito para que eu me juntasse a eles naquela noite, para o jantar.
Fomos todos do meu acampamento, levando um violão e duas garrafas de vinho que vínhamos guardando. Sentamos todos no chão, bebemos no gargalo e comemos ensopado direto da cumbuca. Depois, quando alguém começava a dedilhar uma música, Sebastião pediu licença, levantando-se e dizendo que precisava ligar para a esposa. Eu sorri ao ouvir aquilo, entornei um gole de vinho e fui sentar mais perto de Anita.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Mar, 3


Deitei de barriga para cima e fiquei assim. Minha respiração foi voltando ao normal aos poucos, minha cabeça foi deixando de rodar e o chão foi se fazendo sentir mais sólido sob minhas costas. Eu estava vivo.
Depois de algum tempo, minha boca ficou muito seca, por causa do sal, que também fazia meu corpo coçar e meus olhos arderem. O sol também me queimava, de forma que, relutantemente, juntei minhas forças e me levantei. Estava na praia, mas não havia mais que uns poucos metros de areia e, ao meu redor, só via pedras e o mar. À minha esquerda, havia o penhasco: um chapado de seis ou sete metros de altura que me separava do acampamento. Eu teria que dar um jeito de voltar pra lá, mas de cara percebi que escalar o morro não seria uma opção: ele era íngreme, a rocha parecia pouco confiável e eu estava em frangalhos. Nadar ao redor do rochedo também estava descartado. O mar já havia deixado bem claro que não estava para brincadeiras e eu sabia bem que não devia abusar da sorte. Restava, portanto, caminhar ao redor do morro, até encontrar um caminho por onde passar.
Foi o que fiz, ou o que comecei a fazer, já que nem bem havia andado duzentos metros quando um jipe se aproximou, espalhando poeira por toda a parte e parando ao meu lado. Chacoalhava tanto que parecia a ponto de desmontar e soltava uma fumaça escura que me deixou um pouco ressentido: me aborrecia ver um veículo a diesel circulando em meio a um paraíso selvagem como aquele. No entanto, uma voz feminina me perguntou num português cheio de sotaque se eu estava perdido e eu engoli minhas críticas àquele carro e respondi que não estava extamente perdido, mas que uma carona seria muito benvinda.
Anos depois, eu ainda me lembraria de como o mar me havia jogado naquela praia, no lugar e no momento exato para que aquilo acontecesse, e eu pensaria em tudo o que o mar me dera e em como ele havia sido sempre generoso comigo.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Mar, 2


Acho que eu sempre acreditei que morreria dentro da água. Atirado contra alguma pedra, afogado por ter me deixado agarrar por um polvo, envenenado pelas pinças peçonhentas de algum crustáceo, enfim, fosse como fosse. Por isso, quando as ondas se revoltaram e me arremessaram na costa de um penhasco durante um mergulho no litoral de Moçambique, eu fui tomado por uma serenidade fúnebre. Mesmo assim, agarrei-me como pude a um coral, sentindo minhas mãos se rasgarem. Fiz o que consegui para me segurar, mas a maré me puxava de volta, me cegava os olhos, me roubava o fôlego. Administrando minhas forças entre a necessidade de erguer a cabeça acima da água e de atar os braços à parede rochosa do penhasco, consegui como que por milagre me firmar entre duas pedras. Vi que a água ao meu redor estava vermelha de sangue e eu sentia vagamente alguma dor nos membros arranhados, mas o frio e a adrenalina me anestesiavam. Respirei, procurei me apoiar melhor e me ergui.
As ondas ainda batiam com força, de modo que fiquei por algum tempo parado, concentrado apenas em não ser atirado novamente contra as pedras. Meus braços ardiam, meus olhos ardiam, minha boca estava cheia de água e sal. De repente, senti vontade de gritar. Eu estava vivo.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mar, 1

Apesar de tudo, eu nunca vi o mar como um amigo. Era algo diferente, como um animal selvagem que alguém tivesse domado. Eu conhecia o mar, sabia lidar com ele e, sim, eu chegava mesmo a confiar no mar. Mesmo quando mergulhava com tubarões, moreias, baleias --- e não foram poucas essas ocasiões ---, nunca era exatamente medo o que eu sentia: era mais a consciência avassaladora da grandeza do mundo e da absoluta impossibilidade de lutar contra ele. Era admiração, mais que qualquer outra coisa. Mesmo quando eu passava semanas em embarcações pouco confiáveis, com tripulações que mal falavam a minha língua, ou quando era jogado pelas ondas sob tempestades ou na ocasião em que navegamos para o sul e ficamos presos no gelo e só víamos o branco da névoa, eu nunca, nem mesmo uma vez, olhei para o mar com rancor.
Mas é claro que eu conhecia os ditados. No fundo, não havia diferença entre mim e os pescadores cubanos com quem tantas vezes tomei rum. Assim, eu sabia tanto quanto eles que o mar deve ser amado, mas respeitado. O mar dá, eles diziam, e o mar tira.
Por isso, eu seguia navegando e mergulhando e eu amava o mar acima de qualquer coisa, mas eu nunca perdi o respeito por ele. Eu abraçava tudo o que o mar me dava e reconhecia o quanto ele era generoso comigo. E eu esperava pelo dia em que ele me tiraria algo em troca.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Piores dias


Eu odeio todas as pessoas
Que escrevem canções de amor
Porque eu não sei cantar
Eu não sei escrever
E eu nem sei direito
Se eu sei amar
Eu sei que era eu
E que era você
E não era nada, nada, nada
Porque a gente era eu
E era você
Mas não era a gente
E nem podia ser
Mas era tudo, tudo, tudo
Era de madrugada
Toda madrugada
Sempre madrugada
E a gente acordado junto
(mas não juntos)
E eu queria, mas não demais
E você disse que não podia ser
E foi ruim, assim
Mas não muito
E os dias piores
Ainda estavam por vir

E depois foram meses
Sem ouvir falar
E acho que eu acreditei
Que era só esquecer
Só deixar pra lá
Mas teve aquele dia no shopping
Em que não aconteceu nada
Mas foi tudo, tudo, tudo
Porque estava eu
E estava você
E não era a gente
Mas de repente
Só naquele instante
Acho que até podia ser
Então nos falamos
Acho que foi você quem falou
E eu ouvia, ouvia, ouvia
Ou via, via via
E foi meio horrível
Mas também meio bom
Ter a cabeça cheia
De você
Durante toda a madrugada
Toda madrugada
E não só de madrugada
Ficar acordado
Com a cabeça pesada
E o peito pesado
E os olhos pesados
De você
Mas os dias piores
Ainda estavam por vir

Quanto tempo levou
Pra tudo dar certo
Quando tudo deu errado?
Ficamos presos no carro
Ou o telefone tocava
Ou era engano
Ou era eu
Ou não era nada
E era nada, nada, nada
E você disse que não entendia
E nem eu entendia
Você achou que não era pra ser
Eu achei que não era você
Mas uns dias, umas semanas
Pra quem tem a vida toda
E na verdade, na verdade
Acho que eu sempre tive fé
Em você
E foi aí que tudo ainda tava errado
Mas como você estava do meu lado
Era tudo, tudo, tudo
E eu segurei seu rosto
Ou foi você quem segurou minha mão
Ou foi minha boca que segurou a sua
Ou foi tudo, tudo, tudo
E ninguém me culpe por não ouvir
Quando vieram me dizer
Que os dias piores
Ainda estavam por vir

Mas quanto tempo levou
Pra tudo dar errado
Quando tudo deu certo?
Quando você me falou
Ou me fez te falar
Que a hora era ruim
E que era o fim
I see skies
(Or are these violets
Blue, blue, blue?)
Red roses
Too, too, too
Is it a song
Or lame poetry?
Should I stay or
Let it be
Mas isso não é uma canção
E muito menos um poema
Nada, nada, nada
Nada que valha a pena
Ne rien choisir
Mas eu fiz pra você
E pra gente esquecer
Que os dias piores
Estão sempre por vir

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Dia 8.317

Descobri que também este intermediário tem jogado fora, ao invés de entregar, parte dos textos que dou a ele --- apesar das quantidades cada vez maiores de ração que me cobra pelo serviço. Tanto faz.
Já não ligo para isso, assim como não me incomodo de cumprir as ordens, de dar as ordens, de sorrir quando preciso sorrir etc. Tanto faz.
Nos últimos tempos, descobri as coisas mais absurdas, que me tiraram qualquer possibilidade de reação. Meus carcereiros, também eles, estão contaminados. Pior: cultivam o vírus e o disseminam a conta-gotas. Nos trancam aqui e nos tolhem a comunicação não porque temem que a doença se espalhe para além dessas grades. Ela já se espalhou. Não, o medo deles é outro, é outra a causa de nossa privação. Não nos isolaram para salvaguardar a você e aos outros. Se me tiram agora o papel das mãos é porque acham que dele, um dia, pode nascer a cura.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dia 15

Ao longo dos dias, somos submetidos a uma série de procedimentos e exames que parecem indicar um certo sadismo em nossos carcereiros. Às vezes, chego a julgar que não estejamos isolados por causa da doença, mas de algum experimento sociológico de extremo mau-gosto.
Uma vez por semana, por exemplo, somos forçados a usar um uniforme especial. Não fazemos nenhuma atividade excepcional que justifique essa mudança, mas aqueles que se esquecem e vestem o uniforme habitual são retaliados pelo engano. Em outras ocasiões, fazem-nos passar horas seguidas numa ou noutra posição. De tempos em tempos, talvez por se sentirem entediados, dão-nos objetos para carregar, levando-os de um carcereiro a outro apenas para termos de levá-los de volta depois. Ou então, marcam, obedecendo a critérios obscuros ou a critério algum, determinados prisioneiros e nos fazem venerá-los por alguns dias, como se fossem heróis ou divindades. Nada impede, porém, que essas pessoas seja posteriormente execradas pelos mesmos carcereiros que as selecionaram.
Além disso, durante uma hora por dia, todos os dias, somos incentivados a conversar com outros cativos sobre nossas vidas anteriores, fora daquelas celas. É comum que, nessas horas, nossos carcereiros venham até nós e nos perguntem o que faremos no dia --- segundo eles, próximo --- de nossa libertação. Os outros presos parecem acreditar piamente nas promessas de indulto, de forma que respondem animados e fazem planos e dizem coisas como “Não vejo a hora”.
Não quero, porém, soar estoico. Eu mesmo mal posso esperar pelo dia em que me deixarão voltar para você.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Dia 14


Ontem, vi com clareza os efeitos do vírus sobre um homem. Sua fisionomia se transformou e até seu comportamento foi afetado. Em seu trato com os colegas, parecia outro. Mais ríspido, mais agressivo. Não tardou, porém, e aqueles próximos a ele também começaram a apresentar os sintomas da doença. A afetação do humor é sempre imediata, mas ocorre de formas infinitamente variadas: há quem feche-se em reclusão, há quem se torne extrovertido e isento de qualquer freio social – como se constantemente embriagado. O efeito físico não é menos imprevisível: alguns contaminados engordam, tornando-se flácidos e preguiçosos, enquanto outros descontrolam-se, hiperativos, e dão sinais de desnutrição. Eu? Julgo-me ainda inalterado. Mas não me engano. Pergunte aos outros e verá: qualquer um deles dirá o mesmo sobre si.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Dia 5

Eles, os homens que cuidam das portas, nos tratam bem. Há ração e água em fartura, então, mesmo com a doença, muitos de nós engordam. Seus desígnios são um enigma, porém. Dão-nos ferramentas e deixam que trabalhemos a terra e, contudo, tudo o que produzimos nos é tirado. Ao fim do dia, são eles que ficam com tudo.
A nós, o vírus.

Dia 2

Este é meu segundo dia aqui. Ontem, escrevi na areia um texto que já sabia fadado a desaparecer. De qualquer forma, não teria como levá-lo aos olhos de quem quer que fosse. Hoje, encontrei um correspondente: um portador a quem posso entregar esses escritos. É um sujeito pequeno, mirrado, mesmo. Não sei se posso confiar nele. Talvez me denuncie tão logo lhe dê as costas. Mas não me  importa, já que não há mais o que fazer. Entregarei os textos a ele, portanto, e aguardarei pelo que vier.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Dedos, 6


Na manhã do Confrontamento, nem fiz caso do envelope sobre meu teclado. Empurrei-o de lado, liguei o computador e iniciei uma partida de Paciência Spider, enquanto esperava que minha colega chegasse.
Olhava o relógio compulsivamente. Nove horas, ela não havia chegado. Dez horas e nada. Onze. Ao meio dia, fiquei em dúvida se saía para o almoço ou não. Esperei mais um pouco, mas, aparentemente, a questão dos indicadores não bastava para me tirar o apetite. Bloqueei o computador, desci o elevador, saí o prédio. Não havia dado três passos do lado de fora e ela se chegou a mim: a senti antes de a ver, vinda de trás, me puxando o colarinho e sussurrando ao meu ouvido: “Por aqui.”
Fui com ela, algo no seu senso de urgência me impedindo de puxá-la, pará-la, questioná-la. Por algum motivo, preferi ficar quieto. Ela virou à esquerda uma, duas vezes, depois à direita, e eu a seguindo até que entramos em um prédio. Ela chamou o elevador e eu não disse nada. Subimos.
O prédio era residencial. Quatro apartamentos por andar e ela me levou para um específico. Acho que era o apartamento dela. Havia três crianças, lá dentro, uma vendo televisão, as outras duas discutindo para ver qual delas teria o direito de brincar com um boneco qualquer. Num canto da sala, havia um computador e dava para ver a janelinha do MSN piscando, piscando, sem resposta.
De repente, levei um susto, corri para perto das crianças e peguei-lhes as mãos. Não faltava nenhum dedo, ufa. Minha colega soltou um risinho, mas não havia muita alegria nele. Era um riso cansado.
“Achei que eu pudesse te ajudar”, ela disse.
“Me ajudar?”
“Com os dedos.”
Eu não queria ajuda nenhuma, muito menos se essa ajuda assumisse a forma de indicadores humanos cortados fora e colocados sobre minha mesa em envelopes pardos. Já não entendia o que eu esperava ao acompanhá-la até lá. Que tipo de respostas eu achava que encontraria. Era só um apartamento, uma família, alguém impaciente no MSN. Senti raiva dela, de mim, das crianças. Lembrei que estava com fome. Fui embora.

***

No dia seguinte, cheguei tarde e ela não estava no escritório. “Tanto melhor”, pensei. Sobre a minha mesa, havia um envelope, que eu abri com descaso. Era um contrato de um cliente.

terça-feira, 13 de março de 2012

Dedos, 5 - Apêndice

Eu estava em um mercado, ou talvez fosse uma loja de CDs --- provavelmente um mercado, porque eu não compro mais música. Em minha mão esquerda, eu segurava uma sacola (com legumes, talvez?) enquanto esperava na fila do caixa. Uma senhora impossivelmente velha se aproximou de mim devagar, levantou um pouco a cabeça e me perguntou onde ficava qualquer coisa. Não me lembro o quê. Ela tinha uma bengala. Eu sabia onde ficava.
“Ali”, disse.
“Onde?”
“Ali”, repeti. Eu estava apontando claramente para onde ela devia ir, mas ela pareceu confusa. Não sabia para onde ir. Eu olhei na direção indicada, impaciente, e então me enchi de horror e ânsia, meu estômago se contraindo e minha pressão caída.
Meu indicador não estava lá. Havia apenas a minha mão, débil e inútil, estúpida, uma mão em que faltava um dedo --- justamente aquele que deveria indicar a localização dos CDs do Erasmo.
A velhinha se irritou, foi embora, perguntou a outro. Eu não servia mais para dar indicações. As outras pessoas da fila também se afastaram: algumas com repulsa, outras rindo. Apontavam para mim e me humilhavam não apenas com as gargalhadas, mas, principalmente, com o dedo em riste. Saí da loja correndo, deixei minha sacola para trás.

Acordei suado e olhei instintivamente para minhas mãos. O dedo estava lá, mas eu precisava urgentemente falar com minha colega.